quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

Na borda

Sempre fui muito atento aos relatos de experiências de pessoas com depressão, sempre achei terrível como elas se tornam praticamente incapazes de fazer qualquer coisa que dê algum sentido a própria existência, e me lembro bem de como isso mexeu comigo, de como achei isso tão tremendamente triste que sentia uma gosto estranho me subir pela garganta. Como deveria ser a vida de uma pessoa que já não consegue mais cuidar de si mesma, que já não conseguem levantar da cama ou que vivem numa escuridão completa após um ou dois dias tranquilos. 

Não imaginava, quando os relatos mexiam comigo, que chegaria o dia em que me identificaria com eles na minha própria carne. Que seria eu a me olhar no espelho, descuidado, e chegar a única conclusão possível de que eu não tenho forças pra me cuidar, que sair da cama para comer exige um esforço sobre-humano e que muitas vezes é melhor só dormir e esperar que a fome passe do que levantar e preparar alguma coisa. Aliás, é melhor dormir do que fazer qualquer coisa, o corpo parece ter sido coberto de chumbo, a cama exerce uma atração magnética, o sono é como uma névoa que impede a visão e torna todas as coisas cinzas e pesadas, ficar aqui é melhor do que sair. 

E assim mais uma dia vai passando... Quando eu conseguir me levantar, as pessoas, inclusive as que moram aqui, só vão conseguir ver que eu engordei um pouco, que eu estou seguindo alguma moda deixando a barba crescer e vão me perguntar se fui dormir tarde, quando virem meu rosto sonolento. E isso é tudo. 

Ninguém consegue perceber que, na verdade, eu mal consigo me movimentar sozinho. Ficar fora de casa por duas horas para a missa já exige um esforço que me cansa por dias... Fingir que estou interessado em qualquer interação social é um suplício tremendo e, por mim, ficaria sozinho ouvindo música ou alguma aula de boas por vários dias...

Quem me roubou de mim? Quem roubou a minha alegria? Espero que possa me devolver no final de algum dia, espero que ela ainda exista de algum modo, não apenas uma memória distante de um tempo que, não sei se vivi ou se inventei ter vivido para amenizar o fato de que sempre vivi sem uma razão de ser, de que vivi sempre sem nenhuma alegria. 

Tudo o que eu consigo me lembrar é desse vazio, desse nada do qual eu surgi, e me lembro do medo que eu senti quando percebi o vácuo que havia dentro de mim. Tentei preencher esse vazio com amor, busquei esse amor, eu busquei o outro, eu tentei realmente me tornar um só com o outro, tentei encontrar nele o que pudesse preencher a parte que falta em mim. E quando busquei preencher esse vazio eu me desesperei ainda mais, e as almas que se afobaram para preencher esse vazio não era o suficiente. E o vazio aumenta cada vez mais, me consumindo, fazendo com que eu acabe retornando ao nada. 

E é tudo vazio, sem contorno, e  o outro parece a única realidade palpável, e eu desejo essa forma de existência, algo que não seja tão evanescente quanto meu ser, eu desejo ser mais do que apenas um dia após o outro, eu desejo ser alguém mas parece que sozinho eu não sou ninguém. 

Quem sou eu? Apenas o conjunto das relações entre eu e o outro? Mas isso já supõe um eu que seja capaz de se relacionar com o outro. Um eu histórico? Pensante? Tudo supõe que exista um eu capaz disso tudo. Existe então um Eu por trás disso tudo. Mas o que eu posso fazer se não me sinto eu, ou melhor, se me sinto e sinto que isso não quer dizer nada? Como posso enxergar a totalidade da minha existência sem ser em relação ao outro? 

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