sexta-feira, 7 de outubro de 2022

Faces

Tenho sentido certa liberdade, advinda daquilo que comentei há alguns dias: o mundo não espera muito de um homem além de que ele tenha um emprego e um espírito medíocre. E isso significa que tenho olhado ao meu redor e as pessoas não me cobram muito. Claro, eu ainda preciso estudar pra aprender um pouco mais sobre as coisas do trabalho, ainda preciso ficar atento a certas coisas mas, no plano geral das coisas, ninguém espera muito de mim, ninguém tem me feito cobranças, e isso é ótimo. É ótimo porque me concede a liberdade de me dedicar inteiramente aos meus estudos, aqueles que realmente me importam, sem que ninguém o saiba, sem que me critiquem por não entenderem o que estou fazendo, porque são bem poucas as pessoas que entendem, ou que são simplesmente capazes de imaginar que eu estou tentando aprender sobre coisas maiores e melhores. E então posso ouvir as aulas quieto no meu quarto, posso ler em silêncio, posso meditar sozinho coisas que as pessoas ao meu redor nunca ouviram falar, e isso é bom, a solidão intelectual pouco a pouco se converte em liberdade, e agora eu me sinto um pouco mais livre para encontrar outras pessoas que possam se interessar pelas coisas que eu, que estejam em busca de uma vida mais elevada ou, no mínimo, menos obscurecida pela queda geral da civilização que se observa nos homens médios. 

Claro, preciso de paciência, não posso me matricular em todos os cursos que gostaria, e nem consigo ler tudo o que queria também, mas pouco a pouco vou fazendo isso. E o que eu não aprendi hoje, confio a Deus e peço que me ensine outro dia, quando ele achar melhor que eu aprenda, quando isso for melhor para que eu O veja verdadeiramente. Não quero mais deixar a minha mente se perder em coisas supérfluas, o meu trabalho é apenas e somente o que eu preciso para continuar comprando os livros e cursos que preciso, ele serve tão somente ao propósito maior. E então eu posso ficar quieto, e em silêncio aprender mais sobre a realidade. Quem sabe um dia, daqui dez ou vinte anos, eu possa compartilhar isso com alguém, mas também não é o objetivo, eu quero somente aprender e me localizar, o que vier além disso é mais do que eu posso pedir. 

X

Ironicamente eu dou continuidade a esse texto tratando de algo oposto ao que falei na primeira parte. Acontece que, depois de tentar me vestir para o trabalho hoje cedo eu me deparei mais uma vez com a minha imagem no espelho. Tentei vestir um casaco e ele estava bem pequeno, porque eu comprei meses atrás, quando estava com uns 25kg a menos, e agora ele praticamente não servia mais. Assumindo uma postura estoica eu fingi que nada estava acontecendo e simplesmente me troquei mas, na verdade, aquela imagem no espelho me machucou bastante. Seja a marca da barriga avantajada ou as roupas que não me servem mais e eu queria voltar a usar, meu rosto inchado, a pele macilenta, o cabelo que, mesmo cuidado ainda não está bom o bastante porque todo o resto atrapalha, isso ainda me incomoda. E então eu volto para aqueles belos retratos de homens perfeitos, imagem da beleza encarnada em peles claras, cabelos e corpos perfeitos. O universo é injusto. 

Fazer dieta? Exercícios? A verdade é que isso só resolve se você tiver dinheiro e tempo pra dedicar sua vida a isso, sempre refém dessas coisas. E eu já chego cansado,  preciso me esforçar pra estudar e assistir, não tem nem tempo pra dispor assim. E ainda assim as coisas me incomodam. Posso viver num mundo sem espelhos? Posso fugir e me esconder? Posso me jogar no mar e deixar que a água me inche até que eu exploda? Infelizmente para algumas questões banais como essa eu queria uma solução mágica. Apenas um reflexo de como minha mente ainda se apega a pequenas coisas... Algo tão trivial quanto minha aparência? Que importância tem isso diante de toda a perspectiva da minha alma imortal? Nenhuma. Mas ainda assim me incomoda. Eu sou patético. 

No entanto, antes da conclusão eu acrescento ainda que isso deve ser objeto de maiores investigações posteriores, e que eu devo examinar melhor como se dá essa relação entre meu eu e a minha imagem refletida ou projetada, bem como eu me imagino e como cheguei a sonhar um dia. E assim eu, novamente, me vejo diante de belas imagens que, embora me inspirem, também me causam intenso desgosto. É que a perspectiva de um mero mortal diante de um homem quase divino é deveras assustadora. De novo isso, no entanto, não deveria me causar transtorno algum se eu tivesse em mente apenas objetivos intelectuais de fato mais elevados. O fato de isso me machucar tanto só mostra que minha vontade não está tão alinhada assim. 

X

Meu primo dormiu a última noite comigo. Apenas dormiu, nada aconteceu porque, tanto ele quanto eu, dormimos exatamente quando encostamos na cama, e também porque não pensávamos em outra coisa. No dia seguinte minha mãe veio conversar comigo e me disse que ela espera que um dia eu encontre alguém que seja bom para mim. Eu fiquei quieto, calado, com o olhar distante, porque na realidade eu mesmo já desisti disso. Até fico animado com os homens bonitos que vejo aqui em Joinville, mas isso não desperta mais do que uma excitação temporária em mim, e logo passa, se esvai. Não sonho mais com o amor, nem com o futuro, apenas tenho uma bela imagem de um jardim, e eu deitado no peito de alguém, imagem que eu retirei do poema de São João da Cruz e que inclusive conversei com meu afilhado sobre ela, mas é também apenas isso, uma imagem romântica de um momento, e que me deixa bem imaginar, mas isso não significa um sonho, não há mais nada assim em mim. Não tenho mais perspectivas e esperanças, tudo o que me move é apenas o desejo do conhecer a verdade, tudo o mais é supérfluo e acessório. 

X

Jacob Burckhardt fala sobre certa beatitude ante o conhecimento, um maravilhamento diante de verdades mais elevadas. Num primeiro momento, ao intelectual sem considerável amadurecimento, isso pode aparecer o fim último da vida intelectual mas, pensando um pouco mais sobre isso, é possível perceber que, embora certo maravilhamento seja necessário para dar continuidade a vida de estudos ele não é o fim dessa vida, mas apenas a porta de entrada, uma certa forma de nos deixar querendo mais e mais, mas o que de fato nos move é o amor pela verdade, aquela desvelamento da realidade ante as mentiras do mundo, desvelamento que muitas vezes revela verdade verdades cruéis, duras de aceitar, mas que por serem verdade, ainda assim nos deixa, se não tranquilos pelo menos com uma atitude corajosa diante delas. Isso porque ao conhecer e se orientar na realidade passamos a saber como agir diante dela, ainda que minimamente. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário