terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

Sobre a existência e os limites de Deus

- Gabriel, estou beirando uma heresia.

- Diga.

- Olha só: ainda vai em contraposição com a primeira leitura de hoje. Acho que Deus não é perfeito! Ele tem defeitos, e sei de um. 

Na verdade, não estou certo quanto a defeitos, mas sei quem há um defeito! 

- E qual seria ele?

- Ele não joga xadrez comigo! Queria que ele jogasse. Melhores amigos jogam xadrez, e ele é meu único e melhor amigo!

- Ah bom.

- Estou falando sério! Ele não solta pipa também! Que amigo é esse?

- Tecnicamente ele solta pipa. Mas quanto ao xadrez, penso que você tenha razão.

- Solta?

- Sim. Filosófica e teologicamente falando ele é o fundamento da realidade. Então tudo o que existe necessita da fundamentação da sua existência em Deus. Por isso se considerar o vento que faz a pipa voar uma extensão do pensamento de Deus, é ele quem solta a pipa.

Por isso penso que não faça muito sentido filosófico dizer que Deus existe. Pois existir supõe criação, início, meio e fim e Deus metafisicamente tá acima de tudo isso. Deus não existe, ele é o fundamento da existência. "Por ele todas as coisas foram feitas" inclusive a existência!

- Mas Deus existe não é mesmo? E continua sem jogar xadrez comigo!

- Então, costumamos dizer que sim pra não chocar; mas Deus tá acima da existência pois ele criou a existência. Se ele criou a existência não podia existir nada antes, logo ele tá acima disso pois existir é uma forma inferior de ser, e só Deus é. 

E se você jogar sozinho? Não tenho resposta (pronta) pra isso. Mas vamos lá: o fato de ele não jogar xadrez pode ser considerado uma falha? Então ele não alimentar as crianças da África também o é? 

Acredito que a não participação dele na sua partida seja fruto do pecado original. Afinal no princípio Deus andava no paraíso e conversava com Adão diretamente. Se esse contato não fosse perdido, talvez hoje ele jogasse com você.

- Entendi. Porra Adão!

- No curso que estou fazendo, meu professor fala muito sobre o conhecimento. Nosso conhecimento é aprendido, adquirido. O conhecimento de Adão era infuso e perdemos isso também.

- E por que ele se afastou da gente pelo pecado original? Ele não poderia continuar comigo e eu mesmo com pecados, ainda jogar com ele?

- Na verdade quem se afastou foi Adão, ele (Deus) respeitou a decisão dele por conta do livre arbítrio. Se Adão quis desobedecer e se afastar, se Deus obrigasse sua presença estaria se contradizendo. E Deus não pode se contradizer.

Se você pedisse que eu me afastasse e ainda assim eu me forçasse a estar contigo, estaria te desrespeitando.

- Mas quem expulsou do paraíso foi o Abbá.

- Sim, e então?

-  Deus poderia esperar mais um tempo e assim eles se reconciliariam.

- Mas onde abundou o pecado, superabundou a graça. E então começou a História da Salvação. Deus não quis apenas se reconciliar, mas deu ao mundo algo ainda maior. Com efeito, ser um só com Deus é mais do que apenas conviver com Deus; Ele criou uma forma infinitamente superior de se reconciliar do q apenas readmitir-nos no paraíso, mas readmitir-nos no próprio seio.

- Mas ser um com Deus não é tanta coisa pois assim não jogo xadrez, não é?

- Você não vai querer e nem precisar, pois ser um só com Deus é inconcebivelmente superior a toda experiência humana, inclusive jogar xadrez. 

Eu por exemplo, temia não mais poder ouvir Beethoven, mas espero que os anjos cantem ainda melhor que o Corale da Nona Sinfonia. 

- Sim!

- Consegui te convencer? 

- Mas os humanos podem ser um com Deus? Ou temos que esperar o paraíso? Ou o santo já é um com Deus? Até eu ser um com Deus, não posso jogar xadrez com Deus?

- Aqui na Terra pode-se experimentar como é ser um só com Deus, como é nas experiências de tantos santos que foram arrebatados em êxtase. Pode-se conhecer, mas não viver plenamente. A Liturgia é uma das formas de ser um só com Deus, já que é uma antecipação da Liturgia Celeste, celebrada pela eternidade. Mas de fato ser um só com Deus só após a morte, onde seremos deuses, por participação, como disse S João da Cruz.

Expliquei direito? Saber como é a sensação não significa viver exatamente...

- Explicou sim, direitinho.

- Se possível, leia o Diálogo, de Santa Catarina (de Sena).

- Mas espera aí.  Não explicou tudo!

- Prossiga

- Isso não nega o fato de que até eu ser um com Deus, ele não vai jogar xadrez comigo! Nunca vou jogar xadrez com ele mesmo?

- Não vai. Mas você enxerga isso como uma limitação de Deus? Como se ele não pudesse jogar xadrez com você?

Mas ainda está no âmbito da possibilidade, então pode ser que um dia aconteça. Mas poder acontecer não quer dizer que vá acontecer.

- Sim, isso é uma limitação!

- Estou aqui, querendo jogar xadrez com meu melhor amigo, e ele não veio...

- Mas é uma limitação mais sua do que dele. No entanto se formos falar de limitação, eu proponho que pensemos sobre o paradoxo da onipotência. Que tem uma resposta mais simples do que parece.

 Se Deus pode tudo, ele pode criar uma pedra tão grande q ele mesmo não possa carregar ou destruir?

- Já escutei essa. Só Deus sabe responder.

- Ela parece complicada, mas não é... 

É uma pergunta errada, e se você tenta responder, inevitavelmente vai cair em contradição. Isso porque as pessoas tem uma concepção errada de onipotência. Onipotência é, para o senso comum, poder fazer qualquer coisa, mas não é bem assim! Por exemplo, eu e você podemos fazer coisas que Deus não pode, como pecar, trapacear e praticar o mal. Eu e você temos o poder de pecar se quisermos, Deus não. Mas então como dizer que Deus é onipotente se ele não pode tudo?

O conceito de onipotência na verdade não diz que ele pode tudo, mas que pode tudo aquilo que seja de sua natureza. E uma das características de Deus é a coerência. Outra característica é que Deus é infinito. Algo incoerente é algo ilógico, irracional. A incoerência da pergunta está em afirmar que algo finito e portanto quantificável (pedra) possa limitar o infinito (Deus). A pergunta mistura duas categorias de coisas, finito e infinito.

Então não, Deus não pode criar essa pedra. Mas isso não é uma limitação de Deus e sim da pedra, que sendo finita não pode limitar algo infinito. E a pedra não pode ser infinita porque pedra é sempre algo criado, existente e sempre finito. Se é infinito não pode ser pedra, e se é pedra não pode ser infinito. Isso é o princípio de não contradição, onde uma coisa não pode ser e não ser ela mesma ao mesmo tempo.

Outro exemplo seria sugerir que Deus criasse um quadrado redondo. Ora, se é redondo não pode ser quadrado pois ambas as coisas estão em categorias diferentes, ou seja, quadrado e redondo. E isso faz parte da estrutura da realidade, e sendo Deus fundamento da realidade, ele não poderia fazê-lo pois seria incoerente, e Deus não pode ser incoerente.

Logo, o ato de jogar ou não xadrez, sendo ação humana é portanto ação finita, e a sua não realização não limita a Deus pois algo finito não pode limitar a Deus.

A menos que você seja um menino muito santo e que Jesus se encarne novamente pra jogar contigo!

Será que você ia conseguir ganhar? Digo, você não vai, mas saber q isso está no espectro da possibilidade é deveras interessante.

Mas opa, com isso eu percebi q deixei passar uma coisa: se essa possibilidade é probabilisticamente possível, ainda que improvável, significa que sim, Deus pode jogar xadrez com você! Pq se ele pode conversar e se apresentar fisicamente, jogar não seria problema. Logo, alegre-se, você pode jogar xadrez com Deus. Você só não vai, mas pode!

´- Eu só não vou. Mas posso. E acho que ele perderia!

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