quinta-feira, 24 de outubro de 2024

Próximo do Normal

"Tenho desejo forte,
E o meu desejo, porque é forte, entra na substância do mundo." (Fernando Pessoa)

Passei um bom tempo olhando para a tela em branco. Nada me ocorria. Uma tristeza profunda havia tomado conta do meu coração e já se espalhava por todo meu ser. A noite foi de escuridão intensa. Não depressiva. 

Tristeza, doença da alma. E pecado. Tristeza consentida, alimentada. 

Tenho noção de que estou apenas colhendo as consequências de algo que eu inventei e alimentei. Um amor não correspondido que se tornou algo que me consome diariamente. Com efeito, penso nele todos os dias, desde que acordo e abro os olhos, até me deitar e mergulhar em sono profundo, onde até ali, o sentimento permanece. 

Esse sentimento, eu sempre o soube que não poderia acontecer, mas ainda assim nunca consegui fazer extinguir completamente as chamas da esperança que, mesmo como fagulhas, ainda persistiam em me fazer crer. Mas, na realidade, tudo o que tinha sobrado eram as cinzas consumidas por esse mesmo fogo.

E ele não teve culpa. Eu mesmo me queimei. Eu mesmo me lancei nas chamas. Eu sou o culpado da minha própria desilusão. Eu sou o único que deve ser condenado, e já estou pagando por esse desvario: a solidão que vivo, o silêncio que me impus, sem patrono ou teogonia. 

"O amor não fez nada por mim. O amor me machucou, (...) me chamou de animal. Fez eu me sentir inútil, me deixou doente." (Preciosa)

Você não teve culpa. Pare de se desculpar. Você não tem nenhuma obrigação em corresponder ao que sinto.

Breve serei, como disse o poeta, mero corpo desiludido do amor encaixotado. Talvez debaixo da terra eu encontre o conforto que em vida busquei. Talvez os vermes me possuam e me queiram como não o fui em vida. Talvez quando já não mais houver fôlego em mim, cesse de alimentar essa chama, que não é mais chama viva de amor, senão que apenas me consome, e sinto que logo não haverá muito que reste.

Mas, em quando não me desfaço em cinzas ao vento completamente, eu passarei a ser um fugitivo. Fugitivo desse amor que tem me mantido cativo, infeliz. E eu já não sei mais como poderia mostrar a ele que, independente das crenças morais kantianas a que ele tem apego ou de qualquer outra coisa, o amor deve ser suficiente para superar qualquer coisa. O amor tudo suporta. Mas, o amor também é livre. E ele não me ama da mesma forma. Por isso eu vou fugir, fugir até que tenha perdido, além da minha essência de amante, também as amarras que me tornam um incômodo. E, quem sabe assim, eu possa ser algo próximo de normal.

E nem adianta simplesmente mover o eixo de atenção. Aquele que antes chegou a despertar algo em mim, é apenas um conhecido que encontro e converso no ponto de ônibus. O novo amigo, que carinhosamente me beija o alto da cabeça, não tem interesse em homens. De resto, minha vida é limitada, não tenho nem amigos para compartilhar as coisas que amo.

O amor não existe. Se existe, não pode ser conhecido e se, por acaso for conhecido, não pode ser compartilhado. Logo, o amor, sendo doação em sua essência, não passa de ilusão. 

Mas e agora, eu que passei a vida amando? E eu, pobre, que fare, que patrono invocarei? Lacrimoso este dia em que, tornado em cinza fria, as últimas fagulhas lutam para se engrandecerem e me machucarem de novo. 

Eu não quero mais amar. Por isso eu vou dormir, dormir de modo tão profundo que eu me esqueça que o amo. Só espero não sonhar com ele.

"Naquela madrugada sombria e funesta, 
o diabo fez uma breve visita
à minha mente. A parte cômica é que 
ele se espantou ao perceber

que estava em casa."

(pevon)

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