sábado, 30 de novembro de 2024

Aforismos

Talvez não seja você. E nem eu. Talvez conhecer o outro seja algo realmente impossível e que, por qualquer razão, pensamos ser realizável, e não é. Por isso somos assim. Por isso conversamos por anos e sentimos que não conhecemos o outro. Por isso sinto que não conheço o outro. Mesmo me abrindo, sendo transparente, claro com meus sentimentos e intenções. É como se eu sempre falasse sozinho. Porque acho que, no fundo, eu sempre estive falando sozinho mesmo.

Não sei bem explicar aquele impulso, mas foi por apenas um instante, tão ínfimo que, não fosse minha natureza poética dada a observar as pequenas coisas, nem mesmo poderia dizer-se que existiu. Mas apareceu, um brevíssimo aceno na minha mente, o olhei por um único segundo e então desviei a mente para a nota que não conseguia cantar. 

Fui dormir assustado, e instigado, com as provocações de Spare Me Your Mercy, a nova série estrelando Jayler e Thanapob Lee, trazendo algumas questões interessantes. Acabar com o sofrimento e dor de uma pessoa, mas também acabar com sua vida, ou preservar a vida, e prolongar a dor? 

Questão complexa que, não raramente, cai na avaliação superficial, sendo a própria questão, meio incoerente, por equiparar dor e sofrimento com o valor ontológico da vida. Mas eu não sou o mais indicado para dar uma avaliação sobre o assunto justamente porque, reconhecendo o valor da vida no outro, não a reconheço em mim, sendo que defendendo a vida ao outro, eu a nego a mim mesmo, senão que desejo que minha encontre a finitude mais breve possível, antes até da próxima refeição. 

Como disse Rubem Alves, "o que escrevo não é o que tenho; é o que me falta. Escrevo porque tenho sede e não tenho água."

Percebi, uma vez mais, a diferença entre quem decide ir pela vida intelectual e os que os rodeiam. Realmente o homem de estudos não pode esperar ser compreendido pelos outros, ele que precisa compreender. Portanto, o que faz o homem de estudos deve contribuir para que ele se oriente no mundo ao redor. 

Minha cabeça está explodindo da última ciclagem. É sempre essa dor incômoda, e claro que ninguém entenderia se eu não viesse trabalhar por causa disso. É sempre fácil julgar a dor do outro não é? Talvez devesse voltar pro debate sobre eutanásia, mas não, não estou aguentando muito bem, queria poder simplesmente voltar pra casa e dormir. 

Acabei de descobrir que além da famigerada e temida confraternização do trabalho eu ainda tenho reunião, e não consigo nem ficar com os olhos abertos direito. E ainda é sexta-feira, eu trabalho no sábado, e sábado tem evento, e essa semana teve cinquenta dias, e eu não participei do evento que eu queria ter participado, e isso é um inferno. 

Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse...
Mas você não morre,
você é duro, José!

Carlos Drummond de Andrade

quinta-feira, 28 de novembro de 2024

Desconexo

Michel Onfray

Em "Um Psicólogo no Campo de Concentração", Viktor Frankl versa acerca do sentido da vida e, determinado ponto me chamou a atenção, quando ele diz: "Quanto à origem do sentimento de falta de sentido, pode-se dizer, ainda que de maneira muito simplificadora, que as pessoas têm o suficiente com o que viver, mas não têm nada por que viver; tem os meios, mas não têm o sentido. Sem dúvida, alguns não têm nem mesmo os meios." 

Eu até queria poder falar mais sobre isso, queria poder fazer aqui uma contribuição filosófica, ainda que modesta. Mas não. Não é possível. Eu olho a minha frente e vejo as folhas verdes padecerem ao calor úmido dessa época do ano. Olho nas redes sociais a colega de trabalho saindo com aquela garota idiota. Olho ao meu redor e vejo coisas que precisam de mudança, mas mudanças que custariam dinheiro e esse é um problema que não é meu. Penso que vou voltar pra casa com toda essa umidade, e então percebo que vou ficar cansado demais pra conseguir estudar e ainda assistir alguma coisa com algum proveito, e então sei que vou fazer os dois, e não vou nem aprender direito e nem prestar atenção na série.

Mas, aparentemente, tudo bem o ser humano viver assim, completamente ausente de sentido, contanto que consiga realizar algumas funções. É assim que somos classificados. Um homem será tão valioso, para essa sociedade doente, quanto possa ser útil, sem que para isso precise ter a mínima noção de sentido. 

Quando dizem que o trabalho dignifica o homem, isso só é verdade quando ele sabe disso, quando ele produz algo verdadeiramente útil, quando ele pode com isso prover seu sustento e de sua família. Mas, quando ele é apenas medido pela sua capacidade de repetir funções, de ser útil aos interesses do outro como quem usa uma ferramenta que, uma vez perdendo sua utilidade é descartada, não pode haver dignidade nenhuma nisso. 

Como pode ser digno ser uma criatura que só repete, repete e repete, e não pode sentir? Como pode ser digno se, nos dias que nem consigo me mover, ainda assim preciso sair da cama e dar respostas e preencher documentos e enviar imagens e ser funcional quando cada fibra do meu ser clama pela não existência? 

Simplesmente existir é incômodo demais.

Acho que, no momento em que decidi romper os laços de amor que restavam, eu acabei também com o que me restava de sentido, ou, ao menos, com aquilo a que me dedicava. Agora não consigo mais sentir nenhuma conexão. Mais do que nunca sinto que estamos distantes, tão distantes que não conseguimos sequer olhar um para o outro.

Distantes.

E isso porque o laço que nos ligava se rompeu. Mas ele também era a centelha que havia sobrado em mim. 

Sem amor não há mais nada. 

Tento pensar em outra possibilidade, mas meu pensamento trava na segunda página. Não quero mais amar ninguém, não vale a dor que causa, nem mesmo quando essa dor possa provar que eu estou vivo, coisa da qual duvido muito no momento. Acredito que é melhor ser uma casca morta, do que sentir dor o tempo todo por um amor impossível. 

E amor verdadeiro não existe.

Esperei pelo ônibus sentado, o calor e a umidade me dando a certeza que estaria suado, e molhado da chuva, antes das oito horas. Aquele menino não apareceu nos últimos dois dias, não que faça alguma diferença. Hoje vai ser um cão dos infernos. E ainda faltam três dias pro fim de semana.

Percebi, de novo, que não só não participei do grande evento de anúncios de 2025 como queria, como não consegui nem comentar como nos outros anos.

A desconexão é real. E não me desconectei apenas dele ou dos outros. 

Me desconectei de tudo. 

E de mim.

quarta-feira, 27 de novembro de 2024

Noites como hoje

Mais um dia, em que chego e me jogo sobre a cama. Em que fecho os olhos por um breve instante e sinto cada membro doer. Viajei por metade da cidade, e o tempo já começa a ficar quente e abafado o dia todo, aumentando o cansaço. Sinto como se sugassem de mim cada pequena fagulha restante, mas não é bem isso, não é como se eu fosse uma fornalha ardente a ser consumida, eu já estava sem brilho há muito tempo.

E sei que disseram que minhas oscilações são perigosas, e que se elas continuarem, terão que encontrar alguém para me substituir. Sorrio. Sempre soube que seria assim. Absolutamente todo mundo é substituível. Na verdade, agora, eu queria mesmo ser substituído, ser descartado, ser jogado fora. Se isso significasse não precisar voltar lá e me desfazer assim. 

A vida é mesmo um cão dos infernos. Aqueles infelizes pelo menos vivem um pouco, enquanto outros vagam pela sarjeta. E esperam que eu faça isso pra sempre, que eu seja sempre útil, prestativo, sorridente. Raios, sorridente! Quando eu nem mesmo consigo controlar meu rosto para uma expressão além de choro ou de apatia, e esses fodidos ainda me sugam o resto que havia, deixando só uma casca vazia, uma sub figura de humano, e ainda querem que eu sorria. Todos são lixo, escória maldita. E cada vez que sorriem para mim eu imagino setenta formas de fazer aqueles olhos perderem a cor. Só que de modo violento. E é exatamente o que fazem comigo. E por que não é considerado crime? Um crime lento e silencioso. Eles lenta e silenciosamente acabam com a minha vida.

Mas as pessoas só percebem isso quando alguém tem coragem o bastante pra pegar uma corda e amarrar no pescoço. Meu único rancor é que ele fez isso antes de mim. Talvez eu corte os pulsos ou tome todos os meus remédios de novo, qualquer coisa que impeça aqueles trastes de me sugar, sendo que já não tenho mais nada. Mas eles não entendem, é claro que não! Eles não entendem nada, e nem dão a mínima pra isso. Dizem que isso é algo extremo, e que devem pedir ajudar. Mas eles não enxergam ou ouvem os pedidos de ajuda. Quando eu me afastei por alguns dias, estava pedindo ajuda, e eles no máximo cogitaram colocar alguém no meu lugar. E então falam do suicídio como se fosse algo horrendo e distante. Não podem entender que o suicídio não é sobre querer morrer, mas é sobre sentir que viver não é mais uma opção. É, como dizia Nietzsche, uma consolação que ajuda a suportar muitas noites. 

Noites como hoje.

