segunda-feira, 17 de outubro de 2022

Sobre as coisas que não entendemos muito bem

O domingo melancólico começou com uma incômoda crise alérgica e uma missa chuvosa onde tentaram, sem muita eficiência, fazer as pessoas se animarem cantando músicas mais agitadas, mas algo no espírito da liturgia e da chuva falaram mais alto e, por fim, acabaram substituindo o compasso ternário pelo quaternário e arrastando as letras de cada frase com uma preguiça cadente. Com exceção disso eu não consegui prestar atenção em muita coisa por causa da dor que sinto sempre que minha alergia ataca. 

De volta ao meu quarto eu deitei um pouco e, olhando umas fotos nas redes sociais me deparei de novo com as imagens perfeitas que tantas vezes já descrevi como me impactam negativamente, me fazendo crer, ao mesmo tempo em que tenho consciência desse processo, que a perfeição delas é a única beleza que existe. Se o mundo dependesse de mim estaria salvo apenas se olhassem esses rostos perfeitos, reflexo de coisas belas que foram dadas aos homens como dádivas para encantar.

Sei bem dos erros e das consequências desse pensamento mas admito uma vez mais que há algo de beleza nessas imagens, algo sobre qual eu já falei antes e não quero me repetir hoje, e então constatei que hoje não posso oferecer essa beleza. Nada de pele perfeita e nem cabelos hidratados, tampouco um sorriso doce e iluminado e muito menos roupas deslumbrantes. Muito embora aquelas trevas que antes haviam em meu hálito tenham aparentemente se dissipado eu ainda conservo minha descrença, um ceticismo pessimista que beira o niilismo, em ver beleza em minha vida. Hoje sou apenas eu, imagem desconstruída, criatura disforme e falha, um arremedo de ser humano.

Claro, o contato com grande obras me dão uma ideia dessa beleza idílica, superior, mas é justamente isso, algo que se encontra num sobrecéu, num hiperurânio platônico, do qual só posso vislumbrar aqui por meio dessas belas obras, como agora em que escuto Dolly Parton cantando How Great Thou Art pela quinta vez essa manhã. Aqueles que estampam as fotos as quais me referi são agraciados com um pouco dessa beleza que se transmite dos homens aos homens como sinal de um mundo das ideias que nos é inacessível aos sentidos pode, no entanto, nos dar um vislumbre por meio dos sentidos. Apontam ao seu modo algo maior, assim como uma liturgia aponta e nos transporta realmente para uma realidade superior.

Senti isso ao ver a mostra Sobre as coisas que não entendemos bem, de Celaine Refosco, no Instituto Internacional Juarez Machado em Joinville, onde trabalho, e lá tive contato com diversas complexidades de relações e percepções. A forma como as obras vão se transformando conforme vamos olhando por diversos lados, como as construções vão crescendo e se desfazendo de acordo com as diversas camadas que refletem as muitas camadas da nossa personalidade e das nossas relações. Conforme olhamos as imagens se tornam mais ou menos claras e isso é uma experiência comum a todos. 

Sei que a beleza, como ideal universal, não é o objetivo da artista, que tem uma forma ímpar de ver o mundo e desvelar aspectos escondidos e colocá-los em primeiro plano, e aceito isso. Por isso a reflexão que faço é justamente um esforço do meu pensamento em transportar o que vi e que me impactou. É mais uma camada que acrescento a esse complexo tecido de relações. Mesmo que cada interpretação ou, melhor ainda, cada impressão seja diferente, são mais e mais camadas dessa trama de complexidade inabarcavel. Olhar o conjunto nos faz ter exatamente essa impressão: nossas relações estão cheias de coisas que não entendemos bem.

Por outro lado, continuando no âmbito das relações, decidi ouvir Jeff Satur dizer em "Why don't you stay?", em seus acordes perfeitos e afinação impecável que ele "deseja ficar, que está perdido em seus olhos, ao seu lado e assim tudo vai ficar bem quando a noite chegar" e então ele pergunta "por que você não fica?" É o desejo mais profundo e sincero da entrega. 

É um questionamento válido que mostra um aspecto daquela trama maior dos sentimentos e que eu trago para minha experiência, cada vez que sinto aquele ímpeto dentro de mim de dizer, sem subterfúgios poéticos, o que eu realmente sinto, que gostaria de viver naquele abraço pra sempre, ouvindo seu coração bater, sentindo o aroma doce do hálito e as palavras gentis daquele que amo mas que eu queria aqui comigo, acordando todos os dias ao seu lado, deitado sobre seu peito e até em momentos de maior intimidade, sentindo sua respiração arfada em minha pele, as marcas roxas como sinal do tempo em que ficamos juntos, o selar de um sentimento mútuo em lábios que se tocam como uma chancela, as gotas de suor e o rosto avermelhado sinalizando uma entrega total, dedos que deslizam explorando cada detalhe daquele corpo escultural, aconchegante, e tem a mente e o corpo em disputa, sem saber o que deseja, sem ter coragem de enfrentar essas demandas, fugindo pro campo comum, pro campo confortável onde não se enfrenta aquela vontade que grita para ser percebida. Percepção que finda, ao menos de minha parte, de modo inapropriado com as palavras finais do poema de S. João da Cruz:

"Em meu peito florido
Que, inteiro,
Para ele só guardava.

Quedou-se adormecido,
E eu, terna, o regalava,
E dos cedros o leque o refrescava.

Esquecida, quedei-me,
O rosto reclinado sobre o Amado;
Tudo cessou. Deixei-me.
Largando meu cuidado
Por entre as açucenas olvidado."

São João da Cruz
A Noite Escura

Há beleza, desejo, há carinho e muitas outras coisas sobre as quais não entendemos bem. Mas também há a definição máxima do edifício tomista que dizer que amar "é o desejo de eternidade do ser amado" e que, mesmo que meu desejo seja estar ao lado dele deitado sob seu peito, o que meu amor diz é que eu devo desejar que ele seja feliz, ainda que não seja deitado comigo, ouvindo o bater do seu coração e sua voz bem perto de mim. E então eu não poderei me intrometer, mesmo que meu sentimento seja sincero mais sincero ainda é o desejo de que ele seja feliz. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário