sábado, 12 de fevereiro de 2022

Gotas

Eu não quero mais falar sobre essas coisas, sempre as mesmas coisas. Não quero falar do medo que me assombra todas as noites, não quero falar de como me sinto sozinho e incompreendido, não quero falar de como não encontro nenhum significado na minha vida. Não quero falar disso. 

Mas é o que há no meu coração, é o que tem me afligido e, por isso, é só o que tenho a dizer. Infelizmente a minha experiência humana se limita a essas breves realidades de dor e sofrimento, pequenos se comparados com a dor e o sofrimento de tantos, mas ainda assim são a minha dor e o meu sofrimento, é o meu sangue derramado. Por isso eu não consigo falar sobre outra coisa, pois conquanto escrevo me derramando completamente, é o meu sangue que pinta essas letras, gota a gota. 

E cada uma dessas gotas contém minha experiência, elas dão testemunho do imenso vazio que me consome, dos dias parados e das noites tenebrosas, dos anseios e dos pavores que me derrotam dia após dia, que me reduzem a cinzas, dos meus renascimentos e de volta as cinzas, num ciclo interminável, na roda do destino que nunca para de girar. 

E a roda da fortuna começa a girar novamente, eu sou lançado a um dos reinos de existência, e cruzarei todas as seis existências em um dia, sendo deus, sendo demônio, sendo homem, sendo animal, sendo fantasma, num inferno. 

Experimento todas as existências, abomino o destino de estar preso a essa roda de sofrimento como abomino a minha aparência de besta no espelho, como abomino os meus apetites animalescos mais baixos, como abomino as guerras intermináveis que me destroem cada dia mais, destruindo até o átomo, não deixando nada, e a cada novo dia eu renasço para morrer novamente, depois de cada existência. E cada uma delas é uma gota no ser, apenas uma gota no imenso oceano desconhecido do ser. 

Onde estarão os devas para me resgatar? Mas de que adianta se lá eu posso tornar a cair em qualquer um dos reinos novamente? Não há patrono que me possa resgatar. E eu, pobre, que farei, a quem invocarei quando tudo já foi chamado a juízo e o justo Rei já decidiu o meu castigo, que parece ser a eterna repetição dos meus ciclos?

De repente cessou a erupção
fez-se silêncio no seu coração
calou-se a multidão
e o tudo retornou ao nada

Silêncio e vazio por toda parte

E um dia inteiro se passou

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