quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

Palco escuro

Ato único.

A névoa que recobre a escuridão aos poucos mostra a silhueta de um homem. Sua figura se destaca em meio a sangrenta estrutura de uma realidade distinta, onde não há mais do que uma imensidão vazia, de fumaça fria, e tristeza. Aproximando-se daquela figura pobre, magra e curvada vê-se que ela chora. 

O homem chora. 

O homem ri.

No rosto do homem há apenas uma figura estranha, uma garatuja, mescla de horror com um sorriso: um quadro macabro erguendo-se sobre duas pernas secas em meio a noite escura e cinza. 

Ele seca suas lágrimas. 

Abre um doce sorriso.

Aos poucos as lágrimas brotam novamente, lentamente, em seus olhos fundos, marcados pelas escuras olheiras. E logo o sorriso desfigura-se novamente na mescla anterior. 

Seus músculos, rijos, como que molhados por uma chuva impiedosa já não mais atendem seus comandos. Seus ossos tremem até o tutano com a risada de um diabo que, soprando em seu ouvido, o retoma a tudo aquilo que lhe deixou daquela maneira. Ele tenta falar, mas sua voz falha, e apenas grunhidos se ouvem no eco daquele misterioso lugar. 

O diabo surge diante dele, e num rompante de desespero o homem consegue correr. Só quer saber de fugir dali, e usando todas as forças que lhe restam ele deposita em seus músculos e ossos, que gritam em protesto pelo esforço repentino, a esperança de sua salvação.

Mas não há como fugir dali. Primeiro por não se tratar de um lugar, o homem está preso em sua própria mente, e o demônio que o persegue, bem, esse é apenas uma manifestação de sua consciência distorcida. 

Ele tenta gritar, e novamente nada além de grunhidos saltam de seus pulmões em chamas. Leva as mãos a cabeça, na esperança de ao menos tapar a visão da horrível criatura que a poucos passos anuncia sua morte, com uma imensa lâmina embebida em sangue e veneno, prestes a lhe ceifar a vida. 

No entanto a morte não se aproxima dele, não lhe tira a vida, mas ergue-lhe a mão como um amigo faz ao seu próximo caído. Tomado então pela mão fria da morte, que não é mais do que ossos finos cobertos por uma quase imperceptível camada de pele cinza suja de sangue, ele dá alguns passos tímidos, enquanto em sua face, antes tomada pelo medo e escorrendo suor, estampa novamente a mescla de choro e sorriso. Ele sabe aonde a morte lhe vai leva-lo. 

Um espelho ergue-se a sua frente. Emoldurado de ouro envelhecido e já gasto pelas intempéries de um tempo incalculável.  Fitando a figura que vê refletida no espelho o homem é tomado pela confusão. 

O que é aquela coisa? 

É feia.

Velha.

Triste.

Treme como uma folha ao vento.

Chora.

Fede a medo.

E não parece ser capaz de sobreviver mais um minuto sequer.

Seus olhos amarelos e fundos estão manchados de sangue.

Sua pele coberta de suor.

Suas roupas sujas de lama. 

O homem então entra no espelho, tocando com sua face aquela face que lentamente se aproxima. 

Vê-se num mundo distinto. Um salão renascentista. Grande, iluminado, ornado de belas peças de mármore e madeira, encimado por uma abóbada gigantesca e minunciosamente trabalhada e, no centro, uma belíssima candeia de mil cristais. Ouve-se violinos, e uma valsa.

As pessoas dançam. Os homens cortejam as damas num ritual que deve terminar num frenesi luxuriante. A bebida forte faz efeito. 

Em meio a multidão que dança e entrega-se aos prazeres da carne duas figuras se destacam nos extremos do grande salão. 

Uma, bela e altiva, caminha de forma solene, deslizando, e atraindo sobre si as atenções de todos, que o olham com olhar de desejo, da mais imunda e pérfida cobiça. O outro, magro e nervoso, mas por algum motivo também atrai sobre si certa atenção. Talvez por caminhar em direção ao belo espécime que, parando a sua frente no centro do salão, lhe toma pelo braço e conduz-lhe a uma dança. 

Aquela dança termina numa corrida frenética, que culmina num êxtase animalesco, bestial, onde ambos entregam-se aos braços de uma força que não podem compreender, e nem tampouco conter. Como uma chama consome a lenha a luxúria consome-lhes a energia. 

O ar inebria-se de gemidos e impregna-se dos odores suaves daquela tórrida paixão. Já não há mais salão, e nem o mundo delimitado pelas formas definidas da realidade. Apenas um céu vermelho, enevoado, que reflete a paixão que no chão consome-se.

O teatro dos prazeres acontece por toda uma noite, e culmina, não uma, mas várias vezes, em apoteoses de gritos e sorrisos, embebidas em suor e ópio. 

Eles se entregam ao desejo.

Possuem um ao outro.

Dominam um ao outro.

Amam um ao outro.

E num rompante largam-se ao chão. 

Exaustos.

A manhã é prenunciada não pelo sol, que não existe mais naquele mundo, mas pela escuridão que retorna ao sair do espelho. 

O homem percebe então que recordou dos últimos momentos que passou ao lado de seu amado, em meio as loucuras de sua mente despedaçada. Seu amado, que foi-se na manhã seguinte nunca mais lhe deu notícias, e sequer ele soube seu nome, ou se existiu de fato. 

De volta a atmosfera de névoa e escuridão ele se entrega ao chão. 

Em seu semblante a já conhecida mescla de dor e alegria.

Agonia.

Chorando com as imagens que pulam em sua mente ele se entrega de vez aos tentáculos gelados da morte.

Mas não num mundo sem fim de fumaça fria.

Mas no seu quarto, apodrecido pelo horror da traição e do abandono.

Fim do ato.

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