terça-feira, 12 de novembro de 2024

"A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia." (Marina Colasanti)

Eu só queria, para variar, chegar em casa sem estar tão cansado a ponto de não conseguir fazer mais nada. Muitas vezes, como no último fim de semana, e dormi por mais de dezesseis horas em cada dia, porque não conseguia nem me mexer. Eu só queria chegar em casa sem sentir que deixei cada fiapo, cada pequeno fragmento de vida para trás. Que entreguei aos outros o que restou da minha centelha, e que eles sorriem com a minha dor e meu desespero. Talvez se alimentem de meu cansaço. Nem um dia inteiro se passou e já estou exausto. Isso não é normal. Não pode ser normal. Mas todos acham que isso é nada mais do que o normal. Não pode ser...

Eu queria não ter recorrido a isso de novo. Terceiro dia seguindo enchendo a cara de remédios pra dormir. Terceiro dia seguido em que não quero ver nada. Em que aguento calado e sorrindo os da rua e destrato minha própria mãe. Eu inverti as coisas, me desconectei. Agora estou fora de órbita, desconectado, e sinto falta.

Mas do que sinto falta? Das migalhas? Do silêncio quando eu implorava por atenção, por amor recíproco ou, pelo menos, por uma resposta? 

Eu me acostumei com o nada. Mas eu não devia.

Não devia ter deixado o trabalho me sugar tanto, a ponto de tratar os ilustres desconhecidos melhor do que trato minha família. Eu falhei miseravelmente. Não devia ter deixado que as coisas chegassem a esse ponto. Não devia ter deixado ficar tão dependente desses remédios, e nem ter tomado tanto horror do mundo ao meu redor que ele se tornou insuportável sem essas drogas que me apagam. Me apagam pra amanhã acordar de novo, barriga inchada e boca seca, para mais um dia infernal, de mensagens, orçamentos, emergências que surgem como baratas saem de um bueiro. Não devia ter me apaixonado, e não devia ter deixado que me apegasse tanto assim. 

Não devia, mas agora é tarde demais. 

Agora a festa acabou, 

a centelha se apagou, 

o fôlego da juventude se esvaiu, 

a teogonia se silenciou, 

o tempo passou. 

E a complementação, as mentes que desapareceriam, afobando-se para preencher o vazio da mente, a Instrumentalidade que faria todas as cosias voltarem a inexistência, ou melhor, aquele útero primitivo que perdemos muito tempo atrás, atingindo o equilíbrio, não aconteceu. 

Esse é o fim. 

De tudo? Não sei. Mas é o meu.

It all comes tumbling down, tumbling down, tumbling down... It all returns to nothing.

O que vejo

Foi preciso que eu me obrigasse, a ficar um pouco mais acordado, pouco mais de três horas. Meu corpo inteiro dói e cada fibra do meu ser quer dormir, apagar. Parece que, além da dependência aos remédios, eu também me apeguei a fuga que é esse sono dos fins de semana. Algo poderia ser dito sobre a desumana exploração do trabalho, mas não quero. É domingo e eu quero descansar. Então só vou falar dessa profunda necessidade que tenho de voltar a dormir, não ser, não existir ao menos por algumas horas, breves momentos de silêncio e escuridão profunda, longe do mundo e das verdades da realidade. 

Os próximos dias, até o 23 desse mês, serão de um esforço tremendo, e meu corpo já reclama não conseguir cumprir essa missão que, no entanto, não é uma escolha. Como disse alguns dias atrás, eu preciso aguentar, mesmo já não aguentando mais. E ninguém liga. Mas não importa.

Encontrei um show especial, Boy Sompob - Boys' Love First Live Concert in Bangkok 2024, com alguns dos atores das minhas séries favoritas cantando as músicas que, nos últimos 10 anos, têm feito parte dos meus dias. E estou emocionado com isso. 

Assim como ontem e hoje me emocionei ao rever alguns filmes de Star Wars e, deixando um pouco de lado aquela visão que tinha quando criança, vejo agora a quantidade de questões envolvendo essas produções, os interesses e, o que acaba por aparecer no final, uma mensagem que não pode se apagada. Não tenho capacidade para explicar a coisa toda em detalhes, embora saiba que possa fazer uma boa introdução a isso, mas como, na última trilogia, tentaram desfazer a chamada "jornada do herói" na construção de um mundo sob os escombros de outro construído com base nesses valores. Não deu certo e, no fim, o que salvou tudo, foi um retorno total a Jornada do Herói que, em última instância, é uma repetição do chamado dos Apóstolos, é uma continuação daquele chamado, modificado e transmutado em outras situações que, em essência, ainda guardam a força daquele chamado, o chamado por excelência. 

Chamado. Parece que, de algum modo, todos o somos, e a resposta para a objeção de que se todos são igualmente chamados é porque o chamado não é especial é porque, em verdade, o aspecto extraordinário desse depende pouco de quem é chamado, mas de quem chama, que é quem guia e que leva quem aceita até o seu objetivo. A quem é chamado é esperado o sim e a abertura ao moldar do mestre. Por isso, alguém que parece ter vindo de "lugar nenhum" pode tornar-se a pessoa mais importante do universo, carregando consigo as gerações daqueles que vieram antes dele. Enfim, devaneios.

O chamado ao amor aqui, no entanto, me parece um chamado falso, sendo que seu fim é a decepção, a derrota e a solidão. O amor é como a busca por poder, que consome e destrói aqueles que o perseguem, tornando-o coisas, não mais homens, mas arremedos, falseabilidades, marionetes de seus desejos mais profundos e pervertidos. O amor é tão ruim quanto a ganância ou a inveja. É um desejo destrutivo.

E por isso venho trabalhando em silêncio.

Ainda tenho lapsos do meu passado, recente e tão vibrante, de quem fazia tudo por amor. Mas agora, busco apenas a seriedade, afinal, não é isso que você também quer? 

Claro que isso significa o erguimento, de uma vez por todas, de uma muralha de cristal entre nós, invisível, porém intransponível. Algo mudou, se quebrou, de modo irreparável. E você sabe disso, só finge não saber. Escolhas e medos. Somos escravos de suas consequências. E eu, em particular, escravo de meus desejos, desse meu amor. 

Por isso mantenho a conversa séria, você não quer contato com nada que não seja sumamente elevado, justamente por ter dificuldade em se aproximar dessas coisas, então culpa os outros por não seguirem sua moral maculada de kantismo. Não percebe que todos somos homens, falhos, fracos, e por isso mesmo é que nos foi dado o perdão. Mas tudo bem, a sua escolha me afastou, e como todos os outros que vieram antes de você, eu respeito isso. 

Preciso parar por aqui. Amanhã começa tudo de novo, e não tenho nenhum amor que me possa consolar. Com reuniões e ideias toscas que eu vou precisar seguir. Vou dormir, de novo, em silêncio, tendo em mente que, isso que faço, esse tipo de condenação autoinfligida é, na realidade, aquela a qual ele sempre me condenou: o silêncio.

É realidade demais, você acha graça. E talvez acha graça de mim também, afinal sempre riu todas às vezes que eu dizia o quanto te amava. A realidade do meu amor é uma piada, eu sei. No entanto, essa realidade brutal e miserável é tudo que eu vejo. Vejo em silêncio, pois me tornei alma silenciosa e descontente.

"Não é de amor que careço.

Sofro apenas
da memória de ter amado. 

O que mais me dói,
porém
é a condenação
de um verbo sem futuro.

Amar."

(Mia Couto)

segunda-feira, 11 de novembro de 2024

Aforismos sobre amor e separação


"Eu nasci para estar morto,
e estar morto significa estar resignadamente só.
Ao menos, se minha carne fosse boa aos vermes,
talvez eles houvessem de me fazer companhia,
mas não, minha alma era podre,
e nada além dela nunca houve de ser minimamente real.
Cresci com a solene rejeição de quem fui,
ainda que o que fosse não passasse de uma completa abstração."