“O que dói é a constante perda de humanidade naqueles que lutam para manter empregos que não querem, mas temem uma alternativa pior. Acontece, simplesmente, que as pessoas são esvaziadas. Elas são corpos com mentes temerosas e obedientes. A cor deixa seus olhos. A voz está desfigurada. E o corpo. O cabelo. As unhas. Os sapatos. Tudo. Quando eu era jovem, não conseguia acreditar que as pessoas deram a vida em troca dessas condições. Agora que estou velho ainda não acredito. Por que eles fazem isso? Por sexo? Por uma televisão? Por um carro com pagamentos fixos? Pelas crianças? Crianças que crescerão e farão as mesmas coisas?" (Charles Bukowski)

terça-feira, 26 de novembro de 2024

Sem Vontade

"Pois quem não tiver para si dois terços de seu dia é um escravo, seja ele quem for." (Nietzsche)

Dia de ira.

Cada um tem como coisas importantes aquilo que, no seu coração, lhe desperta algo. Não é de hoje que as séries são algo que eu amo e uma das pouquíssimas coisas que me dão alegria. Poder acompanhar as histórias, poder me emocionar, como foi nas ultimas semanas com Kidnap, ou sorrir, como tem sido com Caged Again, ou simplesmente poder me surpreender e inspirar com a beleza genuína, como fiz com Every You, Every Me, me sentindo bem ao ver o Mick e o Top depois de acompanhar a produção por tanto tempo, ou ainda só sentir o coração quentinho ao poder ver, finalmente, os ThomasKong em Your Sky, depois de tantos vídeos virais no TikTok. Esse mundo das séries é o meu mundo, é o meu descanso depois dos dias cheios, dos incômodos, dos idiotas.

E então, no dia mais importante de todos, eu tenho que acordar cedo e tomar um ônibus, e vir trabalhar, e ouvir as sandices de um velho crítico de arte que ninguém lê. Nesse dia, eu refleti sobre o que tenho feito. Sobre o que tem sido minha vida.

Trabalhamos para conseguir viver. Mas, se nem o mínimo eu consigo, qual o sentido de fazer tudo isso? Qual o sentido de deixar minha carne ser esmagada assim? 

Volto aquele tema: eu não pedi por uma coisa grandiosa: eu não desejava ter ido pra Tailândia por uma semana pra assistir aos anúncios do próximo ano. Eu não pedi ao universo pra ir num dos três shows que aconteceram no Brasil nas últimas semanas. Eu só queria poder assistir, da minha casa, tomando um chocolate quente e ficando feliz pelos anúncios feitos. 

Só isso. 

Mas até isso me foi privado. 

Percebo agora o quanto eu sou escravo. Porque os outros, todos podem adoecer, todos podem viajar, todos podem ter sua larga cota de passatempos e chamar isso de trabalho. Podem mandar, aparecer para tirar algumas fotos e ir embora quando o vinho acaba. 

Eu preciso sacrificar até essas minhas pequenas alegrias. Irrelevantes a todos, importantes apenas pra mim. Eu não posso viver. Preciso sempre chegar em casa tão cansado que não aguento nada além de ir imediatamente pra cama. Preciso ficar até o fim, apagar as luzes, abaixar o som. 

É sempre esse inferno. Ninguém liga se você tem algo pra fazer, uma vida ou outro interesse, ninguém se importa. É sempre essa porcaria de vida, sugando cada pequena alegria, até que não sobre nada. Somos brinquedos, fantoches nas mãos de deuses. E a vida faz questão de foder cada um de nós, até que não sobre nenhuma vontade, nenhuma força. Até que sejamos apenas cascas vazias e mecânicas cumprindo missões. 

Cá estou eu, fazendo parte da lixeira da miséria humana. Perdido entre as festas e os sorrisos de pessoas completamente vazias, e a mercê do julgamento dessas mesmas pessoas. A minha vida está em suas mãos, e elas fazem o que quiserem de mim. 

É um inferno, um ciclo interminável, e todos não passam de lixo: eles que mandam e eu que obedeço, todos lixo, e nada mais!

Quisera eu poder expressar nessas palavras o desprezo que sinto por eles me controlando assim, por saber que eu não tenho nenhum poder sobre minha própria vida, que sou escravo, que sou apenas um sem vontade. 

Talvez tenham eles percebido que eu sou um grande vazio, e por isso queiram se aproveitar. Ou talvez nem sequer me reconheçam como humano também. 

De fato hoje não sou mais homem. Se olho no espelho vejo apenas um reflexo triste, e nada mais. 

"O trabalho estava me dando nos nervos. Seis anos, e não tinha um centavo no banco. Era assim que pegavam a gente - só davam o bastante para a gente se manter vivo, mas nunca para acabar se escapando." (Charles Bukowski)

segunda-feira, 25 de novembro de 2024

Aforismos

Arnold Böcklin

"Se a voz da noite responder
Onde estou eu, 
onde está você
Estamos cá dentro de nós 
sós"

(Chico César)

Sempre vemos o quadro parcialmente. Ao olharmos o outro não vemos senão uma fração que ele permite que vejamos, ou que ele consegue demonstrar. De um modo ou outro nossa visão da realidade é limitada.

Com isso não quero dizer que estamos todos num grande engodo kantiano, numa espécie de matrix, não, apenas estou repetindo o óbvio: o homem é limitado por sua própria natureza, nossa inteligência sendo então diferente da dos anjos, que a tudo conhecem num relance. Somos parciais, embora sejamos parte do todo (todo que "neles vivemos, nos movemos e somos" como disse S. Paulo). 

O outro também pode estar passando um inferno. Assim como eu também. E me sinto culpado por não ver o inferno em que está o outro. O outro também não se aproxima do inferno que há em mim. Somos todos condenados iguais? 

Toda existência é solitária assim, dolorida assim, triste assim. A imensidão desses espaços infinitos de Pascal, o pavor, tremendo horror. Mas o que resta senão a pergunta: há salvação? 

X

Você lembra de detalhes de mais de dois anos atrás. Saber disso faz algo se remexer em mim, mas não sei dizer o que é. Antes diria que era amor, mas sufoquei esse sentimento. Finalmente acredito ter extinguido isso de mim. Com isso foi-se o que restava para não ser uma casca vazia. O vazio ficou. Não há mais amor em mim. Mas, se o amor era aquilo que ainda fazia brilhar uma centelha em mim, que pode ser de mim agora? Nada. 

E lembro de quando eu cantava, imitando S. Terezinha, para que Deus fizesse "de meu nada, amor. Só. amor."

Agora ainda sinto as dores daqueles dias tensos. Não vou sair da cama. Quero que sintam minha falta e, assim, vejam que não podem deixar tudo em cima de mim. Mas, seja em plena loucura e correria, ou durante uma manhã de chuva fina como hoje, olho pra cima por um breve instante, elevo os olhos a Vós ó Pai, e depois retorno a mim, sentindo apenas esse meu enorme vazio.

X

Eles nunca vão mudar, sempre viverão nessa loucura, nessa pressa, numa incessante busca, perdendo de vista o que está bem a sua frente. Essa pressa é louca. São todos loucos. Estamos todos loucos. Perdemos de vista a quem devemos agradar, queremos ser aceitos pelos mais banais de nós, pelos mais idiotas, queremos a aprovação dos mais tolos, daqueles que não seriam aceitos por ninguém que tivesse algum bom senso. 

Tiraram uma foto minha enquanto sorria, e sorria de verdade. Sorrio quando estou confortável e com pessoas que amo. E então, pessoas que não são próximas e que não entendem nada de mim porque nunca me olharam de verdade, disseram que aquela foto, do meu sorriso, capturava minha essência, como se houvesse de lindo e brilhante dentro de mim e que apenas umas poucas vezes vem até a superfície.

E é claro que ninguém vê quem fica até o final, quem varre o chão e apaga as luzes depois que acaba a festa. Todos se lembram do bobo que dançou depois da segunda garrafa, ou do anfitrião que propôs o brinde. 

Não, a minha essência não é sorridente. Eu sorrio, mas tenho uma alma triste, profundamente triste. Meu coração cinza jaz numa escuridão profunda.  

Principalmente agora, passada a euforia, a música alta, e todos os desencontros, de toda aquela subserviência patética. Sobrou apenas o vazio, o nada. 

"Acaso busco eu agora a aprovação dos homens ou a de Deus? Ou procuro agradar a homens? Se eu ainda procurasse agradar a homens, não seria servo de Cristo" (Gl1, 10)

quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Um quadro geral

Gustave  Caillebotte

"Já lhe aconteceu, algumas vezes, encontrar num livro uma ideia vaga que se teve, alguma imagem embaciada que volta de longe e que parece a completa exposição de seu mais sutil sentimento?" (Gustave Flaubert)

Me sentindo um idiota por ter reagido daquela forma, por ter me deixado abalar tanto, por ter caído num dia que deveria descansar, por ter deixado a minha mente me dominar dessa maneira e me levar aos círculos mais profundos do inferno. Me sentindo leve por esse peso ter sido retirado das minhas costas, mas agora sinto como se tivesse carregado tudo por nada. E assim, simples como um bipe ou um aceno, tudo acabou...

E agora, no dia seguinte, com o corpo dolorido, de toda aquela tensão nos últimos três dias, eu vejo o peso que colocaram sob minhas costas. No entanto, olhando o horizonte, não vislumbro melhora. Não sei como poderia sair dessa situação. Devo pedir demissão? E com que forças eu vou procurar outro emprego? E se o outro for ainda pior, com chefes ainda mais idiotas e incompreensíveis? Mas e se for melhor? E se tudo isso for apenas fraqueza minha, afinal não é a primeira vez que uma situação me deixa doente.

Acredito que estou de frente com um problema e, como ensinou o Prof. Olavo, problemas não se resolvem como se acredita: por meio do pensamento e análise até alcançar uma resolução. Apenas verdadeiros gênios fazem isso, e mesmo eles uma ou duas vezes na vida. Problemas se resolvem por uma alteração do quadro geral das coisas, uma modificação tal da situação que independe do homem. Em verdade aquilo que conseguimos controlar é pouco, quase nada, em relação a tudo aquilo que nos vem de fora e que, não raras vezes, nos esmaga completamente. 

Por isso me pergunto se não seria o caso de assumir uma postura diferente, uma transformadora e, até mesmo combativa. Uma postura mais firme, que não apenas receba a lide com aquilo que se vem contra mim. Mas também não estou certo disso. Uma transformação da atitude ou de toda a situação, como quando vim pra Joinville? Mas, embora eu nunca tivesse essa esperança, vir pro Sul mudou completamente a minha vida, e cá estou eu, pouco mais de dois anos depois, mergulhado em desesperança novamente, numa tristeza e aflição profunda. O que me indica que essa melancolia não é reacional, não é uma resposta ao meio, é algo inerente ao meu ser, não sendo então algo que possa ser resolvido, sendo não um traço, mas algo essencial, algo tão profundamente arraigado em mim que não se pode dissociar meu eu da tristeza que sinto. 

Devo fugir? Enfrentar? Como fugir e como enfrentar? Como mudar o quadro geral das coisas, como resolver o problema? Como entender o problema? São questões demais, e o tempo lá fora combina um dia nublado e abafado, quer fazer sair o sol ao mesmo tempo que chove torrencialmente. Também não se decide, se perde nessa dualidade que há em meu peito.

"Ó vós outros, quem quer que sejais, rústicos deuses, que nesta desconversável paragem habitais, ouvi as queixas de tão desditoso amante, a quem uma longa ausência e uns fantasiados zelos hão trazido a lamentar-se nestas asperezas, e a queixar-se da dura condição daquela ingrata e bela, fim e remate de toda a humana formosura." (Miguel de Cervantes)

quarta-feira, 20 de novembro de 2024

Sobre a Linguagem


Comunicação. Como é uma coisa complicada. E nem me refiro as grandes teorias e discussões acerca da insuficiência e objetivos da linguagem, como no De Magistro de S. Agostinho, passando pelos séculos até chegar em Kant, David Hume, Wittgestein e tutti quanti. Foi esse diálogo, um workshop na série Every You Every Me entre Mick e Top (os atores) que me deixaram boquiaberto, ao mesmo tempo, entendendo as várias camadas de significados que eles apresentavam ali, mas por saber que a mesma dificuldade que eles interpretavam em cena, numa espécie de metalinguagem, já que os atores interpretavam atores que estavam com problemas na sua atuação justamente por conta dos problemas de suas vidas pessoais. 

- Eu sinto muito!
- Eu estou bem.
- Eu sinto muito!
- Eu estou bem.
- Eu sinto...

O ponto pacífico é: o homem sempre tem, e provavelmente sempre terá dificuldade em se expressar, em dizer o que sente, em comunicar os afetos de sua alma, mas também de compreender os mesmos afetos da alma do outro.

Quantas comunicações são completamente incompreensíveis a quem quer que seja? Tomo pelos choros do meu sobrinho, que aposto nem sequer entende o que sente, mas de que, de algum modo, comunica, mostrando o desesperar-se no trauma de emergência da razão. Tomo pelas incontáveis expressões artísticas que tentam traduzir, expressar isso que trazemos no profundo do ser. A densidade das sinfonias de Mahler, toda a loucura da música contemporânea expressando a bestialidade em que o homem se meteu, as infindáveis páginas, de Homero a Proust, Augusto dos Anjos e os novos poetas da internet, uma lista sem fim, de pessoas tentando dizer algo para outras, ou, antes disso, tentando entender o sentem ao ponto de conseguirem dizer a si mesmas.

E então, a totalidade dos homens, esses que me rodeiam, e que não conseguem dizer, e não conseguem me ouvir ou entender, e por isso sofremos. Sofremos porque somos, sempre e sem chance de não ser, ouriços na vida uns dos outros. Por aqueles sentimentos que habitam nosso tão profundo que quase nem nós mesmos conseguimos dizer que existe, e aquilo que não dizemos porque de fato não o é, e toda sorte de confusões que daí se originam.

Continuo então sem entender, muitas vezes desistindo. Porque percebo que o outro não tem interesse no que digo, que sua mente parece tão distante que não seria exagero dizer que nós estamos em universos diferentes, caindo no clichê tosco, porém verdadeiro, de que cada um é um universo por si. Mas, então, sendo assim, onde podemos encontrar na comunicação aquele princípio estabilizador, universal, que nos permite definir cada um como um universo e não como apenas parte de outro universo. Onde está aquela estabilidade na linguagem que permite a duas pessoas se entenderem? Dito isso, é possível que duas pessoas se entendam? Porque parece que, ao falarmos das coisas profundas do coração, não fazemos mais do que meu sobrinho, em balbucios que, nem sequer compreendemos e tampouco conseguimos transmitir a outros. 

Daí, apelamos: escrevemos músicas, poesias, tiramos fotos e pintamos telas e, quando nada disso funciona, tentamos olhar no fundo dos olhos da outra pessoa e dizer "eu sinto muito", repetindo cada vez com mais verdade e mais vontade, podendo até alcançar o seu coração. Ou também podendo continuar distantes, incompreendidos e incompreensíveis. Essa parece ser nossa sina. Nossos amores jamais chegarão a saber que amamos e nem o quanto amamos. Nossos inimigos nunca vão entender a dor que nos causaram, e nossos amigos nunca vão entender o bem que nos fizeram. E por fim, morremos assim, sem nunca tocar o outro.

segunda-feira, 18 de novembro de 2024

Ansiedade

Every You, Every Me

O último dia. Sol que brilha, em verdade arde, nas folhas como esmeraldas iluminadas no corpo de alguma musa. Amanhã cessará o silêncio, o descanso do corpo. Em verdade, meu corpo está em dor já desde ontem, quando a ansiedade tomou conta de tudo. E me deitei, e sentia meus músculos se repuxarem, as articulações se condoerem, mostrando no corpo o que na alma havia se quebrado: o equilíbrio frágil da vida humana. 

Pensei um pouco, sobre a linguagem, tema do meu próximo texto, que só publicarei amanhã para não quebrar a ordem dos textos escritos durante os dias em que fiquei afastado do trabalho devido ao atestado do psiquiatra, mero capricho de um escritor lido por dois ou três amigos. 

Voltando à linguagem, fui dormir impressionado com as atuações de Mick Monthon e Top Piyawat. O plot sobre comunicação me rendeu uns bons gatilhos. Quantas vezes eu disse algo com toda a sinceridade que me era possível e, o outro lado não entendeu, assim como eles repetiam um ao outro, de um lado com sinceridade de coração e do outro, a vontade de acreditar, mas a dor criando um muro entre eles. Quantas vezes declarar o meu amor, com todas as palavras que me eram possíveis, de todas as formas que poderia, de nada adiantaram. Meu amor de nada adiantou. Minhas palavras foram todas em vão. 

O canto forte dos pássaros aqui do lado de fora, o brilho das folhas, as flores exuberantes do nosso jardim e da vizinha, tudo canta as maravilhas de Deus, e ainda assim parece que ninguém percebe. Por qual razão então entenderiam as palavras limitadas? 

De nada adianta, de nada adianta. 

No fim, só queria que conseguisse ver o brilho nos meus olhos quando pensava em você. Mas nem isso existe mais. O brilho se apagou. Todos os apaixonados foram dormir, e eu vou segui-los em sacra procissão, entoando preces de que seja perdoado, não por amar a um homem, mas por não me amar, por me odiar, por tantas vezes desejar que nem mesmo existisse. 

Uma manutenção sem planejamento deixou a cidade inteira sem água, mesmo com um calor insuportável e sabendo que a maior parte da população trabalha de forma braçal. Amanhã inclusive eu preciso voltar, mesmo sem querer. O vento sopra frio, a temperatura vai cair, sinto saudades do inverno.

Mais uma tarde e uma noite. O último dia. 

"Decorrera tanto tempo que havia desistido de aplicar sua vida a um objetivo ideal e limitava-a a perseguir satisfações do dia a dia, que julgava, sem nunca o afirmar formalmente, que aquilo não se modificaria até sua morte; ainda mais, já não sentindo ideias elevadas no espírito, deixara de crer na realidade delas, sem todavia não poder negá-las de todo." (Marcel Proust)

domingo, 17 de novembro de 2024

O bloqueio das nuvens



"Ouça-me bem, amor
Preste atenção, o mundo é um moinho
Vai triturar teus sonhos, tão mesquinho
Vai reduzir as ilusões a pó."

(Cartola)

Alguns raios teimosos de sol atravessam a grossa camada de nuvens dessa manhã de Domingo. Acabei de ter a confirmação de que o evento de anúncio dos novos projetos da GMM TV vai acontecer num dia que não poderei folgar. A essa altura é impossível que me convençam que essa vida não é um inferno por si. As minhas séries são uma das poucas coisas com as quais eu realmente me importo e até isso vem sendo esmagado atualmente. 

É uma miséria sem fim...

Okay, calma. Sei que isso pode demonstrar uma completa falta de senso da realidade, ou senso das proporções. Não poder acompanhar o anúncio dos lançamentos não significa que não vou acompanhar as séries, mas é algo que já faz parte de uma tradição pessoal minha, fazer apostas, vibrar com os lançamentos esperados e me surpreender com outros. 

O que me leva para aquela coisa da qual já falei várias e várias vezes: a vida parece fazer questão de esmagar cada pequeno sonho de modo a não sobrar mais nada. O destino de todos os homens com o mínimo de despertar é sempre o desespero. Não é como se eu faltasse trabalho para ver séries. Eu só assisto nos poucos momentos que me resta alguma energia nesse corpo morto. Então, quando brevemente eu precisaria, ou gostaria, de ver algo relacionado, as únicas coisas que despertam em mim algum ânimo: a vida faz questão de destruir esse sonho. 

Claro que não estou sendo fatalista no sentido de que algo realmente deseja que eu não veja, ainda defendo a indiferença do universo perante o homem, mas essa indiferença ainda nos coloca em situações assim. "Todo homem toma os limites de seu próprio campo de visão como os limites do mundo", dizia Schopenhauer. 

De novo, não é um grande sonho, não é uma grande aspiração, não é uma ambição movida pela inveja ou ganância. Não sou um monstro, nesse sentido. Mas até essas pequenas coisas, a vida fez questão de pisar em cada uma delas. Triturar cada pequeno vislumbre de felicidade que possa existir. 

Essa vida é uma desgraça sem fim.

O céu agora está estranho, a luz do sol se espalhou por trás da camada de nuvens, então não está nublado e nem claro, as nuvens bloqueiam o sol e brilham, mas sem que consigamos sentir o meio realmente iluminado. Tanto o sol quanto as nuvens tentam fazer algo simples: se estabelecer, e simplesmente não conseguem. 

Mas também sei que é absolutamente inútil pensar nessas coisas. Elas são assim, e pronto. E hoje tem a estreia de uma série que esperei por muitos meses, a maior espera do semestre, e as expectativas estão bem altas, mas tenho certeza que nenhum tipo de entidade trabalhou para que eu estivesse em casa hoje para ver. As coisas são assim e pronto. A vida é uma desgraça e, de vez em quando, coisas boas acontecem, apenas isso.

E então, de repente é fim de tarde de um domingo, o mais miserável dos dias da semana, e eu começo a ter uma crise de ansiedade por conta do trabalho acumulado nos dias em que estive de atestado, por causa de uma crise de ansiedade. E assim dou início a mais um ciclo infernal da minha vida. Isso me faz perceber o quanto eu estou fundamentalmente quebrado.

Foi-se a tarde e lá vem a noite. Quarto dia. 

sábado, 16 de novembro de 2024

Pensamentos de um sábado meio chuvoso

"Nada será tão fatal quanto abrir os olhos numa manhã qualquer e, logo após, subir à garganta a amargura brutal de uma alma que viu morrer sua humanidade consigo mesma, quando amaldiçoou o corpo

por ter acordado mais uma vez." (pevon)

Amanheceu chuvoso, aquela chuva fininha, persistente. Nessa época, ano passado, o calor já era insuportável. 

Aos pouco eu começo a perceber como o ambiente tem me deixado doente. Apesar de ontem ter me desesperado e apelado pros remédios por conta de pouca coisa, agora que se aproxima o dia de voltar, já sinto a ansiedade crescendo dentro de mim. Já prevejo os problemas que me aguardam e as idiotices que vou ter que responder. 

Me sinto descansado, pude dormir, ler, assistir e realmente me deixar envolver pelo que via, a história de busca por perdão de High School Frenemy que, com toda certeza, é um romance. Ainda não senti disposição o suficiente para andar um pouco, mas tudo bem. Também não respondi quase nenhuma mensagem, não sinto vontade de falar com muita gente e, mesmo quem eu respondi, não quero conversar por muito tempo. Parece que cada palavra que as pessoas me dizem só tornam ainda mais óbvia a distância entre elas e eu.

Não quero voltar, não desse jeito. Quero poder ficar longe assim, pensar com calma, e não se atingido por essa pressão doentia.

Mas eu sei que isso é só o desejo bobo de uma manhã chuvosa. É, pena, será um dia bonito, com a chuva caindo fininha o tempo todo, estragado pela ansiedade de uma semana infernal. Acho que eu realmente não quero voltar, e com isso alguns pensamentos acabam aparecendo: não precisaria voltar se eu não estivesse aqui. 

Acho que talvez seja a hora de tomar aquela decisão. Aquela que, em verdade, foi tomada, mas que não tinha dia certo a que se deveria tomar as providências necessárias. 

Talvez eu devesse deixar todos na mão. Não acho que seria tão importante assim e, na verdade, alguns até merecem isso. 

Acho que pode até ser que haja salvação, mas não pra mim. De nada adianta tentar um novo remédio, ou fazer terapia. Nem mesmo mudar de emprego ou de paróquia. De nada adianta. Acho que é hora de botar um fim nisso. Mas, por enquanto, vou dormir. 

Veio a tarde e uma noite, a chuva ainda cai fraquinha de vez em quando. Terceiro dia.

sexta-feira, 15 de novembro de 2024

Olhe no espelho, ou saia de si

Olhe no espelho, ou saia de si, olhe pra linha do horizonte: veja desfalecer a vontade, seja esmagado pelo eterno devir, perceba que as ideias eternas existem apenas para uns poucos infelizes iluminados. Tudo o mais passa, e não vale nada. E tudo mais causa apenas desespero, apenas o desejo pelo fim, apenas o retorno ao nada. E então você se dá conta da imensa pequenez, de uma finitude estúpida, e de idiotas que buscam sentido no caminhar para o fim, nas misérias, as grandes e as pequenas.

Alguém em algum lugar nesse exato momento luta pela vida, numa cama de hospital, num terreno de guerra (infelizmente distante de alguém que realmente merecia ver o fim vir do céu numa arma projetada com requintes tecnológicos para matar, destruir e aterrorizar). E tudo o mais que o homem faz é para matar, destruir e aterrorizar, ou para esconder isso de si mesmo. 

Alguém luta contra um câncer que já dominou tudo, alguém toma remédios para aliviar a dor, alguém se mexe com dificuldade, alguém está imóvel na cama como um vegetal e se apega ainda a única centelha vital que lhe resta, respirando por aparelhos, tendo a vida passando pela frialdade das cânulas de um motor prateado.

E por quê?

Para quê?

Se nos outros momentos a vida busca por esmagar cada pequena fração de esperança com a força descomunal de cinquenta deuses?

Mas isso também não é verdade.

O mundo, a vida, o destino, o universo, é brutalmente indiferente a cada um de nós. 

E é por isso que não há sentido, e nem sentido no buscar sentido, em porque alguém se debate numa cama de hospital, ou de por que crianças correm deixando para trás os corpos destruídos dos pais sob escombros e barulhos que lhes assombrará por cada maldita noite dos próximos quarenta ou cinquenta anos. E então, são chamados de heróis, sobreviventes. Sobre elas se compõem glosas, epopeias, mas, no fundo, são apenas desgraçados que, talvez, se recusaram a sucumbir. 

E tem eu, desgraçado que não viveu nada disso. Que vive melhor do que muitos desses jamais poderiam sonhar. Mas que nota a desgraça de estar em casa descansando pela primeira vez sabe-se lá desde quanto tempo, e a alergia atacar, a internet não funcionar, a farmácia não entregar o remédio que poderia me fazer ver a vida com um pouco menos de antipatia. Mas eu só vejo um vizinho estúpido usar um cortador de grama no feriado e o meu pai um aspirador de pó comprado na internet (num dia que ela funcionava normalmente) e outro vizinho gato limpando o carro (queria encontrá-lo um dia no aplicativo de pegação, de preferência sem a esposa e com bastante tesão). E eu, idiota, tosco, incapaz de suportar esses pequenos sofrimentos e colocar todos, eu e os refugiados de guerra e os moribundos, no mesmo rebanho de condenados a essa existência maldita.

Encho a cara de remédio e, no momento que termino de engolir, com a água já com gosto metálico, vejo que a internet voltou, e eu poderia voltar a maratonar a minha série, mas agora eu só vou acordar amanhã. Para olhar no espelho, ou na imensidão da linha do horizonte, e ver a vontade esmagada pelo eterno devir de uma existência patética e miserável. Em todos os planos. Aqui na sacada fria, na cobertura de um hotel de luxo, numa praia ou numa maca improvisada de algum hospital de campanha numa zona de guerra, infelizmente longe demais de matar alguém que deveria ficar calado por ter ideias idiotas demais. 

A camada de poeira diminuiu, mas apenas para evitar crises de rinite ou sinusite, ninguém percebeu que a poeira significa que todos já desistimos de viver. E aquela pobre criança, filha de idiotas, nasceu no meio de nós. Coitado, mais um no rebanho de desgraçados.

