quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

De frente ao espelho

É tão estranho olhar para um pessoa e constatar que ela desistiu da própria vida, ver que seus dias são apenas uma rotina diminuta onde ela faz apenas aquilo que consegue pois já não tem forças de fazer mais nada. Ela passa a maior parte de seus dias na cama, ouvindo aulas e tentando exercitar sua atenção, que muitas vezes se dispersa, se perde em devaneios sem rumo algum. Ela pouco se cuida, toma banho ou corta o cabelo quando já não é mais possível tornar a adiar, come qualquer coisa, já não sente gosto ou sequer algum prazer em comer o que quer que seja. Já não se reconhece ao olhar-se no espelho, engordou e seu rosto está coberto de pelos. E é ainda mais estranho notar que essa pessoa sou eu. 

Ou pelo menos parece ser eu. Ela se move como eu no espelho e esse é o único indício que tenho de que essa criatura que me observa sou eu. Mas ele é apenas uma fera, disforme, com olhos fundos e a face escondida por um emaranhado de barba e cabelo desgrenhado. Esse realmente sou eu? 

Me peguei pensando agora no quanto eu gostava de cozinhar, e de como o gosto das coisas era diferente. Agora não, tudo tem o mesmo gosto, com algumas poucas exceções. E quanto mais eu me sinto apático, entorpecido, mais as coisas se tornam sem gosto algum, mais eu como apenas para não me sentir ainda mais fraco e indisposto. E mesmo assim a indisposição é recorrente, tão presente quanto o pensamento. Andei alguns quarteirões hoje e me sinto exausto o suficiente para dormir por dias.  Já estremeço em pensar no compromisso de amanhã, no de depois de amanhã, no do dia seguinte. Mesmo que fique no máximo 3 ou 4 horas fora de casa isso ainda é um esforço excruciante demais. Ir até a cozinha já é algo que eu gostaria de evitar.

Isso porque qualquer coisa fora das paredes do meu quarto só aumentam ainda mais o sentimento de profundo descontentamento que eu tenho para com todas as coisas. Saber que moro numa casa apertada com outras seis pessoas, dividindo o mesmo ar e o mesmo banheiro, isso já é suficiente pra me deixar enjoado por dias inteiros. Ser obrigado a sair e dar de cara com essas pessoas é ainda pior, e eu sequer consigo descrever o que sinto, somente dizer que estar caminhando na beira de um grande precipício e, ao mesmo tempo, sentir medo e atração por toda a escuridão que há no fundo desse abismo.

E em dias assim é comum eu querer me afastar de todos. Mas, quanto mais tento fazer isso, mais sinto necessidade do outro perto de mim, e sinto os músculos do meu corpo se retorcerem por um abraço, por sentir o toque e o calor de outro, ao passo que outra parte de mim quer apenas se esconder no profundo da minha mente e adormecer, fugir para longe de tudo e todos, e só acordar quando não mais me sentir assim, somente acordar quando a luz não machucar os meus olhos, quando os alimentos voltarem a ter sabor ou quando as paredes voltarem a ter cor. 

Quando será que essa casa terá mais espaço? Quando será que as coisas não estarão sempre à beira de um colapso? Quando será que as coisas começaram a dar certo? 

Não me exija uma postura otimista diante de tudo isso. Se é que já ouve um lado otimista em mim ele se foi há tanto tempo que sequer me lembro dele. Ao que me parece só o que me restou foi essa capacidade idiota de ver afeto no outro, de enxergar no outro alguma consideração por mim, de continuar esperando que alguém se apaixone, que alguém se interesse. Essa é a única parte de mim que ainda nutre algo de esperança, e é mais uma parte de mim que pretendo extinguir, pois é essa mesma esperança causa de tanta dor, de tanto desentendimento. 

Esperar amor é um dos ímpetos que há em mim e que eu mais detesto. Isso porque nesses anos tudo o que eu consegui foi me decepcionar, foi ver os outros se interessando, dia após dias, por outros e outros, e me odiando cada vez mais. E ainda não consigo identificar o que em mim causa esse afastamento, se é algo que eu seja ou, o que provavelmente responde a essa pergunta, algo que eu não sou, a absoluta falta das qualidades que os outros buscam nas pessoas e que faltam em mim. 

E essa é a sensação mais aflitiva de todas: a de que algo falta em mim, que sou um homem incompleto, que possuo algum defeito intrínseco que me afasta de todos os outros, que me torna tão incompreensível e capaz de despertar ojeriza nos que me cercam. Há algo de tão errado em mim que u sempre torno a me olhar no espelho, e mais uma vez chego a conclusão de que não sei quem é esse que me olhar. Não sei quem é esse ser que sequer tem aparência humana. Tudo o que eu sei sobre ele é que sinto, no profundo do meu ser, o seus desejos mais primitivos, e que algo nele me assusta, e me faz pensar que eu também fugiria, se me fosse permitido fugir de mim mesmo. 

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