sábado, 31 de agosto de 2024

Mistério

"Privamo-nos para mantermos a nossa integridade, poupamos a nossa saúde, a nossa capacidade de gozar a vida, as nossas emoções, guardamo-nos para alguma coisa sem sequer saber o que essa coisa é. E este hábito de reprimir constantemente as nossas pulsões naturais é que faz de nós seres tão refinados. Porque é que não nos embriagamos? Porque a vergonha e os transtornos das dores de cabeça fazem nascer um desprazer mais importante que o prazer da embriaguez. Porque é que não nos apaixonamos todos os meses de novo? Porque, por altura de cada separação, uma parte dos nossos corações fica desfeita. Assim, esforçamo-nos mais por evitar o sofrimento do que na busca do prazer." (Sigmund Freud)

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Para onde será que ele vai? Aliás, para onde vão todos os rapazes bonitos que me chamam atenção nos dias que sucedem indefinidamente? Cada um com sua história, seu lugar, seu ideal de paraíso, seu cansaço a pesar as pálpebras de manhã ou no início da noite... Haverá uma espécie de recanto divino onde eles se encontram todos ou isso é um delírio de uma sexta cansada e preguiçosa? 

Para onde vai esse moço de boné azul virado para trás, com tatuagens pretas no braço até o cotovelo e um cabelo que ele talvez não devesse ter descolorido, pois o deixou com um aspecto tão pálido que me pergunto se ele não está anêmico, o que explicaria ele ter dormido instantes depois de se sentar no ônibus, pouco a frente de mim e se assustar levemente de vez em quando, imagino que com os solavancos do veículo ou com a música do fone de ouvido. Sua palidez anêmica, no entanto não diminuiu sua beleza, mas eu nada consigo abstrair de sua aparência. Não sei que personalidade pode ter, que tipo de música está ouvindo, ou um podcast sobre as eleições no estado de São Paulo. Ele está voltando para casa depois de um curso profissionalizante ou de um estágio? Ou será que já tem idade o bastante para trabalhar o dia todo como eu? 

É um mistério. Assim como o pequeno sinal na testa perto da sobrancelha ou se o outro menino na frente dele vai cortar a franja na próxima semana. E a paisagem continua mudando pelas janelas. Meus olhos doem de tanto terem sido fixados na tela do computador o dia todo, noto luzes ainda acesas em alguns prédios do centro, uma solitária luz amarela no topo de um edifício comercial. Alguém fazendo hora extra numa sexta-feira ainda mais triste, entediante e preguiçosa que a minha. 

Um mistério. 

E eu nem mesmo sei o nome dele.

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Falei brevemente com uma velha amiga ontem, o "velha" contendo certa dose de ironia pelo teor da conversa bem como do nosso próprio questionamento em estarmos velhos demais. Ela se encontra em situação análoga a minha, desencantada, medicada e profundamente sem esperança em si mesma e nos outros. As dores, os rompimentos constantes, as desilusões profundas, o contato com os homens em constante processo de destruição e autodestruição. Essa vida ferra com todos, é algo impressionante. Retomo a fala de Freud acima: já não buscamos mais prazer, somente fugir da dor. Queria me perder em alguns devaneios aqui, no sentido de existência e dor, mas acho que já falei demais sobre isso, e muitos outros antes de mim e atualmente também. Não há necessidade de falar mais, basta olhar ao redor. Basta fechar os olhos. Basta cumprimentar alguém na rua ou tentar conhecer alguém. É doloroso demais. 

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