Veio a tarde e uma noite, segundo dia.

quinta-feira, 14 de novembro de 2024

Poeira

"Essa moeda do coração não se deve nunca reduzir a trocos miúdos nem despender em quinquilharias." (Machado de Assis)

Que eu possa descansar brevemente, chorar a minha sorte, dormir e preparar meu corpo para o retorno da névoa matutina. Que eu possa aproveitar algo nesses dias, quem sabe sentir a brisa do mar na minha pele, ou o vento fresco do fim da primavera, ou o olhar de um belo rapaz, qualquer coisa, se eu puder sentir qualquer coisa, já ficarei bastante grato. 

Porque hoje, nesse momento, tudo o que sinto é vazio. Tédio absoluto perante a realidade brutal da existência. Aquele mesmo tédio de Unohana ao eliminar as gangues de Rukongai, tédio de quem contempla o horizonte sem perspectiva de que haja nele algo que valha a pena vislumbrar. 

É esse horizonte sem nenhuma sombra de esperança que eu vejo hoje, ao notar toda a poeira que se acumulou ao meu redor. Ao ver os sinais depressivos da minha família, e ver que todo mundo é como um cadáver adiado, presos a uma ideia de que as coisas vão melhorar, e lutando por ela. Mas já se encontram sem forças, ou tempo, para perceber que ao nosso redor há uma grossa camada de poeira, ninguém consegue se cuidar mais. Estamos subsistindo, isso não é nem mesmo sobrevivência. É uma vida muito abaixo da humana.

As coisas refletidas no meu olhar não tem significado. As coisas refletidas nos meus olhos não existem. 

E parece que ainda há um sentimento que se reflete em meus olhos.

As coisas refletidas no meu olhar não tem significado. As coisas refletidas nos meus olhos não existem.

Porque sentimentos machucam.

Sentimentos machucam, é por isso que eu também quero selar os meus, num lugar profundo e obscuro da minha alma. Não mais como tesouro, mas como um monstro prestes a me matar. Como o demônio que selou seus poderes para aproveitar melhor as batalhas para sempre, eu devo selar meus sentimentos se quiser ter um amanhã. Se continuar a amar, se continuar a sentir, não terei um futuro, apenas esse olhar opaco e vazio. Porque todo meu amor foi em vão, assim como é vã a busca daqueles que procuram um inimigo que lhes possa entreter para sempre. Toda busca é vã. 

No fim há apenas um punhado de terra nos esperando: a parte que nos cabe desse latifúndio. 

É por isso que não há razão para carregar sentimentos, alimentá-los, para no fim eles apontarem uma lâmina para meu peito.

Então, que possa guardar esses sentimentos, e esquecê-los. E então, quem sabe, eu possa finalmente descansar. 

A maioria das pessoas vive suas vidas sem nenhuma implicação. Passam dias, passam anos, e logo elas são esquecidas. Todas vivem assim, passando pelo mundo como um aceno. Eu não sou diferente. Sinto apenas falta daqueles momentos que podiam ser bons. Coisas simples, já falei disso um milhão de vezes, como tomar um chocolate quente vendo série ou uma cerveja ouvindo música na sacada, sentindo a brisa fria nos dias quentes. Mas ao meu redor a camada de poeira se torna cada dia mais grossa, e eles não percebem que estamos acumulando lixo, como logo jogarão terra sobre nós. 

Fui ao psiquiatra, numa emergência, pois as minhas ideações suicidas estavam muito frequentes. Não sei se vai dar algum resultado, a consulta e os remédios me saíram caros, e meu último episódio eufórico me cumulou de mais dívidas. 

Os problemas se aglutinam, e eu vejo minha vida passando como um aceno. Mas talvez seja bom fazer uma pausa. Parar de receber mensagens e sentir a brisa no meu rosto, sentado na sacada tomado café com um livro de filosofia no colo, ou Dom Quixote. Ainda não faz calor como será no verão, o vento é quase frio. Logo será noite, veio a tarde. Primeiro dia.

Parece que nenhum deles também têm vontade de fazer isso, afinal não é só a poeira, mas a bagunça se acumulando num lugar que poderia ser bom para todos. Acho que ninguém pensa em sentar na sacada para abrir uma cerveja. A poeira tomou conta de tudo.

As coisas refletidas no meu olhar não tem significado. As coisas refletidas nos meus olhos não existem.

terça-feira, 12 de novembro de 2024

O tempo passou

"A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia." (Marina Colasanti)

Eu só queria, para variar, chegar em casa sem estar tão cansado a ponto de não conseguir fazer mais nada. Como no último fim de semana, em que dormi por mais de dezesseis horas em cada dia, porque não conseguia nem me mexer. Eu só queria chegar em casa sem sentir que deixei cada fiapo, cada pequeno fragmento de vida para trás. Que entreguei aos outros o que restou da minha centelha, e que eles sorriem com a minha dor e meu desespero. Talvez se alimentem de meu cansaço. Não é verdade, maybe they just don't give a damn. 

Nem um dia inteiro se passou e já estou exausto. Isso não é normal. Não pode ser normal. Mas todos acham que isso é nada mais do que o normal. Não pode ser...

Eu queria não ter recorrido a isso de novo. Terceiro dia seguindo enchendo a cara de remédios pra dormir. Terceiro dia seguido em que não quero ver nada. Em que aguento calado e sorrio para os da rua e destrato minha própria mãe. Eu inverti as coisas. Agora estou fora de órbita, desconectado, e sinto falta.

Mas do que sinto falta? Das migalhas? Do silêncio quando eu implorava por atenção, por amor recíproco ou, pelo menos, por uma resposta? 

Eu me acostumei com o nada. Mas eu não devia.

Não devia ter deixado o trabalho me sugar tanto, a ponto de tratar os ilustres desconhecidos melhor do que trato minha família. Eu falhei miseravelmente. Não devia ter deixado que as coisas chegassem a esse ponto. Não devia ter deixado ficar tão dependente desses remédios, e nem ter tomado tanto horror do mundo ao meu redor que ele se tornou insuportável sem essas drogas que me apagam. Me apagam pra amanhã acordar de novo, barriga inchada e boca seca, para mais um dia infernal, de mensagens, orçamentos, emergências que surgem como baratas saem de um bueiro. Não devia ter me apaixonado, e não devia ter deixado que me apegasse tanto assim. 

Não devia, mas agora é tarde demais. 

Agora a festa acabou, 

a centelha se apagou, 

o fôlego da juventude se esvaiu, 

a teogonia se silenciou, 

o tempo passou. 

E a complementação, as mentes que desapareceriam, afobando-se para preencher o vazio da mente, a Instrumentalidade que faria todas as cosias voltarem a inexistência, ou melhor, aquele útero primitivo que perdemos muito tempo atrás, atingindo o equilíbrio, simplesmente não aconteceu. Continuamos separados, distantes, ferindo uns aos outros com nossos espinhos.

Esse é o fim. 

De tudo? Não sei. Mas é o meu.

It all comes tumbling down, tumbling down, tumbling down... It all returns to nothing.

O que vejo

Foi preciso que eu me obrigasse, a ficar um pouco mais acordado, pouco mais de três horas. Meu corpo inteiro dói e cada fibra do meu ser quer dormir, apagar. Parece que, além da dependência aos remédios, eu também me apeguei a fuga que é esse sono dos fins de semana. Algo poderia ser dito sobre a desumana exploração do trabalho, mas não quero. É domingo e eu quero descansar. Então só vou falar dessa profunda necessidade que tenho de voltar a dormir, não ser, não existir ao menos por algumas horas, breves momentos de silêncio e escuridão profunda, longe do mundo e das verdades da realidade. 

Os próximos dias, até o 23 desse mês, serão de um esforço tremendo, e meu corpo já reclama não conseguir cumprir essa missão que, no entanto, não é uma escolha. Como disse alguns dias atrás, eu preciso aguentar, mesmo já não aguentando mais. E ninguém liga. Mas não importa.

Encontrei um show especial, Boy Sompob - Boys' Love First Live Concert in Bangkok 2024, com alguns dos atores das minhas séries favoritas cantando as músicas que, nos últimos 10 anos, têm feito parte dos meus dias. E estou emocionado com isso. 

Assim como ontem e hoje me emocionei ao rever alguns filmes de Star Wars e, deixando um pouco de lado aquela visão que tinha quando criança, vejo agora a quantidade de questões envolvendo essas produções, os interesses e, o que acaba por aparecer no final, uma mensagem que não pode se apagada. Não tenho capacidade para explicar a coisa toda em detalhes, embora saiba que possa fazer uma boa introdução a isso, mas como, na última trilogia, tentaram desfazer a chamada "jornada do herói" na construção de um mundo sob os escombros de outro construído com base nesses valores. Não deu certo e, no fim, o que salvou tudo, foi um retorno total a Jornada do Herói que, em última instância, é uma repetição do chamado dos Apóstolos, é uma continuação daquele chamado, modificado e transmutado em outras situações que, em essência, ainda guardam a força daquele chamado, o chamado por excelência. 

Chamado. Parece que, de algum modo, todos o somos, e a resposta para a objeção de que se todos são igualmente chamados é porque o chamado não é especial é porque, em verdade, o aspecto extraordinário desse depende pouco de quem é chamado, mas de quem chama, que é quem guia e que leva quem aceita até o seu objetivo. A quem é chamado é esperado o sim e a abertura ao moldar do mestre. Por isso, alguém que parece ter vindo de "lugar nenhum" pode tornar-se a pessoa mais importante do universo, carregando consigo as gerações daqueles que vieram antes dele. Enfim, devaneios.

