quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Em Braços Inexistentes III

Também não sei o que queria que você dissesse. Certamente não espero por uma resposta positiva. Talvez espere por qualquer resposta que seja. Não é que eu queira deixar de falar com você, eu só estou tentando realocar as coisas dentro de mim. 

Mas também não é como seu eu quisesse que tudo permanecesse igual. Não vê que, como as coisas estão, eu estou machucado demais? 

Mas eu também não sei exatamente o que pretendo com isso. Me livrar desse sentimento, é verdade, mas como? É também por isso que tenho ficado em silêncio. É também por isso que eu queria um abraço, uma dessas linguagens que não são ditas e que, no entanto, dizem muito.

É impressionante como existem diversas formas de silêncio. Aquele em que duas pessoas se sentem plenamente confortáveis umas com as outras. Esse pode ser tão confortável que até mesmo cura, é o silêncio reconfortante. Aquele que, por outro lado, indica um desconforto enorme. Existe um silêncio pesado, de dor, de raiva. Existe um silêncio que consome, o silêncio do vazio, aquele silêncio apático, que olha para o mundo sem ver nada. E, atualmente, conheci outro silêncio: aquele do choro velado. Aquele em que a tristeza trasborda silenciosamente, em lágrimas que molham a face, vindas diretamente do coração, um coração que amou demais, que se derramou completamente.

Também não sei o que queria que você dissesse. Certamente não espero por uma resposta positiva. Talvez espere por qualquer resposta que seja. Não é que eu queira deixar de falar com você, eu só estou tentando realocar as coisas dentro de mim. Por isso meu silêncio. Mas esse silêncio, no entanto, é semelhante ao daqueles que já se foram. É silêncio de morte. 

"Você pode quebrar algo em dois segundos... Mas pode demorar um século para consertar. Uma vida, gerações. É por isso que precisamos ser gentis nesse mundo." (Beatriz At Dinner, 2017)

Em Braços Inexistentes II

Tem sido um processo complicado, dolorido, silencioso e, acima de tudo, solitário. Não poderia ser diferente. A fingida indiferença para ajustar os pontos desequilibrados do meu peito, manter uma resolução firme demonstra a força de um espírito, e é preciso vencer as inclinações sensíveis as quais me submeti. 

Mas, ao invés de não falar com ele, não tenho vontade de falar com mais ninguém, apenas de me isolar num canto e, quieto, esperar que os dias passem. De algum modo conseguir aproveitar o tempo, mas tudo parece sem graça, vazio e sem contorno. A presença do outro tem me incomodado. A voz do outro tem me incomodado, ainda que queira, do outro, a companhia. E é nesse ponto que o espírito se embate com a carne: quem precisa dessa aceitação do outro é meu espírito ou minha carne? Quando desejo a simples presença de alguém, é meu espírito ou minha carne?

Mesmo agora não tenho nenhuma palavra. Vai fingir que não sabe o motivo de eu estar assim? Sabe que é porque eu já disse tudo que tinha a dizer, e mesmo assim minha resposta sempre foi seu silêncio. Agora quem silenciou fui eu. Mas que tolice a minha pensar que seria diferente, que você me diria algo. Não, apenas continua em silêncio. Que besteira achar que o meu amor significaria algo a ponto de você romper seu silêncio. Mas eu já sabia, só não queria ver. Sabia e fingia não saber, que eu não sou tão importante assim.

Bem, agora você não precisa mais que eu o incomode, não precisa lidar com um apaixonado incômodo. Meu silêncio pode, no máximo, ser para você um outro tipo de incômodo. Ao passo que seu silêncio sempre me machucou. Mas isso não importa mais. Você vai seguir em frente, como todos seguiram sem mim, sem que meu amor ou minha amizade importem. Não importam. Nada importa. Meu amor não passou de um incômodo. 

Tentei repetir o processo da outra noite: brisa fresca pela porta, música baixa, escrevendo nesse ambiente gostoso. Não deu certo. Senti apenas um vazio gigantesco no peito. A vontade de que você mandasse mensagem. Mas não houve nada. Apenas silêncio. É tudo que você tem para mim não é? Pelo menos o vinho estava bom. 

Ontem, eu morri;
hoje, não me refiz.
Não me refiz por uma 
única e grande razão:
porque não havia
mais nada
que valesse a pena

ser refeito.

(pevon) 

terça-feira, 29 de outubro de 2024

Em Braços Inexistentes

"Mas seu amor se estendia muito além das regiões do desejo físico." (Marcel Proust)

Dormi profundamente, e não tenho nada de mais interessante a dizer além de como é bom dormir e acordar naturalmente. Levantei, fiz um pãozinho na chapa, chocolate branco quente, aproveitando um dia fresco de primavera. Sentei para ouvir um pouco de música, meus pais foram à missa e o resto do pessoal continua dormindo. Disse no meu último texto que essa talvez tenha sido a primeira noite que consegui aproveitar, depois de muitos meses. Me sinto feliz. Embora nublado, o céu está de um cinza-claro, mais embaçado do que realmente fechado. Simplesmente lindo. Não demorou muito para o meu pensamento se voltar para ele. Droga, eu realmente o amo. Tomei o resto do chocolate num gole só. Vinte gotas de Rivotril e um relaxante muscular, o suficiente para dormir mais um pouco e ainda acordar para cantar na missa da noite. Ainda não estou seguro com aquele solo. Também queria conseguir ficar pelo menos uma manhã sem pensar nele. Bem, vou voltar a dormir. 

Antes, porém, de cerrar os olhos e mergulhar no véu negro do sono profundo, escrevo a um amigo: são palavras sinceras que, no entanto, não serão enviadas.

Depois de certo tempo e de umas boas doses de desilusão, aprende-se que algumas coisas, a maioria delas, na verdade, não deve ser dita. As incompreensões são geralmente acompanhadas de afastamento total ou parcial. O Dilema do Ouriço de Schopenhauer em sua máxima aplicação. No momento tenho preferido a distância e o frio. As coisas que eu quero dizer, escrevo. Sempre que digo, que me abro, acabo por gerar confusões incômodas demais. 

Me fechei na última semana, e pretendo evoluir essa ação. Colocar as coisas, ao menos externamente, no seu devido lugar. Enquanto pouco a pouco faço um exercício profundo de transmutação do meu ser. Parece-me que são percepções maduras. Não permitir que o coração domine tudo e, ainda que domine o sentimento, não permitir que ele domine a ação, chegando sempre até a humilhação. 

Pois bem, hoje é um daqueles dias que eu gostaria de uma companhia que, na intimidade suprema do silêncio, me permitisse descansar, corpo e coração. Ao mesmo tempo. Que me permitisse chorar, colocar pra fora tudo que tem me angustiado nos últimos meses, e que me aquecesse, com seu corpo e seus braços ao meu redor, a respiração entrando em harmonia. Algo assim. E poderia ser um amigo, alguém próximo, mas alguém presente, real. Onde é que há gente de verdade no mundo? Onde posso encontrar um abraço real?

Mesmo que tenha feito avanços recentes e novos amigos para conversar, a verdade é que vou me deitar sozinho, sem ninguém a me consolar ou abraçar. Pelo menos tomei um bom chocolate quente antes de me deitar. Foi algo bom em meio a esse confronto com minha realidade. 

Claro que, mesmo indo dormir, já chapado, não demorou muito para o meu pensamento se voltar para ele. Droga, eu realmente o amo. Aproveitei uma noite de verdade, mas hoje não consegui sair da cama. E por isso preciso ficar em silêncio e dormir. Até que consiga empreender a transmutação alquímica dos meus sentimentos...

segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Foi assim que Nietzsche enlouqueceu

LAUTIR

O filósofo estava ali, no meio da rua, vendo um cavalo ser espancado e algo dentro dele quebrou. Não foi o som de um chicote no ar, mas o estalo da sua própria mente cedendo. Ele correu, abraçou o animal e, naquele momento, todo o peso da sua filosofia colidiu com a realidade brutal. 

O homem que pregava o além do homem desmoronava diante da fragilidade de uma criatura indefesa. E aqui vem o ponto que Nietzsche nos deixou de legado: A vida é um caos e a mente mais ainda. Ele acreditava que o olhar ao abismo era inevitável, mas ninguém avisou que o abismo poderia olhar de volta.

Naquele abraço desesperado, Nietzsche não estava só salvando o cavalo, ele estava tentando salvar a própria humanidade da loucura que sempre espreita. Como alguém que passa anos pregando a superação, ele foi confrontado com a sua própria impotência. A mente que nos deu - assim falou Zaratustra, agora era apenas silêncio e delírio, e o que Nietzsche tanto tentou expor, o medo de se perder na própria busca por sentido, o engoliu. 

