quarta-feira, 16 de maio de 2018

Pode ficar comigo!

Ele se viu estranhamente consciente em meio a escuridão. Não, isto está errado, não estava consciente, mas recuperando sua consciência. Não havia mais do que o som delicado de alguns pássaros cantando longe dali. Ele tentou encontrar outros sons que lhe fossem familiar, mas uma densa névoa lhe cobria a mente e tornava as coisas confusas demais para serem compreendidas. 

Abriu os olhos mas rapidamente os fechou, ao sentir a dor de uma luminosidade forte que o assustou. Apertando então os olhos e fazendo uma careta ele sentiu uma estranha consciência de seu rosto que doía, como se tivesse levado uma forte bofetada. Seus lábios pareciam inchados, e sentiu que estavam doloridos ao se mexerem em reação a careta que a luz lhe provocou. 

Um segundo se passou e ele se perguntou como sua mente despertara daquele modo. Parecia acordar de um sono, mas fora tão profundo que não se recordava de ter dormido. Na verdade não se lembrava de nada, e agora que a névoa mental parecia começar a dissipar com a dor que lhe cobria a face, e agora se espalhava pelo pescoço e seu dorso, as incoerência e as lacunas em sua memória o preocuparam. 

O doce aroma de flores pareceu inundar o ambiente, pois tomou conta de seus sentidos, que ficaram ali por alguns minutos, ainda afetado pela letargia, como se tivesse sido sedado, enquanto a dor se espalhava como chama, já chegando aos dedos das mãos e quase a altura dos joelhos. 

O jovem perdido começou a tomar consciência que seus movimentos retornavam lentamente, junto com a dor, e notou que conseguia mover um poucos os dedos, o que despertou em todo um corpo um protesto silencioso ao impulso nervoso que estranhamente se espalhou por todo o seu ser.

Arriscou abrir novamente os olhos, dessa vez divagar, e fitou o teto desconhecido por alguns instantes, que para ele pareceram horas. Não entendia o que fazia ali, mas tampouco seu corpo tinha forças para reagir e olhar em volta para entender onde exatamente era ali.

O teto era de uma madeira escura, e um gigantesco lustre se erguia imponentemente bem acima de sua cabeça. A luz que parecia entrar por uma janela se refletia nos fractais do lustre, fazendo brilhar pequenas estrelas brancas, azuis e lilás que o hipnotizaram. 

Ele não soube quanto tempo transcorrera até que conseguira erguer um braço na altura de sua cabeça, para fitar um braço envolto em faixas brancas que ele não reconhecera. Não era seu braço. Se bem que coberto daquele jeito poderia se o braço de qualquer um. Ele baixou o braço enquanto seu corpo rugia clamando pela imobilidade de antes, e girou lentamente o pescoço em direção a luz que refletia no lustre. 

Conforme supunha ela vinha de uma gigantesca janela que se abria ao seu lado e cobria quase que a parede inteira. Uma delicada cortina branca voava delicadamente com a brisa que ali entrava, e ele mais uma vez ouviu o canto delicado e distante dos pássaros. 

Girou a cabeça para o outro lado, tentando ver o resto daquele lugar, sem ainda reconhecer onde era, mas não encontrou muita coisa, apenas uma grande porta fechada. Sentiu que aos seus pés ainda havia uma parte do quarto que ele ainda não vira, e tentou se erguer sob os cotovelos para tentar observar, ao que uma voz rompeu o silêncio, o assustando:

- Não devia se levantar ainda. Seu corpo vai doer. 

Ele não reconheceu de quem era aquela voz, mas sentiu como se já tivesse ouvido antes. Não conseguiu nem mesmo ver quem tinha dito aquilo. Era uma voz doce, baixa, aveludada, e ele ficou vários segundos processando o que acabara de ouvir, sem conseguir responder. Quando finalmente entendeu que acordara num quarto desconhecido, com muita dor, e que agora alguém lhe falava, ele grunhiu, numa falha tentativa de perguntar o que estava acontecendo. A pessoa pareceu entender, e ele sentiu que alguém havia sentado na cama.

- Ainda não consegue falar não é? Tudo bem, não se assuste, por favor, mas preciso trocar seus curativos. 

Ele sentiu um par de mãos delicadas tocarem-lhe os ombros, e descerem pela sua cintura, onde algo gelado encostou em sua pele, fazendo-o tremer de susto. A pessoa era cuidadosa, pois ele sentiu menos dor em ser revirado daquela forma do que quando simplesmente ergueu o braço. Agora completamente consciente de seu corpo ele percebeu que não estava usando nenhuma roupa, apenas com muitas partes do seu corpo enfaixadas. O bom senso lhe alertou para fazer o contrário, mas ele fechou os olhos e simplesmente esperou que a pessoa terminasse de trocar as faixas. Por fim apenas o seu peito e o braço direito ainda permaneceu enfaixado. Quando ouviu a pessoa se afastar ele tornou a abrir os olhos, e dessa vez conseguiu falar:

- Que lugar é esse?

A pessoa havia retornado, e estava novamente ao seu lado, e ele viu ser um rapaz, conhecido, mas que ele não recordava o nome. Era moreno e muito novo, tinha o cabelo negro, caindo num franja pela testa. Os lábios vermelhos se moveram em palavras que mais uma vez ressoavam em seu ser.

- Minha casa. - Disse educadamente. 

- O que houve? 

- Eu encontrei você caído, e não podia deixar você lá. - Disse mais uma vez com uma voz de veludo que, por algum motivo, o acalmou.

- Lá? 

- Eu vou explicar tudo, mas por favor, descanse! Depois conversamos...

Mas ele foi interrompido pelo rapaz que tentava se levantar mais uma vez sob os cotovelos. E conseguira se erguer e sentar, mas não sem quase gritar de dor e fazer novamente uma grande careta que só serviu para lhe fazer mais dor ainda.

- Tudo bem, tudo bem, eu digo, mas deite-se de novo ou suas feridas vão se abrir. - O garoto moreno acrescentou rapidamente, ao perceber que teria ainda mais trabalho se o outro continuasse se mexendo daquele jeito. 

Quando finalmente conseguiu fazer o outro se deitar novamente ele o observou por um instante, enquanto os olhos negros e curiosos do rapaz deitado ao seu lado lhe faziam um milhão de perguntas que ele sequer imaginava em conseguir dizer. O rapaz estava pálido, e já deveria ser bem branco normalmente. Os cabelos loiros estavam despenteados, e a luz do sol que entrava pela janela fazia uma bela combinação com sua pele alva, que brilhava como ouro naquela selva de mogno.

O moreno encontrou o garoto loiro caído numa rua escura, com as roupas rasgadas, em meio uma baita tempestade. Aparentemente fora espancado e deixado ali para morrer. Tinha cortes profundos de faca por todo o corpo e um em especial que cobria todo seu peito jorrava sangue quando, por um milagre, fora encontrado. Ele contou isso ao seu paciente, mas não explicou como o levara ate ali e nem como o recuperou se estava praticamente morto naquela noite. Muito minutos se passaram desde que o moreno terminou de falara, até que o outro disse, depois de fitar com firmeza a janela e começar a chorar:

- Eu conheço você - Disse o menino machucado, não como quem agradece, mas como se tentasse recordar com aquela frase o nome do seu salvador. - Mas podia ter me deixado lá. 

O outro se sentiu ofendido, pois sorriu levemente quando o loiro começou a falar, mas baixou a cabeça numa estranha expressão ao fim da frase. Ignorou o que ele disse e simplesmente acrescentou: 

- Está com fome?

Ele ainda não se dera conta do quanto estava faminto. Talvez as informações ainda estivessem confusas em sua cabeça, mas agora ele tinha a certeza de que estava com fome. 

- Deixe-me esquentar a sopa pra você, já deve ter esfriado a essa altura. - Disse se levantando e indo na direção de uma mesa que ficava aos pés da cama. Acenou graciosamente para a tigela e retornou com a sopa fumegante. 

Com um só braço ele ergueu o outro delicadamente, que sem protestar se levantou, já que só senti dor quando se mexia sozinho. Sem conseguir destreza com os braços o outro teve de colocar a sopa em sua boca, que o aqueceu subitamente. Ele ficou vermelho, o que deve ter sido bem óbvio dada sua pele clara, mas o outro não soube se era vergonha por estar ali nu sendo alimentado por um completo estranho ou se era efeito do alimento. 

Ele tomou toda a sopa, e sentiu-se revigorado ao fim, já não sentindo mais dor e bem mais confortável com aquele situação. 

- O que é esse calor? - Disse tocando seu coração, agarrando as faixas que o enrolavam, os olhos em lágrimas. 

- Desculpe? -  O outro perguntou, confuso.

- Não deveria ter me ajudado. Devia ter me deixado lá. Eu queria ter ficado lá! - Falou entre lágrimas e soluços, já entrando em desespero. 

- Sinto muito, acho que não devia ter retirado minha pressão espiritual de você tão rapidamente. - Disse o rapaz moreno tocando novamente os ombros do loiro que rapidamente se acalmou. Secou suas lágrimas, confuso, sem entender o significado daquelas palavras.

- Eu infelizmente vi tudo o que te aconteceu naquela noite, antes de te achar, sinto muito. Eu sei o que ela te disse, e também sei que você roubou aquele rapaz, que chamou os amigos e o seguiu.  - O garoto se assustou. Como ele poderia saber daquilo? - Sei também que você queria que o tivesse largado. Mas, você se lembra o que me disse quando o encontrei? - Perguntou sem olhar o outro nos olhos, que novamente se enchiam de lágrimas. 

- Se soubesse que os anjos eram tão bonitos, tinha morrido antes. - Disse, numa mescla de pavor e vergonha ao se recordar do encontro dos dois naquele beco escuro, quando o garoto ergueu seu corpo ensanguentado, o rosto vermelho como uma pimenta. - E você sorriu... 

- Não poderia deixar você lá, não depois de ouvir uma coisa tão engraçada assim.

- Eu estava morrendo, não sabia o que estava dizendo Gabriel - Disse finalmente recordando o nome e tudo o mais que até então se mantivera inebriado, subitamente acordado por aquele ultimo toque nos ombros. 

- Por isso mesmo, você me disse aquilo no momento mais sincero da sua alma. Deveria ter deixado você la? - Disse num sorriso doce que desconsertou o outro. - Por isso trouxe você comigo. 

- Devia. - Disse em meio as lágrimas.

- Não sou mais um anjo? Devia ter deixado você la? 

- Devia. - Disse, soluçando.

- Então não ficou feliz em ver que eu estava te tirando dali? Devia ter te deixado la?

- Não, por favor, não! - Disse, dessa vez segurando o lençol com força, enquanto as lágrimas pesadas caiam em seu colo.

- Tudo bem. - Disse o salvador, abraçando-o com uma súbita onda de calor que foi se espalhando lentamente pelo corpo do jovem ferido. - Você pode ficar comigo!

Nenhum comentário:

Postar um comentário