O chamado ao amor aqui, no entanto, me parece um chamado falso, sendo que seu fim é a decepção, a derrota e a solidão. O amor é como a busca por poder, que consome e destrói aqueles que o perseguem, tornando-o coisas, não mais homens, mas arremedos, falseabilidades, marionetes de seus desejos mais profundos e pervertidos. O amor é tão ruim quanto a ganância ou a inveja. É um desejo destrutivo.

E por isso venho trabalhando em silêncio.

Ainda tenho lapsos do meu passado, recente e tão vibrante, de quem fazia tudo por amor. Mas agora, busco apenas a seriedade, afinal, não é isso que você também quer? 

Claro que isso significa o erguimento, de uma vez por todas, de uma muralha de cristal entre nós, invisível, porém intransponível. Algo mudou, se quebrou, de modo irreparável. E você sabe disso, só finge não saber. Escolhas e medos. Somos escravos de suas consequências. E eu, em particular, escravo de meus desejos, desse meu amor. 

Por isso mantenho a conversa séria, você não quer contato com nada que não seja sumamente elevado, justamente por ter dificuldade em se aproximar dessas coisas, então culpa os outros por não seguirem sua moral maculada de kantismo. Não percebe que todos somos homens, falhos, fracos, e por isso mesmo é que nos foi dado o perdão. Mas tudo bem, a sua escolha me afastou, e como todos os outros que vieram antes de você, eu respeito isso. 

Preciso parar por aqui. Amanhã começa tudo de novo, e não tenho nenhum amor que me possa consolar. Com reuniões e ideias toscas que eu vou precisar seguir. Vou dormir, de novo, em silêncio, tendo em mente que, isso que faço, esse tipo de condenação autoinfligida é, na realidade, aquela a qual ele sempre me condenou: o silêncio.

É realidade demais, você acha graça. E talvez acha graça de mim também, afinal sempre riu todas às vezes que eu dizia o quanto te amava. A realidade do meu amor é uma piada, eu sei. No entanto, essa realidade brutal e miserável é tudo que eu vejo. Vejo em silêncio, pois me tornei alma silenciosa e descontente.

"Não é de amor que careço.

Sofro apenas
da memória de ter amado. 

O que mais me dói,
porém
é a condenação
de um verbo sem futuro.

Amar."

(Mia Couto)

segunda-feira, 11 de novembro de 2024

Aforismos sobre amor e separação


"Eu nasci para estar morto,
e estar morto significa estar resignadamente só.
Ao menos, se minha carne fosse boa aos vermes,
talvez eles houvessem de me fazer companhia,
mas não, minha alma era podre,
e nada além dela nunca houve de ser minimamente real.
Cresci com a solene rejeição de quem fui,
ainda que o que fosse não passasse de uma completa abstração."

(pevon)

Tem um canto do tempo quaresmal que diz "reconciliai-vos com Deus, em nome de Cristo rogamos que não recebais em vão sua graça, seu perdão." Como certa vez o Prof. Olavo de Carvalho muito bem explicou o que é o perdão, na ordem física do cosmos e na ordem da alma humana, e como os doutores da Igreja vem ensinando durante milênios, o perdão é, sem exagero, a força que permite ao universo, caído desde o pecado original, continuar existindo, continuar sendo mantido na ordem do ser. 

O perdão também nos reaproxima dos outros, mas, diferente de Deus, nós não somos perfeitos em perdoar. O nosso perdão nem sempre mantém o estado de antes da ofensa, senão que perdoamos imperfeitamente. O nosso perdão é falho, sempre permanece uma marca, mancha, cicatriz. Algumas coisas, quando se quebram, não podem ser reparadas, por mais que tentemos.

A separação é sempre uma dor. Eu, de minha parte, também odeio a separação, o afastamento. Odeio essa verdade de quando os caminhos se separam, mesmo sabendo que muitas vezes isso faz parte da verdade mesma da vida, e que as coisas são assim: as pessoas seguem. De minha parte já espero, com dor, que as pessoas me deixem, mais cedo ou mais tarde, e fico como que apático, assistindo, impassível, sem que nada possa fazer contra isso. 

Elas se vão. 

E mesmo as que estão aqui, eu estou distante de cada uma delas. Eu vejo o mundo girar, as pessoas passarem. Vejo como elas se preocupam umas com as outras, mas como não faço parte disso. Parece um sinal fronteiriço. Não me surpreenderia que fosse essa a causa de uma vida tão instável. 

"De cada amor tu herdarás só o cinismo" 

É Cartola, parece que aprendi com esse adágio. Hoje me tornei esse homem cínico, rejeitando tudo que pareça ou se diga ser amor, justamente por não crer e não aguentar, e não esperar mais nada disso. 

Não há amor, ou, se o há, não há para mim. 

Em tempo, sei que preciso tomar cuidado, de novo, para não fazer desse momento de ressignificação de sentimentos uma brecha para que eu simplesmente acabe mudando de "alvo", por assim dizer. Cada vez que sinto meu coração tender aquele lado, aquela simpatia e proximidade que podem se tornar danosas, eu preciso dar um passo atrás, preciso levantar um muro. O ideal seria conseguir bloquear totalmente qualquer possibilidade de sentimento. O ideal seria amadurecer o bastante para não precisar da validação do outro, do carinho do outro. O ideal seria herdar esse cinismo profundo, tão real que me impedisse completa e totalmente de acreditar no que quer fosse do homem, além de sua capacidade para decepcionar e destruir. 

É fim da tarde de sábado, e sempre sou tomado de algo animoso por conta dos dois dias de folga. Mas será que terei disposição para fazer algo? Quando permiti que o desencanto no amor se revertesse em desencanto em mim mesmo? Ou foi por não acreditar em mim que deixei de crer no amor?

Tu tens um medo:
Acabar.
Não vês que acabas todo o dia.
Que morres no amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que te renovas todo o dia.
No amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que és sempre outro.
Que és sempre o mesmo.
Que morrerás por idades imensas.
Até não teres medo de morrer.

E então serás eterno.

(Cecília Meireles)

sábado, 9 de novembro de 2024

Aforismos sobre a possibilidade


"Virá, cada um a seu tempo, 
o vinho
a morte
a poesia."

(Edimilson de Almeida Pereira)

Estamos todos ocupados, cansados, irritados. É uma condição comum. Parece que a humanidade, e digo isso consciente de que humanidade aqui significa eu e alguns que percebem isso, sem a menor pretensão de ter consultado de fato a humanidade inteira. Antes disso, ao que me consta o olhar superficial, a maior parte das pessoas, isto é, a humanidade quase toda, não só não não percebe como vive como se isso fosse normal. 

Mas não é normal, não pode ser normal, essa correria sempre. Esse volume de loucura despejado sobre nossos ombros. E aqui percebo que é melhor abandonar esse plural majestático, que de modéstia nada tem, e falar em nome daquele único que realmente posso falar: eu mesmo. Não é normal que todas as pessoas despejem sobre mim esse volume de expectativa. 

Mas também estou cansado de reclamar disso. Preciso de reclamações novas. Percebe a metalinguagem da reclamação sobre a reclamação? 

Talvez eu devesse reclamar que hoje eu queria continuar na cama, na verdade, era uma necessidade, pura e simples, simpliciter, de descansar meu corpo da loucura que eu sei que vai vir nos próximos dias. E de saber que eu preciso aguentar. Acordei uma hora depois do normal e, ao ver uma mensagem avisando que já teria um desfalque na empresa, acabei tendo que aguentar e vir assim mesmo, com dores no corpo e a mente atordoada por mais uma ciclagem, dessa vez para baixo. 

E eu sei que querem, esperam isso como se fosse o mínimo, que eu aguente. Eu sempre preciso aguentar. As demandas extras, os caprichos, os atendimentos de pessoas idiotas com sorriso falso, as horas depois do horário. Eu preciso aguentar. E entregar com tempo. 

Só tem um porém: 

eu já não aguento mais. 

Tudo, apenas e tão somente o que eu precisava hoje era poder dormir um pouco mais, sem o grande fluxo de informações a que sou submetido diariamente. 

Precisava dormir pra não pensar nas dívidas absurdas que eu fiz esse mês, sendo completamente irresponsável. Precisava dormir pra não lembrar que vou precisar de um celular novo e que não tenho como comprar um agora. Precisava dormir pra não passar sóbrio pela ciclagem e, quem sabe, superar essa fase mais rápido. Por isso tudo, apenas e tão somente o que eu mais precisava hoje, absolutamente tudo que eu precisava, era apenas dormir. 

Mas, como já o disse tantas vezes, até o sonho mais bobo me foi tirado de mim. Todos podem adoecer, descansar, se cansar. Eu preciso aguentar. 

Só tem um porém:

eu não aguento mais. 

“Se pudesse desejar algo para mim, não desejaria riqueza nem poder, mas a paixão da possibilidade; desejaria apenas um olho que, eternamente jovem, ardesse de desejo de ver a possibilidade.” (Kierkegaard)

Dado momento eu perdi todo e qualquer desejo pela possibilidade. Tornei-me apático. Olhos sem brilho algum. É como se, aos vinte, tivesse eu a esperança de um velho. É como se eu não tivesse mais nenhum dia pela frente. 

E acho que eu realmente não queria ter. 

Já se tornou normal que eu deseje o fim, voltar ao nada mesmo sabendo que, aquilo que entrou no ser por um instante infinitesimal que seja, não pode voltar ao nada. Mas eu desejo, voltar a inconsciência. Não sentir, não perceber. Por isso meu apego ao silêncio, em ficar sozinho, em dormir profundamente. 

Algo disso vem ao observar todos os aspectos da minha vida e me ver desanimado com todos eles. Vinha no ônibus passando na frente de alguns cafés, de algumas lojas, e tentando me lembrar quando foi a última vez que saí, quando foi a última vez que me permiti divertir, com ou sem alguém. Mas nunca sobra grana. Eu tô sempre trabalhando pra conseguir dinheiro e tô sempre sem dinheiro. Isso porque eu sou um boçal que se empolga e gasta tudo no primeiro dia, com coisas inúteis. 

Mas é sempre esse ciclo infernal: na depressão não tenho vontade de fazer nada, às vezes gasto buscando algum sentido ou algum prazer, ainda que mínimo. E, quando eufórico, acabo gastando por inconsequência. De todo modo é ruim. 

Então minha vida se resumiu a isso, trabalhar, gastar, e nunca viver. Na verdade, não venho tentando nem sequer sobreviver. O que eu tenho é uma forma de subsistência, muito abaixo da vida humana, é bestial, animalesco. É por isso que, antes de desejar a possibilidade, eu desejo apenas o nada, o fim, o silêncio.

quinta-feira, 7 de novembro de 2024

As flores lá fora

Achei aquela cena curiosamente adorável, ele agitava os pés sentado num banco claramente alto demais para nós. Parecia uma criança, e de fato fiquei reparando, enquanto conversávamos, nas espinhas vermelhas no rosto, misturadas com a barba por fazer, denunciando hormônios da juventude, a voz fina, mas os pelos dos braços mais grossos que os meus, é uma idade engraçada.

Mas não teve nenhuma faísca, apenas achei fofo. Peguei o ônibus e segui o meu caminho. Vi fotos dele e a namorada, o vi mandando mensagens fofas e declarações públicas. Meses atrás eu teria ficado chateado, eu só olhei para cima e vi o céu despejar em chuva. Um dia lindo. 

Uma amiga minha disse que, desde que me conhece, eu reclamo de ser alguém que não tem sonhos ou aspirações, de modo que não fico em busca de algo assim. Realmente, nunca fui alguém que esperava muito da vida, mas, quando atualmente digo que não estou com vontade de fazer nada, eu estou me referindo até as coisas simples que antes eu gostava de fazer, como ouvir música e beber na sacada. Nada mais tem graça. E não é culpa de algum episódio depressivo. Quando estou eufórico as coisas continuam sem graça, apáticas.

Acho que talvez, com a idade, eu venha mesmo perdendo a capacidade de ver algo de bom até nas coisas simples da vida. Se antes eu achava as grandes aspirações uma droga, agora, os pequenos prazeres da vida parecem carregados do mesmo desinteresse que todo o resto. É tudo chato, todos são chatos. Eu sou insuportavelmente chato.

Eu gosto de prestar atenção nos olhares. Eles são importantes pra mim. Me recordei dos olhares dos protagonistas de The On1y One, e como quase tudo entre eles era dito dessa forma. Não sei se todos observam os olhos assim. 

Temos opiniões diferentes sobre olhares. Sobre Pokémons. Eu acho que pelúcia de Pokémon é presente de casal. Canecas também, mas acabaram quebrando minha caneca favorita (isso não é uma analogia poética, realmente quebraram. Mas tem lá sua dose de poesia também).

Eu juro que eu queria te entender, e às vezes, eu acho que entendo e às vezes não, mas de todo modo parece que eu sempre vou ficando mais consciente da distância que há entre nós. É como se fôssemos de mundo diferentes, polos diferentes que, de algum modo, orbitam ao redor um do outro sem jamais se tocar, mas também sem se repelirem completamente. De algum modo nos entendemos, mas me parece ser na superfície. Acho que é porque, naquilo que é mais essencial e profundo, isto é, nos sentimentos, não podemos nos entender. Nós nos amamos, mas eu não consigo mais acreditar no amor como antes e você não vê o amor como eu vejo.

Acabei voltando a esse assunto. Me distraí enquanto ficava sem ideias pra escrever, olhei pras flores lá fora, e meu chá esfriou. Tomei tudo mesmo assim.

"Não haveria segurança? Não se poderia aprender de cor os caminhos da vida? Nenhum guia, nenhum abrigo, mas tudo milagre e um salto no vazio do alto de uma torre?" (Virgínia Woolf)

quarta-feira, 6 de novembro de 2024

Punhado de Areia

Alfred Kubin

Dormi dois dias inteiros, e isso já não é nenhuma novidade por aqui. Acontece que eu simplesmente não consigo pensar ou ter forças para fazer outra coisa. Seja caminhar um pouco ou até ir à missa, tudo é de uma dificuldade extrema. E amanhã preciso ir para aquele inferno de novo, mais uma semana que começa. Não tenho mais vontade de fazer nada. O coração já não ama nem sonha. Isso é coisa de gente que ainda não viu o mundo. 

Uma amiga que está em missão em Uganda me mostrou esses dias a alegria de uma comunidade a receber água pela primeira vez em semanas. Todos com um grande sorriso no rosto. Eles também não têm tempo para sonhar. Ou talvez os sonhos sejam tudo o que eles têm. Talvez sejam idiotas cheios de esperança de que algo ou alguém vai se compadecer deles. Não, isso não vai acontecer. Vão morrer e apodrecer do mesmo modo que viveram: sem que ninguém se importe com nenhum deles. Talvez nem ganhem uma lápide: mármore me soa um luxo extravagante num lugar onde não tem nem água. Talvez terminem como um amontoado de terra com uma cruz feita por mãos cheias de calos usando um graveto seco. Assim terminam os sonhos.

Talvez eu esteja reclamando de barriga cheia, são desgraças diferentes: boa parte do tempo posso me irritar no ar-condicionado, tomando café ou chá e, mesmo que não tenha muito dinheiro, ainda gasto parte dele com coisas para o meu rosto. Mas ainda me sinto como um idiota útil. Trabalhando aos fins de semana, e feriados, sem vontade de viver, com medo do amor e evitando falar com as pessoas para não me tornar emocionalmente dependente delas. Mas, no fundo, desejo ser apenas um punhado de terra, alimentando felizes vermes e bactérias, sem mensagens idiotas e nem paixões a me incomodarem. 

Eles não têm água, mas talvez tenham esperança. Eu padeço dessa sede. 

Talvez seja um pressentimento, mas me parece que isso é o começo do fim. Ainda bem, já não aguento mais. 

Algo de Love in The Big City tem mexido comigo. Especialmente a melancolia de alguns episódios, a forma como os relacionamentos vão terminando, pouco a pouco, como a vida vai perdendo a cor e a paixão se esmaecendo. E eles que tinham tudo pra ficar juntos, acabam se separando sem nem mesmo entender o motivo. É cruel. 

Mas o protagonista, o gigante Nam Yoonsu, está sempre tentando, sempre conhecendo gente nova e, mesmo se decepcionando depois, mesmo acabando sempre sozinho, ele se diferencia de mim por não viver sozinho na melancolia apenas. Ele tenta se livrar dela, como quem abana fumaça na frente do rosto. Muito embora não adiante, parece ainda melhor do que eu, aqui sentando sentindo pena de mim mesmo de um modo patético.  

Eu deveria sair mais, tentar conhecer pessoas, isso me parece tão óbvio, mas, ao mesmo tempo, tão difícil. Vejo algumas pessoas, e seus amigos, sempre sorrindo, e vejo como estou sempre de fora. Me chamaram para uma festa há algumas semanas, já fazia mais de ano que não era chamado pra nada, mas eu achei aquilo insuportável. Os mais jovens eram idiotas, quem tinha minha parecia ter nojo de mim e os mais velhos também. Talvez tenham percebido meu desconforto: ninguém falou comigo depois daquele dia. 

Tentei conhecer pessoas em aplicativos, nada nunca evoluiu. No trabalho eu sou um completo estranho de pessoas que passam o dia inteiro comigo. Eu nunca consigo me encaixar, parece que estou sempre numa página diferente das outras pessoas…  

O personagem da série está preso num ciclo de conhecer, se apaixonar e não conseguir permanecer com a pessoa, e isso o torna cada vez mais melancólico, sempre sozinho, mesmo se divertindo com os amigos e encarando a vida de um jeito mais sério. Eu, por outro lado, parece que nunca consigo nem mesmo conhecer ninguém. E assim parece que vai se aproximando meu fim…  

"Morremos um pouco a cada dia. De fato, a cada dia, uma parte da vida se perde. Então, também, enquanto crescemos, a vida decresce. Perdemos a infância, em seguida, a puerícia, em seguida, a adolescência. Todo o tempo que passou até o dia de ontem está extinto. Este dia, mesmo que estamos vivendo, o dividimos com a morte." (Sêneca)

segunda-feira, 4 de novembro de 2024

Aforismos de Domingo

Domingo, de novo. O pior, o mais desgraçado dia da semana, como dizia o velho Buck. Mas hoje é um dia bonito. 

