Sempre o via um pouco mais sério, não por conta de sua personalidade que, aquela hora, julgava ainda adormecida nas manhãs ensolaradas e nos dias mais frescos, quando já não o encontrava mais com a mesma frequência dos meses anteriores.
Me recordo de ter notado, para além da beleza simples e delicada, certa doença de pele que lhe dava um aspecto frágil, tão cheio de espinhas que aquela área esbranquiçada de seu rosto, encimada por pequeninas bolas vermelhas, fosse explodir em sangue e pus a qualquer momento. Mas pude acompanhar durante os meses algum tratamento funcionar. Percebi pelo aspecto brilhante de quem devia estar usando o protetor solar de alto fator, típico dos tratamentos dermocosméticos e até medicamentosos, que em algumas semanas, começou a uniformizar o tom e diminuir a violência das fissuras. Agora ele tem uma bochecha levemente mais clara que o restante da pele e um rosto iluminado, tratamento em curso.
A visão de hoje foi breve, apenas o tempo em que os trabalhadores cansados faziam a baldeação no terminal do Centro em direção a zona leste da cidade. Mas eu até mesmo fechei o exemplar de "No Caminho de Swann" que trazia nas mãos e que vinha me fazendo companhia ultimamente. Isso porque, enquanto Proust descrevia os arroubos ciumentos do seu personagem em meio a longas cenas de paragens e paisagens quase idílicas, eu é que me vi diante de um sorriso tão belo, genuíno e brilhante que apenas um grande escritor poderia registrar. Quisera eu poder tirar uma foto, dele sorrindo enquanto balançava os braços dados pelas mãos com uma garota, cujo rosto e presença ignorei, mas não pude, apenas esperei que o ronco alto do motor fosse pouco a pouco fazendo com que ele sumisse, passando pelas janelas como se eu corresse por uma galeria de fotografias. Ele ficou a sorrir e agitar os braços, eu reabri meu livro.
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Me deixei encantar por aquelas imagens, do homem grande, de personalidade parecida com a de um cachorro brincalhão, sempre sorridente e contente a correr ao redor de quem ama. O outro, ainda inseguro, mas percebendo os sinais que não podiam ser ignorados: o coração batendo forte quando o via, a saudades quando não o via, a confiança crescente e o medo que esse sentimento provocava por conta das lembranças. No passado, seu parceiro queria que ele mudasse para se adaptar aos outros.
Há aqui boa dose de complexidade. É certo que, num relacionamento, o caminho do meio é aquele que se torna mais justo para ambos, mas a mudança deve partir do coração daquele que sente que precisa mudar e não pode ser imposta, ainda mais ao custo da humilhação constante ou da invalidação. Não consigo deixar de pensar também no outro lado e no egoismo que há em se recusar completamente a enxergar o mundo dos outros.
Mas ele soube romper essa barreira e fazer com que o outro, enxergando que havia se fechado de tal modo que não via o quanto do mundo estava perdendo. Ao seu modo o carinho do outro o abriu, ao seu modo ele foi se permitindo, conhecer novos lugares, fazer novas coisas.
E então, quem o diria, ele aceitaria se aconchegar ao outro daquele modo? Meses atrás aquilo era impensável, ele não queria se aproximar de ninguém, só queria ficar sozinho. Mas ele aos poucos foi abrindo seu coração, com carinho, compreensão, sem o desejo de moldá-lo ao seu modo, mas se preocupando em deixa-lo sempre confortável... Assim, o tempo se encarregou de fazer a ternura a chave daquele coração que, agora, se expressa, mostra sua fragilidade mas também seu cuidado. Ele, embora antes não demonstrasse, também era capaz de amar e de se sentir confortável nos braços daquele homem do quarto ao lado.
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"A maioria das pessoas estão mortas e não sabem, ou estão vivas com charlatanismo. E o amor, em vez de dar, exige. E quem gosta de nós quer que sejamos alguma coisa de que eles precisam. Mentir dá remorso. E não mentir é um dom que o mundo não merece." (Clarice Lispector)
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