quarta-feira, 27 de setembro de 2017

Resenha - Music For People In Trouble

Decidi ouvir, nessa tarde fria de quarta, um álbum indicado pelo meu ex-namorado, de uma cantora que ele mesmo havia me apresentado tempos atrás, e que gostei bastante. Susanne Sundfør é uma artista norueguesa que eu nunca havia ouvido falar, pois de fato não é muito conhecida no cenário mais óbvio da música, por assim dizer, o que nos mostra duas coisas: Primeiramente que quantidade de vendas e mídias internacionais não é sinônimo de qualidade e que o desconhecido e enevoado é quase sempre mais interessante do aquilo que se revela a luz do sol, justamente por sua beleza misteriosa. 

Seu último álbum, Music For People In Trouble, foi lançado ainda esse ano e nos leva a uma viagem fantástica, completamente diferente das que estamos habituados a fazer com as musicas mais populares... 

Mantra abre o álbum, e começa de forma tão delicada... De fato me recordou aqueles momentos de concentração onde, conduzidos por uma mão somos levados a contemplar uma realidade superior. O instrumental simples fez essa condução enquanto a voz era a realidade. Uma combinação q me recordou as vocalises medievais por conta da combinação voz e instrumento. Também tem uma pitadinha da musica autenticamente italiana, daquelas que se ouve nas sacadas de restaurantes nas manhãs frias do inverno.

Reincarnation se iniciou com um vocal forte, me deu uma sensação de segurança, como alguém q diz 'escute o que te digo', e logo depois se misturou com o instrumental formando uma cornucópia de cores. Nada brilhante, nada forte, mas como se um véu cobrisse algo q estando bem a nossa vista ficasse anuviado. Gosto dessa sensação, é bem propícia a contemplação e poucos são os artistas que conseguem esse efeito. 

Good Luck, Bad Luck é aberta com o próprio título e parece fazer como uma viagem ao passado. Enquanto ouvia, me sentia alguém preso pela fina corda do destino, que mesmo invisível é forte o suficiente para nos prender. A exploração do melisma no fim de algumas frases salientou o sofrimento que é não conseguir romper o ciclo da samsara, do sofrimento. E por fim, na última metade somos levados pelo instrumental a essa realidade meio etérea, em que o claro e o escuro se contrastam.

Estranho o fato de uma faixa chamada The Sound Of War começar com o som da natureza, águas e aves, mas é isso que é a guerra para alguns, algo tão poderoso quanto a própria natureza, que pode ser delicada como uma fonte cristalina que sacia a sede ou letal quanto uma enchente que destrói tudo por onde passa. A guerra é também o fim da alegria, representada pelo canto das aves, e que deixa lugar apenas ao sentimentos de incapacidade, que é o que sentimos na combinação entre os acordes simples e com uma voz profunda em sentimento, sem excessos, comedida, que nos dá a sensação de ainda estar presa pelo medo dos inimigos. A terça parte da faixa é tomada por um crescente suspense, que me recordou a apreensão que diziam sentir os soldados entre uma batalha e outra. Também é como se ouvíssemos aviões a lançarem-se impiedosamente contra seus alvos, culminando num grito de horror. Ela termina resiliente, contemplativa, como dizem que nos sentimos face a face com a morte. É a faixa mais longa do album e a mais complexa até aqui.

A faixa que dá título ao álbum, Music For People In Trouble, se explica sozinha. Seus sons estranhos, tem uma forte influencia daquela criação experimental, que combina sons aparentemente aleatórios, amarrando-os de tal forma que adquiram um significado, este que penso ser pessoal a cada ouvinte. Essa combinação estranha que domina a primeira metade da faixa mostra justamente como nos sentimos quando mergulhados num vórtice de dor e horror. A segunda metade nos entrega aos braços da resiliência, e mostra que os problemas tem um fim, mas não é otimista ou positivista, apenas realista em mostrar que de alguma forma as dificuldades nos tornam mais fortes.

Continuando nossa jornada, Bedtime Story é como se levasse a cama, depois de noites mal dormidas e dores incessantes, e nos dá aquela sensação de alguém que está a "lamber as próprias feridas", em estado de convalescença, ainda não completa, mas iniciando-se. Algumas interferências ao longo da faixa, que parecem destoar do instrumental bem demarcado, principalmente pelo som do clarinete, nos mostra as reminiscências da dor, que não pode ser esquecida completamente, mas amenizada. 

Undercover nos lança numa realidade escura, como se a vida tivesse se tornado cinza e aos poucos fôssemos descobrindo a cor, mas sem nos desprender do cinza. De fato todo o álbum até aqui se mostrou cinza, um tanto quanto sóbrio, mas com uma pitada de carmesim e ébano aqui e ali. Enquanto ouvia a atmosfera se abria a outros matizes, eu vi o ocre, o marfim, o mogno, e fui lançado de volta ao cinza, que por fim se findou e renasceu na faixa seguinte.

No One Believes In Love Anymore nos retoma o cinza etéreo e monocromático. A combinação voz e piano é nostálgica, mas não como quem quer reviver os tempos dourados, mas como alguém que se decidiu a não mais buscar esperanças no amor, de alguém que não mais acredita no amor, como bem diz o próprio título. Outros instrumentos substituem a voz no fim da faixa, mas a atmosfera se mantém, com uma nostalgia crescente, bem característica dos instrumentos de sopro...

A penúltima faixa, The Golden Age, começa com uma narração e depois nos entrega aos braços de um sentimento clássico, como o próprio nome diz, dourado! Há aqui um contraste entre a prata oxidada do instrumental, que me remeteu ao período mais clássico de Mozart ou o mais sério de Haydn, e a voz, que tem uma pitada de romance. Romance esse que é tomado pelo piano, minimalista mas um tanto quanto emotivo, tal qual um Chopin comedido, que flutua entre a sobriedade e a embriaguez. 

Mountaineers conta com a participação de um vocal masculino, que até então apenas tinha aparecido narrando e não cantando em faixas anteriores, e nos leva justamente a uma aura montanhesca, quase monástica. Distante e firme, porém sem desconhecer as desgraças da realidade. Parecemos ouvir um cantor gregoriano que se revoltou e resolveu cantar as misérias da existências, ao invés de declarar as maravilhas da criação. Aos poucos a voz da cantora surge no horizonte, apenas para nos entregar a uma atmosfera ainda mais superior que a da montanha. Como se dissesse "já chegamos até aqui, não paremos, sigamos em frente!" A combinação do vocal coral ao órgão nos leva exatamente ao céu, mais alto do que a montanha, e termina como o mesmo, sem que possamos ver ou entender o seu final. É como um retrato da vida, cujos ensinamentos não nos ofertam uma visão segura do que há de vir, mas apenas nos lança a céus desconhecidos, futuros... 

Chegamos ao fim do álbum com a impressão de uma profunda reflexão sobre a própria existência, mas não com uma conclusão. Afinal a existência, a vida, não nos oferta nada de certo ou definido, mas apenas nos lança sobre uma miríade de possibilidades que, mesmo sendo cinzas, e as vezes nos reduzindo às cinzas, nos ensinam mais do que as cores... 

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