sábado, 27 de fevereiro de 2021

O que mais agora?

"Não sei quanto às outras pessoas, mas quando me abaixo para colocar os sapatos de manhã, penso, Deus Todo-Poderoso, o que mais agora?" (Charles Bukowski)

Terminei o texto de alguns dias atrás com a mesma citação com que inicio este. Acontece que, depois de finalmente conseguir algum descanso da correria dos últimos dias, eu pude também sentir se abater sobre mim o peso daquela mesma depressão que antes estava apenas em meus olhos. Ela não havia me abandonado, isso é certo, mas estava apenas se preparando para me agarrar com ainda mais força, enrolando sobre meu pescoço os tentáculos gelados de sua malícia e torpor.

Me vejo agora prostrado sobre a cama, sem conseguir me levantar e com a mente vagante, nublada, bastante confuso. Me cansa pensar na bagunça que ainda está lá fora, e me cansa ainda mais ser obrigado a ver, com requintes de crueldade, a completa incapacidade da minha família de sonhar com coisas grandes. Eles tudo resolvem com a praticidade que lhe vem a mente, criatividade que sequer deveria existir, não fosse a necessidade que eles acham que existe de resolver todas as coisas com remendos e encaixes sem a mínima preocupação estética ou qualquer outra preocupação que seja. 

Afogam-se, eles mesmos e a mim, num oceano de horrores indescritíveis. Somos obrigados a olhar para armários remendados, pisos com diversas cores e paredes cheias de buracos e fios indecentes, numa expressão máxima de toda vulgaridade possível. E a isso eles chamam de vida. 

Acontece que cada rachadura, cada reparo, cada pedaço de madeira usado como prateleira como se fosse a melhor das instalações é um golpe violento sobre o meu senso estético. É como se enfiassem braseiros quentes em meus olhos. 

Isso porque, embora seja um pretexto aparentemente bobo e superficial, isso só revela uma mentalidade latente muito mais profunda do que eu mesmo poderia sondar: a imensa mediocridade em que está inserida a mentalidade brasileira. A minha família não é outra coisa senão um reflexo do brasileiro médio que se contenta com qualquer coisa, que está tão acostumado com tudo dando errado que já não se incomoda em mudar o que de fato está errado mas em fazer remendos e reparos, sacrificando no expediente a própria sanidade. E acumulam para isso milhares de ideias, de coisas velhas que algum dia quem sabe podem ser usados em algum outro remendo, e ainda se irritam, quando veem algo bonito e valioso, se sentem incomodados quando alguém mora numa casa grande e organizada, que não é uma exceção, mas deveria ser a regra buscada por todos. 

Não estou dizendo que deveria dar um jeito e enriquecer e pronto, mas existe uma diferença abissal entre não ser rico e, na simplicidade buscar a dignidade de uma organização decente, e de não ser rico e encher a casa de coisas de gritam a plenos pulmões que aquelas pessoas não tem absolutamente nenhuma preocupação com o belo. Como deveria ser óbvio também, a destruição do belo não vem senão acompanhada da destruição de toda noção do bom, justo e verdadeiro. Daí a indolência da minha família em aceitar qualquer comportamento como normal, por mais imoral e absurdo que seja. Daí a incapacidade deles de enxergar verdades óbvias, restando apenas um recesso mental animalesco, que enxerga num armário remendado o ápice de realização do conforto humano. 

Acho que é desnecessário dizer o quanto isso me causa nojo. E me causa mais nojo ainda de mim mesmo, saber que eu não sei por onde começar, não conseguindo sequer sair dessa cama, para conseguir viver sozinho, com o mínimo de dignidade. Mas parece que eu fui condenado a viver assim. Diferente deles isso me incomoda. Diferente deles isso aqui não me parece nada com vida, ao contrário, é uma prisão de miséria espiritual sem tamanho. Diferente deles eu sinto desespero, um desespero até a morte que brota do profundo abismo do meu ser, numa voz frígida e metálica que sussurra a todo momento as formas com eu deveria acabar com esse sofrimento, para fechar os olhos e não mais ver nada de feio, o feio que é a causa de toda malícia. E é por essa razão que, desde o instante em que acordo eu olho ao meu redor e me pergunto: "Deus Todo-Poderoso, o que mais agora?"

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