Ele mostrou até os mais fortes podem ruir quando confrontados com a realidade nua e crua. No fim, o que restou foi o eco daquilo que ele sempre sofreu, mas que talvez não quiser se admitir. Quando você luta contra os monstros, deve tomar cuidado para não se tornar um. 

E claro, às vezes, o maior monstro é o próprio peso dos nossos pensamentos. 

A sabedoria do homem é loucura para Deus!

Essa cena marcante da vida de Nietzsche, onde ele abraça o cavalo espancado nas ruas de Turim, é uma poderosa metáfora do colapso de uma mente que passou a vida desafiando os limites da existência humana. Nietzsche, que tanto falou sobre o Übermensch (além do homem) e sobre a necessidade de transcender as fraquezas humanas, encontrou-se, naquele momento, frente à brutalidade do mundo e à fragilidade da vida. O homem que escreveu sobre o "eterno retorno" e sobre o "niilismo" experimentou, ali, sua própria fraqueza — a fragilidade inerente a todo ser humano.

Esse episódio não foi apenas uma manifestação de empatia pelo cavalo; foi o clímax de um filósofo que olhou para o abismo e, em algum ponto, deixou o abismo consumi-lo.

(Irvin D. Yalom)

sábado, 26 de outubro de 2024

Pés Sangrentos

Quase sem forças para terminar a semana. É fim de tarde, sábado. Amanheceu quente e ensolarado e eu me perdi em meio aos palavrões de incômodo com todo aquele calor me queimando a pele logo cedo. Agora, por outro lado, tem um vento frio e claramente deve começar a chover logo. Um temporal de primavera. 

Me afastei um pouco na intenção de ouvir músicas que me inspirassem, tinha escolhido INFINITE, mas acabei ficando com a seleção de Frank Sinatra que já estava tocando quando cheguei. A luz do meu escritório está piscando, já deveria ter trocado. Mais uma coisa pra adicionar na já longa lista de compras e consertos, e que eu vou adiar até sabe-se lá quando. Ainda tenho ensaio e duas missas amanhã. Quero maratonar Love In The Big City. Se não precisasse ir à noite para a igreja, dormiria provavelmente o dia todo. Talvez faça isso na segunda. 

Precisei cancelar minha folga na terça, e é bem capaz que não consiga descansar até o grande evento do dia 23. Precisarei sustentar força e sorrisos até lá, além de, claro, lidar com um cronograma apertado e de delicadas possibilidades catastróficas. Bem, parece que as coisas são sempre assim (mas claramente não deveriam ser, mas parece que algo no universo, ou nas pessoas com quem sou obrigado a trabalhar, impede um planejamento simples e eficaz em detrimento de loucuras cansativas que, em geral, significam que eu serei levado ao extremo).

Queria poder dormir abraçado com alguém hoje, sentindo o cheiro da pessoa enquanto tocava suas costas com meu rosto. Gosto dessa proximidade. Talvez colocasse minha mão sobre seu peito, e ouviria sua respiração baixinha no lugar da playlist de baladas coreanas de todas as noites. Odeio ser esse idiota carente que sempre procura pelo outro quando está triste.

Esse deve ser o milionésimo texto triste e melancólico que escrevo, by the way. Desculpem-me. Não culpo o céu cinza, também estava triste de manhã quando o sol brilhava. As praias devem ter ficado cheias hoje. Geralmente eu bebo bastante água, mas hoje tomei só dois copos grandes de chopp durante o expediente, trabalhar com arte tem lá seus pontos positivos. 

Foi uma semana em que preferi ficar em silêncio, sufocando a mim mesmo e esse sentimento. Sei que fiquei mais chato e irritado que o normal, mas não ligo, preciso sufocar o quanto for possível. Esse amor já foi longe demais. Também mergulhei de cabeça no trabalho, finalmente me animei com algumas coisas, isso é bom: as pessoas podem me achar eficiente, inteligente, sendo que, na verdade, é o padrão delas que é baixo demais. Nem sequer enxergam que eu não estou realmente interessado em nada, apenas faço tudo para esquecer o fato de que penso nele absolutamente o tempo todo. 

Mas, pelo menos, enquanto sorrio dum jeito falso e mantenho por longos minutos uma conversa completamente sem propósito sobre a guerra na Ucrânia com um completo desconhecido que claramente bebeu mais do que devia, eu consigo esquecer, ou anuviar, a imagem dele um pouquinho em minha mente. Se me ocupar consegue deixar meu pensamento um pouco nublado, embaçado, por breves momentos consigo esquecer que meu peito continua inflamado, porém triste. Há muito caminho, mas sinto que não cheguei a lugar nenhum, apenas arrastei meus pés sangrentos.

Findou o dia. Caiu a noite. Sopra um vento frio da porta aberta, e consigo ouvir uma festa ao longe. Minha música está bem baixinha para não acordar meu sobrinho que dorme no quarto ao lado da sala em que estou. Tomei energético com a intenção de maratonar uma série, mas acho que vou só ficar um tempo assim e depois dormir. 

Alguns pensamentos passam por mim, como as folhas da casa em frente balançam iluminadas pela luz, amarela dos postes e prateada da lua. 

Estava desiludido no ensaio. Acabei ficando com um solo para o qual eu não me preparei. Me pergunto quanto tempo vai levar até perceberem que eu sou uma fraude. 

Não quero me iludir novamente. Vou dormir um pouco mais amanhã. Mas reconheço que, por um instante, imaginei que se ele sentasse ao meu lado poderia haver uma faísca. É sempre assim, há algo de profundamente estúpido no meu imaginário que sempre me tende ao romântico. Mas a realidade não é assim.

Acabei de me dar conta que nunca vi o rosto do rapaz que está cantando no vídeo. Sempre escuto suas versões de músicas japonesas famosas, mas tudo que vejo é sua mão dedilhando um violão com delicadeza, agora notei também que ele pinta as unhas, como eu fazia antes, quando eu tinha um pouco mais de disposição. Mas sempre me lembro de sua voz, acho doce o bastante para me acalmar. Prefiro as versões dele que as originais, as bandas japonesas gostam de colocar guitarra demais nas músicas. 

Pelo menos fiquei mais em silêncio essa semana. E não vou sentar ao lado de ninguém amanhã. Não haverá faíscas. Vou dormir e amanhã verei série, e talvez caminhe até o trapiche e escute um pouco o som das ondas enquanto sinto a brisa salgada no meu rosto. Espero conseguir ficar em silêncio mais tempo, e fazer disso um hábito, e depois uma virtude. 

Sopra um vento frio da porta aberta, e consigo ouvir uma festa ao longe. A música está baixinha, e já deve ter começado a chover aqui perto, pois sinto o cheiro de terra molhada. Começou a versão cover de uma música do back number. Acho que gostei de todas as versões que ouvi, especialmente a do trio do BUDDiiS (Kevin, Hidetoshi e Shoot) e essa do Akala Kai, menos a original. 

Acho também que essa é a primeira noite que aproveito, depois de muito tempo. Mesmo sozinho.

Pouco
a
pouco 
fui 
ficando 


Imperceptivelmente:
Pouco
a
pouco.

É triste a situação
de quem gozou de boa companhia
e por algum motivo a perdeu.

(Nicanor Parra)

Ode à Tristeza

"As flores do campo da minha infância, não as terei eternamente, 
Em outra maneira de ser? 
Perderei para sempre os afetos que tive, e até os afetos que pensei ter? 
Há algum que tenha a chave da porta do ser, que não tem porta, 
E me possa abrir com razões a inteligência do mundo?"
(Álvaro de Campos)

Passei um café antes de me sentar e começar a escrever.

Preciso voltar a aproveitar momentos, e não apenas passar por eles com a maior rapidez possível. Já há algum tempo venho notado que eu não aproveito nada, que eu não vivo mais. No trabalho espero a hora de chegar em casa, não faço mais pausas e nem converso com ninguém como antes. Não encontro instantes para fazer um chá e relaxar brevemente sentindo cada nota de sabor, ouvindo atentamente a música baixinha. Em casa sempre quero dormir, o mais rápido possível, nem mesmo vendo séries eu paro mais, atento a cada plot, a cada atuação, a cada momento inspirador. Já não fico mais na varanda, tomando um pouco de vinho enquanto escuto música, relaxando o corpo antes de dormir, vendo as luzes ao redor, sentindo o cansaço, mas satisfeito. Já não caminho mais até o trapiche para ouvir o som do mar e o barulho das ondas. 

Há muito tempo que eu sempre estou cansado demais, chateado demais, triste demais para isso. 

Há muito me vejo como naquela passagem dos Diários de Franz Kafka, 1910:

"Domingo. Dormi, acordei, dormi, acordei, vida miserável." 

A verdade é que eu queria muito encontrar uma brecha, um dia de folga em que pudesse dormir assim. Porque tudo tem sido penoso. 

Tentei ficar um pouco mais acordado ontem. Mas não sei se cheguei a aproveitar o tempo realmente. Admito que só queria apagar. 

Como faço pra conseguir aproveitar algo de novo? Pra conseguir encontrar alguma felicidade de novo? Só queria alguns momentos, por mínimos que fossem, felizes ou, ao menos, não tão infelizes, não tão repletos de desamor. 

Precisei disfarçar as lágrimas algumas vezes nos últimos dias. Não pelo excesso de trabalho, como foi nas últimas semanas, mas porque me encontro triste, e não encontro sequer palavra mais poética para dizer isso. Porque não há. Estou triste. Pura e tão somente isso. Triste porque amo, e esse amor tem sido demais, e já não sustento mais amar sozinho. Amar sozinho é dolorido demais. 

Bem, isso é tudo. Não há complementação. As almas não se afobarão para preencherem umas às outras. Existe um vazio bem no meu âmago, e esse vazio parece me assustar desde que me lembro, talvez desde meu primeiro pensamento. E o vazio não permanece o mesmo, ele só aumenta.

O meu café ficou amargo demais. Acabou esfriando.

quinta-feira, 24 de outubro de 2024

Próximo do Normal

"Tenho desejo forte,
E o meu desejo, porque é forte, entra na substância do mundo." (Fernando Pessoa)

Passei um bom tempo olhando para a tela em branco. Nada me ocorria. Uma tristeza profunda havia tomado conta do meu coração e já se espalhava por todo meu ser. A noite foi de escuridão intensa. Não depressiva. 

Tristeza, doença da alma. E pecado. Tristeza consentida, alimentada. 

Tenho noção de que estou apenas colhendo as consequências de algo que eu inventei e alimentei. Um amor não correspondido que se tornou algo que me consome diariamente. Com efeito, penso nele todos os dias, desde que acordo e abro os olhos, até me deitar e mergulhar em sono profundo, onde até ali, o sentimento permanece. 

Esse sentimento, eu sempre o soube que não poderia acontecer, mas ainda assim nunca consegui fazer extinguir completamente as chamas da esperança que, mesmo como fagulhas, ainda persistiam em me fazer crer. Mas, na realidade, tudo o que tinha sobrado eram as cinzas consumidas por esse mesmo fogo.

E ele não teve culpa. Eu mesmo me queimei. Eu mesmo me lancei nas chamas. Eu sou o culpado da minha própria desilusão. Eu sou o único que deve ser condenado, e já estou pagando por esse desvario: a solidão que vivo, o silêncio que me impus, sem patrono ou teogonia. 

"O amor não fez nada por mim. O amor me machucou, (...) me chamou de animal. Fez eu me sentir inútil, me deixou doente." (Preciosa)

Você não teve culpa. Pare de se desculpar. Você não tem nenhuma obrigação em corresponder ao que sinto.

Breve serei, como disse o poeta, mero corpo desiludido do amor encaixotado. Talvez debaixo da terra eu encontre o conforto que em vida busquei. Talvez os vermes me possuam e me queiram como não o fui em vida. Talvez quando já não mais houver fôlego em mim, cesse de alimentar essa chama, que não é mais chama viva de amor, senão que apenas me consome, e sinto que logo não haverá muito que reste.

Mas, em quando não me desfaço em cinzas ao vento completamente, eu passarei a ser um fugitivo. Fugitivo desse amor que tem me mantido cativo, infeliz. E eu já não sei mais como poderia mostrar a ele que, independente das crenças morais kantianas a que ele tem apego ou de qualquer outra coisa, o amor deve ser suficiente para superar qualquer coisa. O amor tudo suporta. Mas, o amor também é livre. E ele não me ama da mesma forma. Por isso eu vou fugir, fugir até que tenha perdido, além da minha essência de amante, também as amarras que me tornam um incômodo. E, quem sabe assim, eu possa ser algo próximo de normal.

E nem adianta simplesmente mover o eixo de atenção. Aquele que antes chegou a despertar algo em mim, é apenas um conhecido que encontro e converso no ponto de ônibus. O novo amigo, que carinhosamente me beija o alto da cabeça, não tem interesse em homens. De resto, minha vida é limitada, não tenho nem amigos para compartilhar as coisas que amo.

O amor não existe. Se existe, não pode ser conhecido e se, por acaso for conhecido, não pode ser compartilhado. Logo, o amor, sendo doação em sua essência, não passa de ilusão. 

Mas e agora, eu que passei a vida amando? E eu, pobre, que fare, que patrono invocarei? Lacrimoso este dia em que, tornado em cinza fria, as últimas fagulhas lutam para se engrandecerem e me machucarem de novo. 

Eu não quero mais amar. Por isso eu vou dormir, dormir de modo tão profundo que eu me esqueça que o amo. Só espero não sonhar com ele.

"Naquela madrugada sombria e funesta, 
o diabo fez uma breve visita
à minha mente. A parte cômica é que 
ele se espantou ao perceber

que estava em casa."

(pevon)

terça-feira, 22 de outubro de 2024

Poeira

Silêncio, silêncio, é chegado o fim da hora dulcíssima do sono. O despertar com o sol quente e incômodo no meu rosto. Até tento virar para um lado, mas ele começa a tocar minhas costas e eu tenho nojo desse calor que diz que é hora de levantar, de ir para mais um dia, de passar o tempo todo desejando voltar para casa, e quando volto, apenas quero dormir, sendo o estudo e as séries apenas um breve intervalo, um pequeno respiro entre um açoite e outro. E a minha vida segue sendo essa tortura, sempre escravo de um sistema tão grande que muitos nem percebem fazer parte dele, de um grande organismo que alimenta o mundo, às custas da vida de cada pobre homem que levanta, ainda antes do sol claro, ou que é incomodado por essa luz inconveniente a interromper o doce sono do descanso. E ainda querem que estejamos sorrindo. Sorrir tem sido a coisa mais difícil a se fazer ultimamente, e pessoas sorrindo têm me irritado mais do que qualquer outra coisa. A vida é realmente uma coisa patética. 

"É como se a poeira estivesse se assentado aos móveis." 

Eu não entendi o que ele quis dizer com isso. É como se eu tivesse aceitado a distância entre nós como uma fatalidade, como quem olha o passado com melancolia pelos amigos perdidos ao ver os sorrisos numa fotografia amarelada? De todo modo, essa sua frase me deu essa imagem melancólica, essa imagem de que simplesmente aceitei a tristeza inconteste. Aceitei. De fato, não me parece que exista um sonho ou um céu a se perseguir, apenas a dor e a tristeza que, a cada dia, encontram novas formas de nos visitar. E a distância é uma delas.

Por mais que neguemos, a rotina nos engole, ela nos envolve como ondas revoltas de um mar impetuoso do qual não é possível escapar. E assim sinto que, nesse naufrágio, soltamos as mãos, e nos distanciamos sem saber se nos reencontraremos em alguma praia. É uma impressão que a cada dia vem se marcando de modo mais e mais profundo no meu peito, assim como a saudade que sinto. 

Não é a primeira vez que me acontece. Há anos atrás senti que o cristal delicado de outro relacionamento se quebrou, e nunca mais tornou a ser o mesmo. Ainda hoje permanece quebrado, senão que seguimos com algumas pontas dessa taça despedaçada. E agora sinto o mesmo, que venho tentando tratar como inteiro, algo que já se fragmentou. Não por culpa nossa, nem minha e nem sua. E por isso questiono aqueles que me cobram uma visão positiva do universo ou da própria vida. 

Eu nunca tive grandes sonhos ou aspirações. Mas até o pouco que ousei sonhar, como ficar ao lado de quem amo, como poder segurar sua mão, ou deixá-lo encostar sua cabeça em meu ombro enquanto seco suas lágrimas. Até isso me foi privado, com uma violência brutal, como se estivesse exigindo ser o mais rico e poderoso dos homens. Mas não, nunca quis esse poder, apenas quis poder amar. Mas o meu amor se tornou, até para ele, motivo de risos e piadas, um nada, um fiasco. E é por isso que essa poeira, essa visão embaçada do mundo que me rodeia, se impregnou no meu ser. É por isso que esse pessimismo se tornou a única coisa que meu coração machucado é capaz de sentir. 

Não consigo imaginar Sísifo feliz, não consigo ter amor ao destino, não consigo superar o eterno retorno. Não consigo parar de amar. Não consigo parar de te amar.

Sei bem, porém, que isso me torna ainda mais distante de todos. Sei que sou chato perto da maioria. Sei bem disso, e sei bem que se você se afastasse de mim, isso seria mais do que justo. Afinal todos os outros se afastaram, meu amor de nada adiantou para que ficassem, antes disso, foi ele o motivo de terem partido. 

"A gente precisa parar tudo às vezes, até pensamentos, palavras ou obras. Meu avô alemão tinha um ditado que de tanto ouvir decorei, 'Tee Trinken Und Abwarten'. Tomar chá e aguardar." (Lygia Fagundes Telles)

segunda-feira, 21 de outubro de 2024

Contemplação

Mick e Top, Every You Every Me

"Toda beleza é um sonho, ainda que exista. Porque a beleza é sempre mais do que é." 
(Fernando Pessoa)

Imagens de poesia. Imagens que despertam a contemplação do belo ao nosso redor. Imagens que, apontando para existências e realidades superiores, nos elevam o pensamento. Ao céu sobe. Uma vez fitando o sol do Amor, atingimos aquilo que de que falava Santa Tereza "nada te angusties, nada te perturbes."

Mas o que essa beleza, terrena, temporal, instável, pode me ensinar? De que adiantam essas cenas poéticas se todas elas se esvaem depois do fim do episódio, se envelhecem as peles perfeitas e os sorrisos se desfazem em carreiras decadentes?

É que isso é tomar a beleza nesse sentido puramente imediato, imanente. A parte imediata da beleza é apenas e tão somente aquele que diz respeito aos sentidos. Mas, o homem contemplativo, aquele que atingiu a Bios Theoretikos, ele toma a visão sensível como sinal das eternas. É a primeira das lições metafísicas, e Platão já ensinava isso: o mundo sensível é um reflexo diminuído do mundo das ideias perfeitas. Em termos cristãos: a bondade que vemos o outro fazer ou que fazemos, a beleza que enxergamos na criação e nos seres todos que "cantam a glória de Deus", são um reflexo, uma emanação de Deus, apontam para Ele de algum modo. 

Por isso, embora aparente apenas um pedantismo intelectual ou uma vaidade tremenda, o homem maduro se encanta com a beleza, pois sabe que ela aponta para uma beleza ainda maior, essa sim perfeita, que jamais se diminuirá. O que há de belo no mundo é reflexo, diminuto, que vemos ainda embaçado, da beleza divina, termo, aliás pleonástico, afinal se é divino há que ser necessariamente belo, ao passo que a beleza, tendo sempre algo de divina, não é necessariamente, uma vez que pode ser tomada no sentido contrário ao do seu próprio ser e, isso, afastar-se do divino. 

O homem imanente, kantiano, vê a beleza apenas no sentido achatado dos prazeres sensíveis. O homem maduro se encanta, sim, com a beleza, mas não fica nela, ela o convida a contemplação do eterno. 

A beleza a qual me refiro aqui, é a beleza de uma pétala de flor que voou com o vento e pousou perto dos meus pés. É a beleza dessa manhã fresca e nublada que, de tempos em tempos, faz cair dos céus algumas gotas finas de chuva. É a beleza das grandes telas, afrescos e das sinfonias. É, sim, a beleza dos homens, daqueles que encarnam em si as figuras das musas que contam as histórias dos grandes feitos dos deuses. É uma contemplação, no entanto, e por definição, já que todos podem ver essas obras, sempre solitária. Pois é apenas no coração do homem que o sensível por se transmutar em desejo de Deus. Mas é também essa contemplação solitária, que permite o homem entender que o outro homem também está sozinho. 

Mick e Top me puxaram a essa reflexão. Em Every You, Every Me, na delicadeza de cada ação, de cada olhar, de cada toque simples. Como se eles parassem o tempo e, vendo apenas um ao outro nada mais importava. Tinham apenas aquele momento que, no entanto, se estendia pela eternidade: não queriam jamais sair da companhia de um e outro. 

Continuo vendo imagens de poesia, imagens que despertam minha imaginação, imagens que me inflamam o peito. Imagens que, de tão belas, parecem sonhos etéreos, véu de Maya diante de meus olhos, mas que me fazem desejar sempre algo mais. Ainda que sozinho.

"O homem, quando jovem, é só, apesar de suas múltiplas experiências. Ele pretende, nessa época, conformar a realidade com suas mãos, servindo-se dela, pois acredita que, ganhando o mundo, conseguirá ganhar a si próprio. Acontece, entretanto, que nascemos para o encontro com o outro, e não o seu domínio. Encontrá-lo é perdê-lo, é contemplá-lo em sua libérrima existência, é respeitá-lo e amá-lo na sua total e gratuita inutilidade. O começo da sabedoria consiste em perceber que temos e teremos as mãos vazias, na medida em que tenhamos ganho ou pretendamos ganhar o mundo. Neste momento, a solidão nos atravessa como um dardo. É meio-dia em nossa vida, e a face do outro nos contempla como um enigma. Feliz daquele que, ao meio-dia, se percebe em plena treva, pobre e nu. Este é o preço do encontro, do possível encontro com o outro." (Hélio Pellegrino)

domingo, 20 de outubro de 2024

Vida ao Redor

Há vida fora da internet. Eu só não sei onde. 

Todos os dias, de todas as semanas, são iguais. Eu saio cedo, passo o dia tentando, claramente sem sucesso, não enlouquecer, e volto para casa, cansado demais, assisto uma aula, um ou dois episódios, e capoto de sono, acordando no dia seguinte sem descansar o suficiente, para começar tudo de novo. 

Nos fins de semana, sempre que chega perto da hora de ir embora, eu começo a me animar e penso que vou maratonar alguma série, fazer uma caminhada ao trapiche ou coisa assim, simples mesmo. Mas nada. Só consigo encher a cara de remédio, chorar por amores não correspondidos, e dormir por dias inteiros. 

Agora mesmo, esperando o coquetel do sono fazer efeito enquanto escuto algumas faixas selecionadas do meu amorzinho Keen Suvijak e do grupo Lykn, prestando atenção nos vocais poderosos do William, além da sensualidade do Nut. 

Penso um pouco no que pode ter ocasionado o desentendimento entre o Joong e o Est, ship do William em ThamePo, próxima série da GMM TV. E isso é o máximo que me permito ir além do meu ambiente imediato.

Claro que a literatura me ajuda a quebrar essas barreiras. Nas últimas semanas tenho feito um mergulho no imaginário da Babilônia ao ler um estudo incrível do Enuma Elish (Quando no alto… "), e na profusão de símbolos dela grande epopeia. O abismo imaginativo entre nós e eles é imensurável. Embora o progresso técnico seja, por vezes, inquestionável, e por vezes não, acredito que há muito da intelectualidade que se perdeu: ao me deparar com o mito da criação babilônica vejo uma capacidade de apreensão simbólica imensamente maior que a de todos os intelectuais, no sentido acadêmico do termo, que conheço. As pessoas de outras épocas tinham uma forma diferente de compreender o cosmos. Os arrogantes cientificistas os declaram primitivos, eu, por outro lado, enxergo uma riqueza inestimável, e algo que se perdeu e que impacta diretamente na nossa capacidade de conceber o mundo hoje:

Há vida fora da internet. Mas onde? Eu, contaminado pelos vícios da minha época, preciso constantemente fugir do ambiente imediatista e puramente sensível que me rodeia. 

Há vida fora da internet. Mas hoje eu vou apenas dormir. 

E o mais que faço não vale nada. 

"O que quer que tentemos ou façamos, quaisquer que sejam os impulsos de nosso coração, o apelo de nossos lábios e o apelo de nossos braços, estamos sempre sós." (Guy de Maupassant)

sábado, 19 de outubro de 2024

O Padecer

"Quem és? Perguntei ao desejo. Respondeu: lava. Depois pó. Depois nada." (Hilda Hilst)

Nada mais precisa ser dito depois do "Eu te amo nego" de cada noite ou cada manhã. Porque nada mais importa e nada mais há no meu coração. E, não sendo mais do que sou, sendo todo amor, penso em você e meu silêncio, meu vazio, de repente se enchem desse significado único e profundo. Ainda que seja só eu. Em chamas me consumo, como pólvora explodo, e torno a renascer a cada manhã. Meu amor renasce exultante. Seria isso um pouco de esperança, uma fagulha?

Una é a vida, una é a morte. 

As últimas noites foram como um vulcão erupçando. Lava e pecado sendo lançados na atmosfera, o vapor quente de meus lábios. Uma risada metálica, distante, me perturbando. São tempos difíceis. 

Claramente ciclei para cima. Depois de semanas depressivo, muitos dias sem nem conseguir me mover direito e, em outros, praticamente me arrastando para cumprir as obrigações de qualquer jeito, eu finalmente encontrei um pouco de disposição. Nos últimos dois dias eu fiz mais no trabalho que em todas essas semanas. Nos últimos dois dias eu fiz mais do que qualquer outro faria em um mês. E minha mente em profusão. Claro que alguns ficam felizes com isso. Eu, por outro lado, tenho medo desses dias. Medo do que posso fazer, dos amigos que perdi, e dos desejos incontroláveis que sinto. Como interromper a torrente de pensamentos? Como controlar os desejos? Como ficar normal? Como ser normal, aliás? Como fugir dessa dicotomia flutuante entre ser e estar bem? Alguma vez eu estive bem de verdade?

Percebi, de novo, o quanto eu sempre sou o chato do rolê. É porque eu sempre sou pesado, e se não me convidam pro almoço é porque o assunto do almoço sou eu. Ou talvez nem tanto. Não sou importante assim. 

Já perdi a conta de quantas vezes usei essas frases em destaque, a da Hilda e de Shakespeare, o que é um eufemismo nada discreto para dizer que essa minha fase de mania também comporta uma boa dose de tesão acumulado, ao passo que nas outras semanas eu experimentava apenas a completa apatia sexual.

É também nesses dias que me dou conta do quanto sou idiota, do quanto sou refém das idealizações românticas, do quanto continuo me humilhando por um amor não correspondido. De novo. E de novo. 

Preciso diminuir a frequência. É a enésima vez que levo um fora, ainda que discreto, e ainda dói, e eu ainda insisto. Patético. Acho difícil que os óleos de lavanda e copaíba consigam me ajudar a dormir um pouco. Apelei também para uma playlist calma, um relaxante muscular e um Zolpidem. Para o amor, ou essa estúpida paixão que eu sinto, não há remédio: padecerei até a morte.

"Falecendo no triunfo, como fogo e pólvora que num beijo se consomem." (Shakespeare)

quinta-feira, 17 de outubro de 2024

Do Inferno

"Você está bem?"

Uma pergunta para a qual eu não tenho resposta. Minha mente, em estado de euforia, se encontra confusa, confusa demais para que eu consiga entender as coisas como elas são. Não sei bem o que é real ou o que é imaginário. Mas o que é imaginário não seria também, de algum modo, real?

Minha única certeza, no entanto, da qual não posso discordar nem por um instante sequer, é do sentimento que palpita em meu peito inflamado. É ele, e apenas ele, que há em mim, seja ao olhar pela janela e ver o dia claro, um pouco quente, de primavera, ou se fecho os olhos enquanto ouço os compassos moderados do suspense presente na "Ressurreição", a 2° Sinfonia de Mahler. 

Mas esse sentimento, longe de ser aquela coisa bela e restauradora, como se pudesse compará-lo ao sol ao modo de um Shakespeare apaixonado, é, em realidade, uma espécie de tortura. É um sentimento alimentado sozinho, um sentimento que vem, já não mais me dando forças para continuar, seguir, mas um que vem me corroendo, me desfazendo. 

E, enquanto isso, o mundo segue. Crianças nascem. Pessoas fazem reuniões. Os carros passam rápido, e dentro deles há pessoas com diferentes histórias, diferentes destinos. Será que elas também amam até o ponto de se machucarem assim?

Esse encontro, alguns minutos sentado ao lado dele, meses atrás teria me matado. Mas eu não senti mais do que indiferença. Notei as espinhas e pontos vermelhos no seu rosto, não uma perfeição que só existia em meus olhos quando eu estava algo como apaixonado. Não senti isso. Segui meu caminho e eu o dele. Um breve devaneio até tomou minha mente... E se morássemos juntos, num relacionamento secreto, num paraíso particular... Mas não durou mais do que uma troca de calçada. 

Não é uma escolha. Não há como escapar do Dilema do Ouriço. O inferno são os outros. E eu mesmo.

Vejo-me diante de um espelho, refletindo um demônio que me encara com seus olhos profundos, escuros como o oceano. Reconheço-me nesse demônio. Sim, sou eu. Não apenas a malícia que há em mim e que por qualquer razão veio à tona. Não. Reconheço-me homem e demônio, senão que todos que me rodeiam são como príncipes, todos ainda mais sujos e obscuros do que eu a ostentar um brilhantismo falso. 

O inferno sou eu, peque comigo. 

"e se perguntarem por mim
diz-lhe que fui à minha procura"

(Inês Francisco)

terça-feira, 15 de outubro de 2024

Desejos Distintos

Holly Warburton

Que mais tem que desejar?
Senão sempre amar e amar,
E, no amor toda incendida,
tornar-vos de novo a amar?

(Sta. Tereza D'Ávila)

Percebe o quanto estamos distantes? Não me refiro apenas a falta de tempo pela nossa rotina. Me refiro a uma distância maior, uma que não pode ser medida em questão de tempo e espaço. Uma distância mais profunda e essencial, uma diferença que se encontra no interior mesmo de nossos corações. 

Percebo, e essa constatação é uma daquelas que me fere e corta profundamente como aço frio, que não temos os mesmos objetivos. Não me atrevo a sondar e dizer quais os seus, mas, enquanto penso em você, vejo justamente a profusão de pensamentos que o dominam, a quantidade de assuntos que rodeiam sua mente. Então, se me observo por um instante, vejo como estamos distantes, o quanto estamos sempre falando de coisas diferentes, o quanto estamos em lugares diferentes, o quanto queremos coisas diferentes. 

Mas o que eu quero? Se digo que não tenho sonhos ou desejo... Eu não sei, mas não é difícil de perceber o quanto esse amor ocupa minha mente, meu coração e, enfim, todo meu ser. Ao mesmo tempo que vejo que a cada dia me toma mais um pessimismo que se me torna descrente ao amor, aos outros, o que me faz evitar conhecer pessoas e me afastar das que já conheço, também me sinto preso a esse sentimento, preso a esse amor. De tal modo que, mesmo sabendo que não é correspondido, que nossos modos de amar são tão distintos, a minha mente, meu coração e, enfim, todo meu ser, não conseguem escapar desse sentimento que, sendo mais do que sentimento, é algo que orienta tudo que sou, a todo tempo, é como se ele fosse o eixo ao redor do qual gira toda minha vida.

Mas apenas eu penso assim. E por isso escrevo. Em silêncio, minhas palavras provocam minha catarse sem que isso o incomode. E sem que ele me responda, vou dormir, sonhar, vou principalmente amar, amar profundamente e me entregar a escuridão profunda. Enquanto a agitação do mundo o faz olhar para todos os lados, 

sem nunca me ver. 

Retomo meu pensamento, pouco antes de dormir completamente chapado de remédios, a abordagem da obra de Hideaki Anno acerca da solidão, e como cada um de seus personagens lidam com ela. O isolar-se, o buscar adaptar-se ao outro e aos seus desejos e expectativas, os mecanismos de compensação que mascaram o medo do estar sozinho. 

Estou sozinho, e essa é minha experiência humana mais basal e brutal. A cada instante de meus dias eu a sinto. E vejo que tento me adaptar ao outro, quando aceito trabalhos em prazos absurdos sem reclamar. Vejo que me isolo, que não consigo fazer amigos: quando estou com o outro, não consigo me interessar ou me aproximar realmente. Não consigo me conectar. Todos têm desejos distintos demais...

Sei que isso parece elevado, abstrato demais. Mas não o é. Na verdade, é apenas a expressão de uma experiência básica, algo ainda na quarta camada da personalidade, de alguém que apenas busca ser aceito pelo meio, mas que, ao tentar seguir em frente para a próxima camada, já está consciente dessa dificuldade. 

Então eu simplesmente levanto, engulo os remédios com um bom gole de água. Coloco uma playlist para tocar e mergulho, na profundidade da minha escuridão. Sim, porque o coração, por mais que ame, se não encontra amor, acaba em simples escuridão. E assim se acaba a vida. O amor é hostil e amar é inviável.

"Poucos querem o amor, porque amor é a grande desilusão de tudo o mais. E poucos suportam perder todas as outras ilusões [...] Inclusive amor é a desilusão do que se pensava que era amor." (Clarice Lispector)

segunda-feira, 14 de outubro de 2024

Sentença

"A maioria das pessoas tem medo do silêncio e, por isso, quando cessa o barulho constante de uma festa, por exemplo, é preciso fazer algo, falar, assobiar, cantar, tossir ou murmurar. [...] No chamado “silêncio sepulcral”, a sensação é sinistra. Por quê? Há fantasmas rondando? Dificilmente. O que se teme na verdade é o que poderia provir do interior da pessoa, isto é, tudo aquilo de que fugimos através do barulho." (Carl G. Jung)

Buscamos, ou fugimos, as coisas com as quais sonhamos e que nos oferecem segurança. A possibilidade da felicidade pode assustar. Por isso o vejo aceitando todas as possibilidades, ao invés de aceitar meu amor. Parece que o sinto é algo de profundamente nojento, como se minha declaração fosse sempre seguida de ojeriza. Meu amor não é compreendido, nem aceito, e por isso a confusão é inevitável. 

Busca-se respostas, caminhos, possibilidades distantes, complexas. Mas o meu amor, o que se apresenta diante e flagrante, o amor que declaro sem medo todos os dias. Esse amor se torna apenas causa risos, piadas. Um amor que escreve que cartas de amor ridículas, como disse Fernando Pessoa. Eu sou ridículo.

Talvez eu esteja sendo muito narcisistas, e ele não corresponde não por medo, mas porque simplesmente não me ama ao mesmo modo. Novamente, retomando outro poeta, "tudo que amei, amei sozinho."

E assim vou seguindo a vida: em amores minuciosos e infinitos. Não correspondidos, é claro.

"Eu queria te chamar de meu amor, 
mas eu sei que você não gosta disso. 
Então qual palavra pode expressar o quanto eu estimo você? 
Talvez eu apenas substitua pelo seu nome. 
Meu amor é você então é a mesma coisa. 
Eu quero te chamar de amor, 
mas só seu nome agora deveria servir." 

(Keen Suvijak, Only Boo)

Permaneço, ou retorno, ao silêncio. No meio da loucura da rotina não sou lembrado. 

E essa mesma loucura parece querer enlouquecer ainda mais. A cada novo dia querem mais e mais, querem que trabalhemos mais, exigem compreensão e comprometimentos. Malditos, todos eles! Sempre encontram um motivo tosco para dizer que precisamos trabalhar mais. Chega a ser ridículo! Não temos mais feriados, ou tempo de qualidade com quem amamos. E dizem que o fazemos em vista de uma vida melhor que há de vir. Patético. A vida melhora para eles, que multiplicam suas viagens onde tiram fotos e mais fotos. Nunca sabem o que se passa na realidade de cada dia. E ainda nos elogiam pelo comprometimento, isto é, por cumprir as obrigações que nos foram impostas desumanamente. Acredito que nem seja hipocrisia, há certa dose de refinamento intelectual na hipocrisia. Há aqui, em realidade, apenas malícia.

E esse é o cenário da minha vida: um amor não correspondido, pura e simplesmente, ou um amor que provoca asco que resulta em fuga. Amor que ninguém corresponde. Cansaços extremos, para os quais ninguém olha. Solidão, o Dilema do Ouriço é a verdade mais básica da humanidade. E os seres humanos são realmente criaturas patéticas. 

Amamos, fugimos, encontramos formas, caminhos e sonhos, muitas vezes para fugir da verdade fria e brutal que se apresenta a nós e da qual, irremediavelmente, não é possível fugir.

"naturalmente, nós todos caímos em
baixo-astral, é uma questão de
desequilíbrio químico
e uma existência
que, por vezes,
parece impossibilitar
qualquer chance real de
felicidade."

(Charles Bukowski)

domingo, 13 de outubro de 2024

Domingo e Teogonia

A única teogonia que tem me acompanhado é aquela que enumera os feitos e os nomes de Marduk. Em dado momento do fim da manhã, enquanto olhava a multidão, a maioria crianças, a correr e gritar, eu me lembrei daquele séquito monstruoso engendrado por Tiamat, avançando ao seu flanco em direção ao fim do mundo. Eu desejei ser pisoteado por aquela massa disforme, por aquele caos primordial. As hostes que vejo são apenas os deuses em marcha para a batalha. Fechando os olhos, senti apenas o sono pesar, e me senti como o Apsu que não queria mais os deuses filhos seus por não conseguir dormir e descansar. Então, me vejo desejando voltar aquele tempo, quando no alto não se nomeava céu e embaixo a terra ainda não tinha nome. 

Não vou pensar muito em nada do que se passou. Da semana infernal que vivi.

Em cada dia, especialmente em cada manhã, eu pedia pelo fim, pedia que fosse o último dia, pois não teria forças para vencê-lo. Mas eu cheguei ao fim de cada um deles. 

E depois outro, 
e outro mais,
e outro. 

E enfim a semana terminou. 

Hoje é domingo. 

Mas, de modo algum, me sinto vencedor. Sinto que apenas logo terei que tornar ao altar do sacrifício. Não em honra de deuses, mas em nome da ganância e da estupidez mais baixa da mente humana.

Quero me entregar ao sono reparador. É o mínimo que mereço, e eu mesmo decidi isso. Nesse mundo, nessa labuta infernal e incessante, esse é meu único momento de alento. Uma gota de água em minha língua tentando amenizar entranhas em chamas.

Não invoco nenhuma prece. Me deito com o mesmo sem vontade com que rasguei o ventre de minha mãe e aquela mesma certeza que não me levam a sério e que quem eu amo me vê apenas como o palhaço que eu sou. Aquele mesmo deus ânimo desconhecido sacrificado para que os homens assumissem a labuta dos deuses até o fim dos tempos para que eles, os deuses, pudessem descansar. 

Mas, pelo menos, o dia não foi de todo ruim. Ganhei um abraço e um beijo, e ele me chamou de um jeito doce. 

Mais tarde eu vou ver o Mick, Top, James, Kad, Almond e Progress. 

Não peço nada mais. Até porque não me seria dado. Não sonho com mais nada. 

Apenas durmo.

E os deuses se reúnem em assembleia para aclamar os cinquenta nomes de Marduk e destinar o destino dos homens. 

sábado, 12 de outubro de 2024

Semanas Difíceis

Vim de pé no ônibus, encostei a cabeça naquela parte que serve para acoplar a cadeira de rodas dos passageiros cm deficiência e dormi no trajeto até o centro. Não me importei com os olhares confusos quando simplesmente saí do ônibus ao chegar no terminal e peguei mais um até o trabalho. Cansado demais, com sono demais, irritado demais. 

Essa semana tem sido longa, longa demais, parece que nunca tem fim. Tomei um copo cheio de café, dois comprimidos de açaí e guaraná, várias e várias gotas de um floral para desânimo. 

Nada deu resultado. Ainda quero morrer. 

Sentei de frente ao computador. Digitei respostas quase automáticas pro trabalho. Fiz relatórios, encaminhei postagens, alterei artes. Ainda não era o horário do meu almoço e eu ainda preciso fazer um monte de verificações no acervo técnico. Amanhã ainda tem momento de contação de histórias para crianças, eu jamais teria marcado um evento com crianças numa semana com outro evento grande, é uma expectativa irreal demais. 

Começou a chover de novo. Ontem durante todo o dia caiu uma chuva fina, era ideal para ficar na cama e dormir. Agora o clima começa a fazer isso de novo, e eu só consigo desejar minha cama, um pouco de paz, um pouco de descanso. 

Mas é claro que só eu do cansaço que estou sentindo, e só eu me importo. Não poderia ser diferente. Assim como só eu sei como é pensar em algo durante todo o tempo, e saber que ninguém, nem mesmo quem figura nesse pensamento, pensa o mesmo que eu. É solitário ser eu, como deve ser solitário ser qualquer um. Mas parece que ninguém percebe isso. 

É, é solitário ser, amar, sonhar. 

Por isso já não sonho mais, 

apenas amo, 

sozinho 

e em silêncio.

quinta-feira, 10 de outubro de 2024

Aforismos

"Eu queria te chamar de meu amor, mas eu sei que você não gosta disso. Então qual palavra pode expressar o quanto eu estimo você? Talvez eu apenas substitua pelo seu nome. Meu amor é você então é a mesma coisa. Eu quero te chamar de amor, mas só seu nome agora deveria servir." (Keen Suvijak, Only Boo)

Vejo beleza nessas felicidades doces, quase infantis. Isso pode ser tomado como imaturidade ou pelo seu máximo contrário: pode ser aquele sinal de maturidade que vê o que realmente importa. De todo modo, se se trata de uma visão madura ou não, não faz diferença. O ponto é que vejo essa beleza no amor doce, fecho os olhos e ela é capaz de ser como uma pequena luz a brilhar pra mim, num horizonte distante, como um sol poente antes do meu adormecer profundo. 