(pevon)

Tem um canto do tempo quaresmal que diz "reconciliai-vos com Deus, em nome de Cristo rogamos que não recebais em vão sua graça, seu perdão." Como certa vez o Prof. Olavo de Carvalho muito bem explicou o que é o perdão, na ordem física do cosmos e na ordem da alma humana, e como os doutores da Igreja vem ensinando durante milênios, o perdão é, sem exagero, a força que permite ao universo, caído desde o pecado original, continuar existindo, continuar sendo mantido na ordem do ser. 

O perdão também nos reaproxima dos outros, mas, diferente de Deus, nós não somos perfeitos em perdoar. O nosso perdão nem sempre mantém o estado de antes da ofensa, senão que perdoamos imperfeitamente. O nosso perdão é falho, sempre permanece uma marca, mancha, cicatriz. Algumas coisas, quando se quebram, não podem ser reparadas, por mais que tentemos.

A separação é sempre uma dor. Eu, de minha parte, também odeio a separação, o afastamento. Odeio essa verdade de quando os caminhos se separam, mesmo sabendo que muitas vezes isso faz parte da verdade mesma da vida, e que as coisas são assim: as pessoas seguem. De minha parte já espero, com dor, que as pessoas me deixem, mais cedo ou mais tarde, e fico como que apático, assistindo, impassível, sem que nada possa fazer contra isso. 

Elas se vão. 

E mesmo as que estão aqui, eu estou distante de cada uma delas. Eu vejo o mundo girar, as pessoas passarem. Vejo como elas se preocupam umas com as outras, mas como não faço parte disso. Parece um sinal fronteiriço. Não me surpreenderia que fosse essa a causa de uma vida tão instável. 

"De cada amor tu herdarás só o cinismo" 

É Cartola, parece que aprendi com esse adágio. Hoje me tornei esse homem cínico, rejeitando tudo que pareça ou se diga ser amor, justamente por não crer e não aguentar, e não esperar mais nada disso. 

Não há amor, ou, se o há, não há para mim. 

Em tempo, sei que preciso tomar cuidado, de novo, para não fazer desse momento de ressignificação de sentimentos uma brecha para que eu simplesmente acabe mudando de "alvo", por assim dizer. Cada vez que sinto meu coração tender aquele lado, aquela simpatia e proximidade que podem se tornar danosas, eu preciso dar um passo atrás, preciso levantar um muro. O ideal seria conseguir bloquear totalmente qualquer possibilidade de sentimento. O ideal seria amadurecer o bastante para não precisar da validação do outro, do carinho do outro. O ideal seria herdar esse cinismo profundo, tão real que me impedisse completa e totalmente de acreditar no que quer fosse do homem, além de sua capacidade para decepcionar e destruir. 

É fim da tarde de sábado, e sempre sou tomado de algo animoso por conta dos dois dias de folga. Mas será que terei disposição para fazer algo? Quando permiti que o desencanto no amor se revertesse em desencanto em mim mesmo? Ou foi por não acreditar em mim que deixei de crer no amor?

Tu tens um medo:
Acabar.
Não vês que acabas todo o dia.
Que morres no amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que te renovas todo o dia.
No amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que és sempre outro.
Que és sempre o mesmo.
Que morrerás por idades imensas.
Até não teres medo de morrer.

E então serás eterno.

(Cecília Meireles)

sábado, 9 de novembro de 2024

Aforismos sobre a possibilidade


"Virá, cada um a seu tempo, 
o vinho
a morte
a poesia."

(Edimilson de Almeida Pereira)

Estamos todos ocupados, cansados, irritados. É uma condição comum. Parece que a humanidade, e digo isso consciente de que humanidade aqui significa eu e alguns que percebem isso, sem a menor pretensão de ter consultado de fato a humanidade inteira. Antes disso, ao que me consta o olhar superficial, a maior parte das pessoas, isto é, a humanidade quase toda, não só não não percebe como vive como se isso fosse normal. 

