terça-feira, 31 de julho de 2018

A música dos homens, e a música dos anjos


Gustav Mahler (1860-1911)
Sinfonia n.º 4 em Sol maior

I. Bedächtig. Nicht eilen

(Prudente, não acelerado)

Numa alegre e brilhante campina o sol brilha forte, as crianças correm pra lá e pra cá, enquanto suas mães estendem os lençóis alvejados nas cordas. Alguns homens vem caminhando do campo, com as testas molhadas do suor do dia de trabalho. As moças dançam, os rapazes as olham de longe e tocam seus tamborins, os velhos bebem e comentam o quanto as coisas mudaram naquele lugar que mais parece ter se cristalizado no tempo. 

A tarde vai aos poucos transformado a luz clara do sol num esverdeado escuro do anoitecer. As luzes se acendem aqui e ali. Os pontinhos amarelos se destacam na imensa colcha azul da noite, salpicada de estrelas. O som dos instrumentos se mistura com o o burburinho das vozes e das risadas. Não é uma festa especial, mas ali, todas as noites são uma festa. Os homens agradecem o dia de trabalho no campo bebendo, as mulheres conversam, depois de muito se ocuparem das casas e das crianças, que agora dormem.

O bosque que rodeia aquela pequenina vila é iluminado pelas lúgubres lamparinas, e o som das musicas a distância fazem os animaizinhos dormirem, pois já estão habituados com aquela cantoria. Uma bela moça encanta os olhos dos rapazes enquanto dança, seus longos cabelos ondulados caem por sobre suas costas, terminando na altura de sua fina cintura. Ela agita a saia na direção de um jovem rapaz que, no entanto, é o único que ali não olha encantado para ela, mas que fita fixamente uma janela pouco iluminada distante dali.

O tempo passa. Alguns cãezinhos correm pra lá e pra cá, atrás das sobras que caem dos pratos daqueles que estão comendo sentados às portas das casas. A essa altura alguns já exageraram na bebida, e o efeito anestésico do álcool começa por fazer efeito. O sorriso já é bobo, as faces coradas.  A moça já não mais tenta conquistar um pretendente para aquela noite, e decidiu por sentar-se com suas amigas. Os rapazes que não beberam voltaram para suas casas, e os outros estão rindo e contando histórias de suas aventuras, muitas das quais todos ali sabem não passar de mentiras. Aquele outro rapaz continua fitando a janela, mas um pouco menos focado, pois o ópio o deixou um tanto quanto distraído, embora ainda esteja com seu pensamento fixo.

As moças e os rapazes continuam seu cortejo e, longe dali, se ouve a marcha militar avisando que até os soldados se preparam para dormir ou se juntar a festa. Alguns casais enamorados também retornam as suas casas, para aproveitarem a noite na companhia de seus amores.

II. In gemächlicher Bewegung. Ohne Hast

(Comodamente impulsivo. Sem pressa)

A ebriedade dominou quase que completamente os camponeses que, levados pelos seus amores, acabaram exagerando um pouco na bebida. As mentes apaixonadas titubeiam, entre as casas de pedra que rodeiam a praça e os mundos de delícias que seus sonhos criativos sonham.

Sem conseguir andar mais, um jovem rapaz se deita, com a cabeça encostada na pedra fria de algum beco pouco iluminado. E ali sorri debilmente, pois distante de realidade é capaz de viver seu amor sem preocupar-se com nada.

A jovem dançarina entra em sua casa, ainda rodopiando lentamente, com um belo sorriso ébrio a estampar sua face corada. Suas amigas continuam seu caminho, também cambaleando. Um casal apaixonado anda de mãos dadas pelas ruas aquecidas pelas lamparinas. Ela, trêmula, agarrada a enorme mão de seu amado.

A doce ebriedade leva todos a sonhar. O mesmo sonho? Sensações de prazer, sorrisos bobos, corações afetados.

III. Ruhevoll

(Tranquilo)

Algumas pessoas começam a adormecer, e lentamente se deixam levar pela cômoda sensação de relaxamento. Agora que o silêncio tomou o lugar dos instrumentos e das cantorias, a lua impera gloriosamente sobre todo o povoado.

O sol começa a nascer, timidamente, no horizonte. Tornando de novo o breu em uma clara realidade. A luz aos poucos vai aquecendo o mundo onde toca, os animais acordando no bosque, e as pessoas aos poucos vão recobrando sua disposição atual.

Há um breve momento, ao amanhecer, em que o sol impera antes do acordar das pessoas. É quando o sono é mais profundo, é quando o sonho viaja mais longe. É quando o homem não pode mais esconder-se dos fantasmas que o atormentaram, mas que agora vivem em torno dele. A luz quente toca o peito nu de um rapaz que bebeu demais, e deitou de qualquer jeito na cama, quando finalmente conseguiu chegar em casa, lá pelas tantas da madrugada.

Mas também os anjos habitam a sua volta. E as vezes, algumas pessoas não acordam quando o sol nasce, senão que são levados pelos anjos, para o outro lado, para a corte celeste. Da vigília ébria, ao sono profundo, e depois a estranha consciência de seu corpo aquecido por uma luz mais divina do que um milhão de sóis. Acordado pelas trombetas dos anjos, deslumbrado pela visão de um Deus mais belo que todas as belezas já contempladas por olhos humanos. O jovem que não acordou no mundo dos homens, agora contempla e canta a Vida no Paraíso, e nos mostra que 50 minutos da música dos homens não é nada perto de 3 minutos da música dos anjos:

IV. Sehr behaglich. Das himmlisches Leben.

(Muito cômodo. A Vida no Paraíso)

Nos divertimos com os deleites do Paraíso,
então evitamos todas as coisas terrestres.
Nenhum clamor mundano
é ouvido no Paraíso
Tudo vive na mais gentil paz!

Levamos uma vida angelical!
Mas somos completamente alegres!
Dançamos e saltamos,
saltitamos e cantamos!
São Pedro no Paraíso observa!

João deixa o pequeno cordeiro livre,
o açougueiro Herodes o vigia!
Conduzimos docilmente,
inocente, docilmente,
doce pequeno cordeiro à sua morte!

São Lucas o boi abate
sem sequer um pensamento ou cuidado;
o vinho custa nem um centavo
na adega do Paraíso;
os anjos, eles que assam o pão.
Finas ervas de variados tipos,
crescem no Jardim do Paraíso!

Requintados aspargos, feijões
e qualquer coisa que queiramos!
Pratos inteiros são para nós preparados!
Boas maçãs, boas peras e boas uvas,
os jardineiros, nos permitem tê-las todas!
Quer carne de veado ou de lebre?
Nas largas alamedas
eles correm livres!

Se o dia de jejum se aproxima,
todos os peixes vêm alegremente nadando!
Correndo vem São Pedro
com sua rede e suas iscas
dentro da lagoa divina.
Santa Marta deve ser a cozinheira!

Não há música na Terra
que possa ser comparada com a nossa.
Onze mil virgens
se lançam à dança!
Santa Úrsula, entretanto, ri!

Cecília e seus parentes
são excelentes músicos de corte!
As angelicais vozes
deleitam os sentidos,
para que todos acordem para a alegria.

~

Programa escrito por mim, da 4° Sinfonia em Sol Maior do Gustav Mahler. 
Tradução do hino do último movimento aqui

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