A chuva cai fina desde a madrugada, sopra uma brisa fresca, agradável. Ainda assim, eu não quero ficar acordado. Percebi também que não quero conversar muito. Desperta alguns sentimentos que estou tentando evitar. Vou só escutar uma música, e dormir. É, é melhor assim. Se tudo dói, se tudo é ocasião de queda, se toda diferença é como um espinho na pele fina, é melhor não sentir nada. 

Domingo de novo. Vou dormir de novo.

X

Meu pai gosta de apostar na loteria. Hoje ele me viu acordado por uns minutos e entrou no meu quarto pra mostrar os números que ele acertou no último sorteio. Admito que eu não estava desperto o bastante pra entender bem o que ele disse, mas não importa, ele não ganhou nada. E todos os meses ele faz isso, e às vezes ainda organiza um bolão na família. Nunca ganhamos nada. Mas, de algum modo ele ainda tem esperança.

Minha mãe também é uma mulher de muita esperança. Eu já estou chegando aos trinta anos e ela já vivia com meu pai há mais de dez anos antes que eu nascesse. Eles nunca tiveram uma casa ou carro do ano, ou melhor, até tiveram, mas venderam a casa num esquema esquisito com a família e o carro para pagar dívidas, e claro que nunca conseguiram nada disso de novo. Mas ela, quase todos os dias, reclama dessa casa apertada em que moramos e diz que "se Deus quiser" um dia ela vai ter a casa que sonha, com bastante espaço. Ela já tem mais de sessenta.

A esperança não é uma coisa bonita. Eu não consigo achar essa ilusão deles boita e nem tampouco inspiradora. Eles são dois miseráveis que acreditam que um dia vão deixar de ser. E eu também sou, com a diferença que sei que nunca vou sair da mediocridade. 

Eu trabalho todos os feriados, e nem posso tirar folgas direito porque o trabalho acumula. E chego tão cansado, irritado mesmo, que só quero dormir, desaparecer. E não há em mim nenhuma fração dessa maldita esperança que meus pais carregam. Se fôssemos pouco mais sensatos todos já teríamos nos suicidado há muito tempo. Pois nada vai melhorar. A maioria das pessoas vive uma vida medíocre e morre, sendo esquecida pouco tempo depois. 

A esperança é uma porcaria. É só um jeito de fazer com a humanidade inteira não colapse em um desespero coletivo. Se as pessoas parassem pra olhar a si mesmas, por alguns instantes que fosse, e entendessem sua realidade, seu lugar no mundo, pulariam na frente do primeiro carro. É o mais sensato a se fazer. Mas todas carregam consigo essa maldita esperança. Que as faz continuar a viver.

X

Passei a manhã toda tendo pequenos relances de ideias para escrever, mas agora que me sentei com esse objetivo todas se esvaíram. A inspiração é, de certo modo, efêmera, exceto pelo fato de que sempre gosto de escrever até mesmo sobre a falta de vontade de escrever. E, bem, ultimamente, falta de vontade é o tema que mais tem me afetado. 

Isso porque não tenho tido mais vontade de fazer nada. Estava fazendo a lista de compras do mês, e me surgiram algumas ideias que poderia usar em casa. Foi apenas um lampejo. Logo desanimei. Afinal, numa casa apertada, com todas as coisas amontoadas, de que adianta investir em beleza? O mesmo vale para o trabalho, e o mesmo para os outros campos da vida, não que tenha muitos. Há dias que não tenho vontade de ir à missa. Há dias que não tenho vontade de assistir minhas séries como antes, mesmo que os episódios de hoje de Love in The Big City tenham me marcado, mas ainda não processei o suficiente para conseguir expressar em palavras. Estudei um pouco, mas não tenho conseguido acompanhar tanto as aulas como gostaria. A minha lista de livros tem um valor absurdo e impraticável, e nem tenho mais onde colocá-los, muito embora, de todas as falhas de minha vida, a busca por uma vida intelectual continue sendo a única intacta.

E isso porque eu não quero isso para agora, quero construir ao longo dos anos, e não desejo aprender tudo imediatamente. A possibilidade de um universo inteiro com o qual posso aprender, o mundo do simbolismo, o abandono dessa realidade pela religiosidade atual e como ela foi substituída pela moral kantiana. A pesquisa histórica do desenvolvimento e prática do concílio Vaticano II e suas atuais correntes... Essas coisas ainda me enchem os olhos e, pouco a pouco, vou compreendendo um pouco mais. 

No entanto, isso não é algo que eu poderia chamar de esperança. Não, essa é a minha tábua de náufrago. Eu sei que não tenho salvação, mas enquanto me agarro aos destroços do navio destruído, essas coisas ainda mexem comigo. 

O mar revolto, a terra perdida em qualquer direção: símbolos do infinito que nos engole e que nos revolve sem que tenhamos possibilidade de resistir. Se olhamos para cima vemos um céu distante e inalcançável, se mergulhamos vemos o abismo do Ōkeanós, escuro, esmagando qualquer um que se atreva a penetrar seus domínios. É um símbolo da vida, percebe?

"A maioria das pessoas não está pronta para a morte, a sua ou a dos outros. Ela as choca, as apavora. É como uma grande surpresa. Diabos, não deveria ser nunca. Levo a morte em meu bolso esquerdo. Às vezes, tiro-a do bolso, e falo com ela: ’oi gata, como vai? Quando virá me buscar? Vou estar pronto’." (Charles Bukowski)

domingo, 3 de novembro de 2024

Dia de Finados

"Esse é o problema de ser escritor, o problema principal - ócio, ócio demais. A gente tem de esperar que a coisa cresça até poder escrever, e enquanto espera fica doido, e enquanto fica doido bebe, e quanto mais bêbado mais doido fica. Não há nada de glorioso na vida de um escritor nem na vida de um bebedor." (Charles Bukowski)

Os últimos dias foram de uma escuridão interminável. Nauseante. Me lembro de ficar deitado, olhando para lugar nenhum, esperando alguma força para ir para casa. Chegando em casa, simplesmente enchia a cara de vinho e um monte de remédio para dormir, e apagava. Ao voltar, no dia seguinte, o ódio crescente ia tomando conta de mim, depois, durante o dia, apenas um grande e brutal vazio, esperando a hora de voltar a mergulhar na escuridão e, no íntimo, esperando que não tornasse a acordar. 

Mas todo o dia o sol nasce de novo, e daqui pra frente sempre mais e mais claro, é uma forma até brutal de acordar. Eu odeio a claridade do sol. Sempre odiei. Porque dias claros significam pessoas alegres, e significam que esperam que eu esteja alegre, e já tem muito tempo que eu não sei o que é uma alegria de verdade. E os dias passam lentamente, uma eterna roda de tortura, mas eu não sei o que querem de mim. Só sei que tem sido cada dia mais sombrio, embora o sol brilhe, cada dia mais obscuro, mais terrível. Sem paz, sem lar, sem pousada.

O coração se tornou exilado, anda por lugar nenhum sem ter onde dormir. O amor passou, a alegria passou, a euforia passou. Mas o vazio ficou. Por que parece que o vazio nunca some, mas só aumenta, só chega a lugares onde antes não estava? Parece que, ao fim de tudo, o vazio só vai consumindo tudo por onde quer que passe. 

Hoje é um dia patético, como minha vida. Trabalhando num feriado porque idiotas que estão na praia decidiram que isso seria uma boa ideia. Nenhum movimento. Pelo menos posso ouvir música em paz por algum tempo, sentir o cheiro de um chá quentinho de mel, gengibre e cúrcuma, e esperar pelo momento de chegar em casa e, finalmente, assistir alguma coisa. Preciso atualizar as séries que não vi nos últimos dias. Queria também rever uma que me tocou bastante, mas eu sei bem que não vou ter disposição pra isso. Saudades de quando eu podia virar a noite assistindo e dormir o dia seguinte todo. Queria rever The Eclipse, a força da atuação de First e Khaotung. Mas sei que não vou dar conta. Nem saí do trabalho ainda e já estou derrotado. Patético, como esse dia.

Dia de Finados, rezando pelas almas do purgatório, muitas das quais, passados alguns anos de sua morte, já não têm que reze por elas. São esquecidas pelos homens, lembradas apenas por Deus. É como se nunca tivessem existido. Se olhamos ao redor vemos um mundo construído por pessoas que já morreram, no entanto, vemos o que fizeram, já não as vemos mais. É como se não existissem, e o mundo fosse feito por um demiurgo, uma entidade meio abstrata, uma presença ao mesmo tempo, perene, mas sem contorno. Não há muita dignidade nisso. Assim como não há dignidade em trabalhar num feriado, enquanto outros festejam à beira de uma piscina. Mas, desde que existe humanidade, as coisas são assim: umas são mais lembradas do que outras. Umas têm mais dignidade do que outras. 

E ainda dizem que estamos no mesmo barco! Patético. Eu trabalhei num maldito feriado. Outros fizeram "ioga de finados." Passamos por essa vida e depois viramos túmulos velhos, sem nome e nem rosto.

O dia de finados terminou sem que eu conseguisse uma companhia, nem para uma foda rápida sequer. E começou a chover baixinho agora. E eu me sinto um túmulo velho, sem nome, simplesmente esquecido dentre tantos outros.

"Estava deprimido, bem, deprimido não, mas estava desanimado com a estrutura toda, o jogo todo, a vida toda." (Charles Bukowski)