segunda-feira, 14 de agosto de 2017

Sobre a afeição

Bem, nem de todo ruins são os efeitos do uso das redes sociais. Em meio ao caos do compartilhamento em massa de informações inúteis que passam aos usuários a falsa sensação de que tudo está muito bem, ou pior, que leva aos mesmos a se fecharem em redomas de sofrimento e autopiedade movidos pelos constantes textos e posts tristes e com conteúdo depressivo que lá é postado. As vezes, no entanto, encontramos pérolas dignas de reflexão... 

Foi o que me aconteceu hoje, em meio uma passada rápida pela timeline encontrei um texto de Santo Afonso Maria de Ligório, que coincidentemente se adequou bem ao que tenho vivido atualmente, e por isso resolvi meditar uma pouco mais sobre ele... O texto era um excerto do "Tratado da Castidade" e decidi transcrever aqui:

AFEIÇÃO PERIGOSA - PESSOAS PIEDOSAS 

Não repliques também que não há perigo, porque a pessoa de que se trata é piedosa. São Tomás de Aquino diz (De mod. conf., c. 14): "Quanto mais santas são as pessoas pelas quais sentimos afeição particular, tanto mais devemos nos acautelar, porque o alto apreço que fazemos de sua virtude mais nos estimula ainda a amá-las". O padre Sertório Caputo, da Companhia de Jesus, diz: "O demônio, a princípio, nos inspira amor à virtude daquela pessoa, depois o amor à própria pessoa e, finalmente, nos lança na perdição". O Doutor Angélico faz notar que o demônio sabe perfeitamente esconder um tal perigo: no começo não dispara seta alguma que pareça envenenada, mas só tais que excitem a afeição, ocasionando leves feridas do coração; em seguida, quando o amor já está aceso, essas pessoas já não se tratam mais como anjos, mas como homens de carne e sangue: trocam repetidos olhares e palavras amorosas, desejam estar muitas vezes a sós, juntas e, por fim, a piedade espiritual degenera em amor carnal. 

São Boaventura indica cinco sinais dos quais se pode deduzir se a afeição que a alguém nos prende é impura. Primeiro: se se entretêm conversas inúteis; e inúteis são todas as que levam muito tempo. Segundo: se ocorrem olhares e louvores mútuos. Terceiro: se se desculpam as faltas reciprocamente [evitando correções para não desagradar]. Quarto: se aparecem pequenos ciúmes. Quinto: se a separação causa certa inquietação. Eu ajunto ainda: Se se sente grande prazer e gosto nas maneiras ou gentileza natural da pessoa amada, se deseja que a afeição seja correspondida, e se se não gosta de que outros observem, ouçam ou falem disso. 

(Santo Afonso Maria de Ligório, "Tratado da Castidade".)

Primeiramente me decidi por lê-lo devido ao título, que me recordou os muitos relacionamentos perigosos que vivi e que tenho vivido. Não raramente o meu afeto desregrado pelas pessoas é caso de sofrimento para meu coração, e não obstante, é causa de condenação para  minha alma. 

Recentemente me vi estimulado a apreciar uma pessoa de grande santidade, e maravilhado por suas qualidades cristãs eu me ceguei e fui para ele para mim motivo e causa de pecado. 

Sua postura correta, sua maneira simples e calma de falar com profundidade me deixaram como que cego por sua aparente beleza cristã. Logo me vi apegado a sua conduta, a sua ética, e pouco tempo depois estava convencido de sua santidade de vida, e como disse o santo, o amor que sentia por suas virtudes se tornou amor a própria pessoa e então já era tarde demais. Já não conseguia mais apenas falar sobre coisas espirituais com ele, e as nossas conversas se tornaram cada vez mais longas, e os assuntos espirituais quase já não surgiam. Passamos das reflexões bíblicas e doutrinárias as reflexões sobre amizade e relacionamentos, passamos do amor à carne. 

Percebi que já não éramos mais pessoas buscando a santidade de vida, mas apenas pessoas buscando satisfazer os próprios desejos, sejam eles de conhecimento ou de outros tipos. E então aos poucos eu fui compreendendo que a relação tinha sido envenenada pela afeição. Faltou temperança no trato e fomos displicentes no conversar. O apego crescente fez com que se perdesse o lado espiritual e que este fosse substituído pura e simplesmente pelo lado da carne, da mente humana que precisava ser aplacada em sua sede por conhecimento, de um lado, e por afeto, de outro. 

Agora analisando ainda mais o texto e a relação que se passou vejo que seguimos os mesmos sinais indicados por São Boaventura. Nos ocupávamos por horas em sorrir de coisas bobas em sua maioria, e os tratados espirituais já quase nem surgiam em nossas conversas. Eu o louvava frequentemente por sua postura ilibida e por seu caráter distinto, enquanto ele sempre me procurava para perguntar algo que dificilmente compreenderia sozinho, fazendo com que me sentisse mais sábio do que de fato sou. Eu buscava ignorar os pequenos defeitos que ele tinha, para não chatear, pois temia que se afastasse de mim. A essa altura o meu apego já era tanto a distância e as outras amizades dele já me incomodavam e o pior de tudo, passei a desejar sempre mais a sua presença. Mudei horários para vê-lo, mudei posturas para agradá-lo e no fim, só depois de um longo tempo, já cego pela névoa do afeto desregrado é que percebi o quanto aquela relação tinha se tornado perigosa para ambos. 

Essa infelizmente se acabou. Talvez eu não fique mais no caminho da santidade que ele certamente alcançará, e eu trilharei um outro caminho, que ainda não sei até onde me levará, apenas sei que ele não estará lá.

Noto porém que tenho novamente caído nas mesmas armadilhas, dessa vez com outra pessoa, acreditando estar agora no ponto de sentir ciúmes, e de me agradar demasiadamente com nossos encontros. Assustado com o aviso do santo eu preciso rever as minhas amizades, preciso rever a forma como trato os outros, e principalmente preciso rever o sentimento que alimento ao me permitir ser afetado pelo próximo em minha vida. Nesse exato momento, por exemplo, meu coração arde de ódio por saber que ele pode estar com outra pessoa, ou sendo feliz sem mim ao seu lado. Um sinal claro de uma luxúria desregrada e de uma completa falta de temperança, além claro de uma patológica necessidade de atenção e afeto.

Como essencialmente carente, todo relacionamento para mim já se inicia com uma forte carga emocional e afetiva. Poucas palavras são necessárias para que eu me apegue, e menos ainda são necessárias para que esse apego cresça, e se transforme em verdadeiras obsessões onde acabo cego por meus próprios sentimentos e sem capacidade de discernir o certo do errado, ou de identificar a linha tênue que divide o normal do exagero no trato com o outro. 

Um outro ponto a ser destacado é o da forma como as pessoas piedosas atraem a nossa atenção. Elas são, ao menos para mim, como rosas de doce perfume e beleza particulares. Nos atraem com o doce perfume da sedução mas escondem em si o perigo do apego que leva ao pecado da carne. Para tal seria melhor que as pessoas se ocupassem umas com as outras apenas no mínimo relacionamento possível, afim de minimizar possíveis perigos para com a santidade do outro e a nossa própria. Não nos deixemos atrais por seus perfumes doces, não botemos em risco nossa salvação e nem a de nosso próximo apenas por relacionamentos aparentemente saudáveis, mas que escondem um grande perigo a salvação das almas.

Percebo que a temperança tem de fazer parte do meu cotidiano. Buscar falar ao outro, ainda que seja pessoa de grande espiritualidade, apenas o indispensável, sem dispensar louvores desnecessários ou sem permitir que suas virtudes me ceguem para o verdadeiro sentido da amizade. Se um dos dois será afastado de Deus por conta da amizade não pode surgir daí nenhum fruto bom, mas pelo contrário, apenas resultará a nós dor e sofrimento, como aconteceu comigo e o homem que antes tinha como meu amigo. 

A aproximação é perigosa, e como o vício do álcool pode ser quase irreversível se não houver temperança e equilíbrio desde o início de toda e qualquer amizade. 

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