Me referia mais especificamente às músicas da trilha sonora de Only Boo, especialmente aqueles interpretadas pelo lindinho do Keen Suvijak. A figura dele, sua voz, seu sorriso, tudo isso se tornou como um porto seguro pra mim, um farol na escuridão. É leve, é doce, não é intelectualmente elevado, mas, na sua simplicidade, é capaz de me fazer ver a verdade que há na sinceridade de dizer o que sentimos, de modo simples, porque é verdade. 

Vejo beleza em simplesmente dizer eu te amo, quantas vezes o coração pedir que o diga. Vejo beleza em sorrir como um bobo ao pensar em quem se ama. Vejo beleza em dar as mãos, em um abraço encorajador, em brincadeiras íntimas, em ficar sentado ao lado da pessoa enquanto observa os patinhos nadando num lago. 

X

O clima de ansiedade tem tomado conta de todos ao meu redor. Além da minha eu ainda funciono como um tipo de esponja pra todos ao meu redor. É um inferno. 

Queria dizer que o amo, de novo, mas ele não quer ouvir isso de mim. 

Ele disse que o amor dele viajaria milhares de quilômetros até chegar aqui, no meu coração. É esse tipo de coisa que me deixa confuso. É esse tipo de declaração que me faz pensar que eu teria alguma chance.

Mas eu não teria. É apenas coisa da minha cabeça.

E então eu preciso voltar pro clima de ansiedade que tem dominado todos ao meu redor. Como uma esponja. Um inferno. 

E eu só queria poder dizer que o amo, sem sentir culpa ou sem me sentir um idiota. Só queria que ele me amasse também, e ele diz que ama, mas eu não sei o que isso significa. 

X

Acabei me acalmando. Entrando em um estado de escuridão profunda, na verdade. Aceitei o caos ao meu redor. Não há nada que eu possa fazer. 

Quanto mais observo o mundo e as pessoas ao redor, mais me encho de desesperança, mais penso que nada disso vale essa existência miserável. Mais penso que essa vida já é por si um inferno, uma condenação por um pecado já não lembrado, um suplício eterno. 

Acabei entrando também em silêncio profundo. Não quero nem mesmo ouvir a voz de ninguém hoje. Mas não será possível. Infelizmente. Nunca é possível nesse inferno de vida. Talvez o céu seja apenas o silêncio e a paz.

Acordei completamente contra minha vontade. Aquele som do despertador foi como um chicote estalando em minha pele e rasgando. Levantar foi um suplício tremendo, manter-me de pé tem sido um esforço contínuo em que todas minhas forças se concentram apenas em ficar acordado, contra todas essas mesmas forças que me clamam por descanso.

"Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada."

(Fernando Pessoa)

segunda-feira, 7 de outubro de 2024

O Terceiro Impacto

"Eu era feliz sobretudo quando, na cama e envolvido no cobertor, sozinho, no mais perfeito isolamento, sem ninguém ao meu redor nem um único som de voz humana, começava a reconstruir a vida à minha maneira." (Fiódor Dostoiévski)

Como começar a dizer isso, enquanto observo o mundo ao meu redor desmoronar uma vez mais? 

Essa semana será um inferno. Não há outra forma de descrever as torturas que vou sofrer. Quisera eu poder encontrar os tesouros divinos de que São Paulo da Cruz diz que Deus colocou no padecer. Infelizmente sou uma vergonha pra São Paulo, e também indigno da Cruz. 

Cada pequeno detalhe ao meu redor tem dado errado. As economias de casa estão péssimas e, com a gravidez complicada da minha irmã e as dívidas de todos aumentando a cada mês, eu só me afundo mais e mais. As coisas vão estragando: notebook, celular, e eu vou adiando conserto de um em razão do outro. Já não consigo escrever em casa, mas também não tenho paz pra escrever no trabalho (aquele inferno). Me sinto sozinho, sem amigos, e sem dinheiro pra sair e beber e conhecer pessoas. Só posso gastar o pouco que me resta em remédio pra dormir e apagar. Vejo as relações familiares se desfazerem em problemas. Não me entenda errado: eu não estou tentando resolver tudo, pelo contrário, apenas assisto quieto e faço o pouco que posso. E isso é tudo. 

Me sinto distante até de quem me sentia chegado, íntimo. As relações com o outro se me mostram agora misteriosas, impossíveis de serem compreendidas. 

Me sinto longe do homem que amo. Mas meu coração se encontra vazio. Até aquele que eu, acreditava, poderia me fazer esquecê-lo, se foi, desapareceu da minha mente e, agora, quando o vejo de manhã ou nas fotos com a namorada, não sinto nada. 

E o nada não é nada. O nada dói, é vazio e faz com que me sinta frágil, sem contornos, me expandindo e sumindo como fumaça que se dissipa. Ao fim resta uma criatura, um arremedo de ser humano que cumpre ordens, mas não uma pessoa. Estar vivo não significa viver.

Queria então dormir. Profundamente. Não ver e nem sentir nada. Queria dormir e não acordar mais. Mas apenas isso é suficiente para me fazer desejar o fim definitivo? 

Isso é uma aglutinação de problemas. Minha mente instável, chefes idiotas, problemas pequenos, mas em frente número, metas irreais, pressão de muitos lados.

Queria então dormir. 
Profundamente. 
Não ver e nem sentir nada. 
Queria dormir e não acordar mais.

domingo, 6 de outubro de 2024

Mundo Real

"O meu pecado foi este: eu procurei o prazer, a beleza e a verdade não nEle, mas em mim e nas demais criaturas. Esta busca levou-me apenas à dor, à confusão e ao erro." (S. Agostinho)

Lidar com pessoas é sempre cansativo. Sempre. Parece que o destino inescapável do homem é tentar ajustar-se no Dilema do Ouriço. O tempo todo. Tentando não se machucar ou não machucar demais o outro. Mas nós seguimos machucados, e o outro segue ferido, e o mundo continua a fazer frio. E todos seguem sem conseguir se entender, e o gosto amargo tem ficado mais forte na minha boca, a ansiedade crescente, pela noite de hoje, pelo amanhã, pela próxima semana...

"Porque não suporto ver quem eu amo sofrendo"

Ele não tinha nenhuma razão para se preocupar com aquele garoto, que apenas cruzou seu caminho num momento ruim. Mas agora estavam ali, semanas depois, dormindo juntos todas as noites. Ele o acalmou numa crise de pânico, apanhou de um segurança no lugar dele, fez ele voltar em segurança pra cama num episódio de sonambulismo, emprestou seu ombro para ele chorar depois daqueles horrendos pesadelos, ficou ao lado dele, e isso era tudo que aquele garoto precisava.  

De repente, de estranhos que tiveram destinos cruzados, a pessoas que não sabem ainda o que são, mas que não podem mais ficarem separados. Precisam cuidar um do outro, apoiar um ao outro, porque não suportam ver quem amam sofrendo. Porque precisam daquele abraço apertado, que faz cessar as lágrimas, que traz de volta a segurança. 

Agora, de volta ao mundo real.

Vi uma foto daquele rapaz com a namorada num fim de tarde no trapiche. Lembrei que já faz alguns meses que não vou lá, ainda que seja pertinho da minha casa. Mas não senti nada ao vê-lo namorando. Me incomodei um pouco quando descobri, é verdade, mas não sinto mais nada, e nem me importei em mudar um pouco meu caminho para casa. Agora ando alguns metros à menos, e não passo em frente a casa dele, afinal não tem ninguém esperando por mim lá. Em verdade não tem ninguém esperando por mim, em lugar algum.

Isso é estar de volta ao mundo real.

Sempre tão difícil, 
incompreendido, 
sozinho, 
mortal!

"Eu era feliz sobretudo quando, na cama e envolvido no cobertor, sozinho, no mais perfeito isolamento, sem ninguém ao meu redor nem um único som de voz humana, começava a reconstruir a vida à minha maneira." (Fiódor Dostoiévski)

sexta-feira, 4 de outubro de 2024

Eu o vi no meu sonho

O final de I Saw You In My Dream foi um arremate perfeito pra uma série que me pegou de surpresa: eu nem sabia da produção dela, conhecia um dos protagonistas por causa de uma aparição breve em outro projeto e só. Mas, já nos dois primeiros episódios lançados juntos eu fui completamente capturado pela doçura da história dos vizinhos que cresceram juntos e que por isso acabam desenvolvendo um laço forte de cumplicidade e carinho, a despeito das provocações, que mais tarde evolui pra um amor puro, genuíno.

