sábado, 26 de fevereiro de 2022

Ilusão

É como uma tempestade. 

Ela se anuncia com nuvens grossas e pesadas que transformam qualquer paisagem com uma lente cinza e quando chega, o faz com uma violência tal que ninguém pode se eximir de sentir os impactos da sua presença. E ela tudo abala, sopra ventos que lançam com violência coisas aos ares, os raios e trovões cada vez mais pertos e altos dão testemunho de sua força esmagadora. Num clarão e num estrondo o mundo todo para e levanta os olhos ao céu, para sentir as gotas pesadas baterem com força contra janelas e peles descobertas, é como se a ira do mundo se derramasse por sobre casas e ruas. 

Não há como fugir dela, uma tempestade sempre alcança. Só o que posso fazer é esperar, por longas noites, que ela passe e dê lugar novamente ao céu claro e límpido, ao sol que faz as gotículas de água lentamente desaparecerem.

É a quarta vez essa semana que eu recorro a eles. É como se não quisesse mais viver e tivesse vontade apenas de dormir, para não ver o mundo, não ver o outro. É como disse no outro dia, eu não sou um pessimista, sou um realista de luto, alguém que já desistiu de tentar, já desistiu até mesmo de observar o mundo. Tudo o que me toma a atenção agora são breves instantes de lucidez entre uma música e outra, antes que o próximo remédio faça efeito. Antes que meus sentidos comecem a anuviar-se e eu pouco a pouco perca a consciência mergulhando no delicioso oceano do sono profundo, abraçado por Hypnos, segurando sua mão enquanto ele me leva para o profundo domínio dos sonhos. 

Queria ser mais, explorar até os últimos limites as minhas potencialidades. Quantas línguas eu poderia falar hoje? Que emprego bem sucedido poderia fazer cair muito dinheiro na minha conta? Quantas experiências, quantas pessoas eu poderia conhecer?  Uma vida inteira que poderia ter sido e que não foi. Potencial desperdiçado, apenas isso. Tempestades que destruíam o porto donde deveriam partir as minhas viagens. E cá estou, no porto destruído, vendo a próxima tempestade que se aproxima, e sem saber se vou sobreviver a ela também. 

O sono já me entorpece os sentidos, é hora de partir, de me entregar, de sonhar com um mundo onde eu consiga me realizar, de sonhar com algo melhor do que essa realidade fria. Sonhar mas um sonho impossível. Iludido por Morfeu. 

As palavras dos livros não têm conseguido me prender esses dias, uma espécie de ressaca literária, eu leio e as palavras não se fixam completamente, minha mente vaga para longe dali. As palavras baixas dos contos eróticos parecem prender mais a minha mente, mas até elas evanescem logo. E parece que minha mente tem problemas pra se fixar em coisas reais, está sempre flutuando no mundo das ideias platônicas, nunca no mundo real. Mesmo quando eu me deito no sofá ou na cama e me incomodo com o calor a minha mente logo se põe a viajar, ela não se detém. E então eu viajo, sem que consiga usar como roteiro o livro que comecei agora à tarde, sem que eu possa seguir um sonho acordado dirigido. É como se apenas meu corpo vivesse preso as leis desse mundo, mas a minha mente, meu espírito, vagasse livremente por outras realidades, onde eu não sou apenas eu, mas onde eu sou mais e melhor. Trata-se de outra ilusão. 

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