O arco dramático principal não envolve a separação do casal, isso me deixou realmente feliz, a primeira parte da temporada foca no desenvolvimento e aceitação dos sentimentos, dessa transmutação da parceria amigos-vizinhos-irmãos em namorados, que foi feita de modo tranquilo sem atropelos, e me fazendo apaixonar por ambos a cada episódio, isso aliado ao plot sobrenatural dos sonhos premonitórios. 

Ao Ai é dado uma escolha, embora mostrada isso não é dito explicitamente: ele vê a possibilidade de dor ao outro, a quem ele ama, e pode escolher interferir e tomar pra si aquele destino. Mesmo sem perceber ele toma a responsabilidade de cuidar do bem estar do outro, que também se sente responsável pelo mais novo. Esse plot que inicia e encerra a trama  dá uma coesão interna para a obra que a torna completamente satisfatória, isso porque o arco de conexão justamente consegue trabalhar os sentimentos de ambos, suas respectivas responsabilidades e impacto na vida um do outro, de modo a prepara-los para o desfecho que, por sua vez, uniu todos os personagens na escolha de um destino em comum que pudesse salvar a todos: a escolha de dividirem, com família, o "azar" e assim continuarem juntos.

A série pode não ter figurado entre as grandes produções do ano na Tailândia, e nem no cenário global, sendo lançada quase ao mesmo tempo que The On1y One e encerrando na mesma semana da nova temporada de Heartstopper, mas no meu coração ela se tornou uma das melhores do ano e o carinho que criei por cada ator e personagem já me faz querer ver novos trabalhos. É exatamente aquele tipo de obra que deixa o coração quentinho, e era o que eu mais precisava ontem. Apenas isso, um abraço apertado de desconhecidos tailandeses sorridentes e amáveis namorando fofinho. 

quinta-feira, 3 de outubro de 2024

Pó de Café



"Estão terrivelmente sozinhos
os doidos, os tristes, os poetas."

(Hilda Hilst)

Podiam vender ânimo ali no mercadinho da esquina. Café e chá já não dão conta do recado. Tentei ainda aqueles comprimidos de cafeína, taurina, açaí e guaraná, sem sucesso. Continuo indisposto, apático, com preguiça de tudo e até meio impaciente, nervoso mesmo, com a pressão sobre mim. Muito embora eu não demonstre, muito embora aos olhos dos outros eu ainda pareça bem.

Quer dizer, isso não é verdade, as pessoas continuam me dizendo para ir para a terapia. Então acho que elas estão percebendo sim. Já é a terceira pessoa que me diz isso em menos de uma semana. Mas, também, nos últimos dias perdi quase três dias inteiros de trabalho e praticamente não fui na igreja quando precisavam de mim. 

Mas eu não estava. 

Era apenas uma casca vazia

e nada mais.

As palavras são meu refúgio, de vários modos. Tenho escrito não apenas para descarregar, mas porque esse se tornou um dos poucos momentos em que consigo criar uma barreira quase visível entre mim e os outros, entre o mundo. 

O inferno de mais um dia começou. Pelo menos hoje tem previsão de chuva, muito embora eu saiba que a estação do calor já está logo aí. Adeus casacos, cachecóis e ambientes confortáveis. O ar-condicionado ligado no máximo, suar às sete da manhã e voltar para casa grudento e cansado pelas variações de temperatura do dia todo. Não estou nada ansioso pra isso, aliás, poderia tranquilamente ficar o ano inteiro entre a estação fria e a amena. Mas infelizmente ninguém me consultou isso ao definir ou alterar o clima do planeta. 

O grande poeta disse que as alegrias violentas são essas que têm fins violentos. Por outro lado, embora não como uma explosão passional, o meu fim é o mesmo das paixões: a cinza fria que se dissipa no vento, como parece ter se dissipado minha vontade de viver, minhas forças para lutar pelo que quer que seja.

"Milhões de estrelas, a noite avança luminosa,
A luz, uma lanterna solitária na falésia,
Redonda, cheia, não vale a pena polir,
Suspensa no céu, como o meu coração."

(Han Shan)

terça-feira, 1 de outubro de 2024

Retorno do Sol

Atashi: あ た し (atashi) Jeito bem informal, e afeminado de dizer “eu” em japonês.

Poder dizer "Eu", com consciência de causa: em plena conformidade, entre interior e exterior. Pode, e quase sempre o é, exceto pelas pessoas mais simples, que o dizem com mais franqueza e verdade que as ditas estudadas, que complicam o processo com camadas e mais camadas de falseabilidade. 

Mas poder olhar-se no espelho e enxergar um reflexo do interior, complexo, profundo e repleto de intrincadas relações entre o espírito e a matéria. 

Eu, a fera que gritou Eu no coração do mundo. 

Nas grandes teogonias, em especial na Epopeia da Criação, a Enuma Elish, a existência só adquire consistência a partir da criação ou da pronúncia do nome. O nome confere parte do ser ao ente. Antes disso, experimenta aquela criação engendrada entre Apsu e Tiamat que não tem forma, não tem uma presença presente, é algo ainda vazio, sem contorno, ainda que preenchidos das águas dos deuses primordiais do caos. 

Também no outro encontramos algo ao nosso ser. Por contraste, por diferenciação descobrimos o que não somos. O que resta e o que vai além, pode ser indícios da descoberta do eu. 

Aceitar falar de si mesmo com propriedade de causa, levando em conta o Eu integral, e não apenas a aparência exterior, pode ser um bom caminho. 

Resultado: a leveza do ser, do ser realmente, do ser quem é de verdade e em verdade. Leveza revelada num sorriso. 

X

Participei e ajudei a organizar hoje a Missa em Honra de São Francisco de Assis, padroeiro da minha comunidade e, claro, um de meus santos de devoção. Missa bela, festa preparada, bem participada, todos em direção ao Pão do Amor. Mas, em mais um momento, senti um desnível entre o que propunha a celebração, isto é, a contemplação da vida de São Francisco como reflexo do Cristo, mas, o que eu via, era apenas a alegria pela comunidade reunida. Realidade imanentizada, imediatista, e por isso mesmo batendo palmas, agitando os braços, sem ouvir as leituras e orações, em espírito de festa, mas não em espírito de oração. Diante de uma comemoração, mas não de um ato sagrado. Reunião materialista, humana, onde o sagrado, presente e atuante, passa despercebido. Quem me dera descrever os tesouros tão divinos, que o grande Deus Uno e Trino, colocou na contemplação da vida do pobrezinho de Assis. Mas talvez hoje tenha sido apenas uma missa animada, e um churrasco.

Certa vez São Francisco surpreendeu seus irmãos aos prantos, chorando copiosamente e dizendo "o Amo não é amado", lamentando profundamente o descaso para as graças que Cristo constantemente derrama sobre nós. No entanto, o excesso de protagonismos, de invencionices, ofusca e achata a ação de Deus, como se a alegria da festa, realmente alegre e realmente boa, fosse tudo, mas não, ela apenas aponta para a festa celeste, onde eternamente anjos e santos bendizem a Deus por todas as suas obras. 

X

Tentando fechar os olhos ao caos. De repente todos resolveram enviar demandas urgentes. Tudo é urgente, tudo precisa ser feito agora. 

Agora, 
agora, 
agora.

E agora?

Agora meu chá esfriou, as ideias se dispersaram, aquele impulso primeiro, aquela alegria, tudo isso acabou. 

O sol brilha forte, posso sentir as pessoas animadas por isso. Foram meses de um inverno ameno, porém cinza e seco. A umidade retorna aos poucos, as plantas já brilham num vigor que não víamos há tempos. 

Estou desanimado, não sei se necessariamente depressivo. Só me sinto completamente desmotivado com relação a tudo. Tentei ficar acordado ontem, inclusive só fu dormir no fim da tarde, mas ainda fui, porque se eu olhasse ao meu redor, o tédio se manifestava de tal modo que se transmutava em desespero. 

E não quero desespero. Eu já sabia que essa semana iria começar assim, intensa. E foi como pensei. Todos já estão ansiosos. Perdi a conta de quantas já respirei fundo, e pelo visto vou precisar continuar fazendo isso. 

Não gosto de dias brilhantes, como o são na primavera e no verão, pois parece que sou obrigado a ajustar meu humor e ficar contente e saltitante como os pássaros, e não quero isso. Só queria ficar quieto, tomar um chocolate, e fazer meu trabalho sem toda essa correria alucinada.