Mas não é normal, não pode ser normal, essa correria sempre. Esse volume de loucura despejado sobre nossos ombros. E aqui percebo que é melhor abandonar esse plural majestático, que de modéstia nada tem, e falar em nome daquele único que realmente posso falar: eu mesmo. Não é normal que todas as pessoas despejem sobre mim esse volume de expectativa. 

Mas também estou cansado de reclamar disso. Preciso de reclamações novas. Percebe a metalinguagem da reclamação sobre a reclamação? 

Talvez eu devesse reclamar que hoje eu queria continuar na cama, na verdade, era uma necessidade, pura e simples, simpliciter, de descansar meu corpo da loucura que eu sei que vai vir nos próximos dias. E de saber que eu preciso aguentar. Acordei uma hora depois do normal e, ao ver uma mensagem avisando que já teria um desfalque na empresa, acabei tendo que aguentar e vir assim mesmo, com dores no corpo e a mente atordoada por mais uma ciclagem, dessa vez para baixo. 

E eu sei que querem, esperam isso como se fosse o mínimo, que eu aguente. Eu sempre preciso aguentar. As demandas extras, os caprichos, os atendimentos de pessoas idiotas com sorriso falso, as horas depois do horário. Eu preciso aguentar. E entregar com tempo. 

Só tem um porém: 

eu já não aguento mais. 

Tudo, apenas e tão somente o que eu precisava hoje era poder dormir um pouco mais, sem o grande fluxo de informações a que sou submetido diariamente. 

Precisava dormir pra não pensar nas dívidas absurdas que eu fiz esse mês, sendo completamente irresponsável. Precisava dormir pra não lembrar que vou precisar de um celular novo e que não tenho como comprar um agora. Precisava dormir pra não passar sóbrio pela ciclagem e, quem sabe, superar essa fase mais rápido. Por isso tudo, apenas e tão somente o que eu mais precisava hoje, absolutamente tudo que eu precisava, era apenas dormir. 

Mas, como já o disse tantas vezes, até o sonho mais bobo me foi tirado de mim. Todos podem adoecer, descansar, se cansar. Eu preciso aguentar. 

Só tem um porém:

eu não aguento mais. 

“Se pudesse desejar algo para mim, não desejaria riqueza nem poder, mas a paixão da possibilidade; desejaria apenas um olho que, eternamente jovem, ardesse de desejo de ver a possibilidade.” (Kierkegaard)

Dado momento eu perdi todo e qualquer desejo pela possibilidade. Tornei-me apático. Olhos sem brilho algum. É como se, aos vinte, tivesse eu a esperança de um velho. É como se eu não tivesse mais nenhum dia pela frente. 

E acho que eu realmente não queria ter. 

Já se tornou normal que eu deseje o fim, voltar ao nada mesmo sabendo que, aquilo que entrou no ser por um instante infinitesimal que seja, não pode voltar ao nada. Mas eu desejo, voltar a inconsciência. Não sentir, não perceber. Por isso meu apego ao silêncio, em ficar sozinho, em dormir profundamente. 

Algo disso vem ao observar todos os aspectos da minha vida e me ver desanimado com todos eles. Vinha no ônibus passando na frente de alguns cafés, de algumas lojas, e tentando me lembrar quando foi a última vez que saí, quando foi a última vez que me permiti divertir, com ou sem alguém. Mas nunca sobra grana. Eu tô sempre trabalhando pra conseguir dinheiro e tô sempre sem dinheiro. Isso porque eu sou um boçal que se empolga e gasta tudo no primeiro dia, com coisas inúteis. 

Mas é sempre esse ciclo infernal: na depressão não tenho vontade de fazer nada, às vezes gasto buscando algum sentido ou algum prazer, ainda que mínimo. E, quando eufórico, acabo gastando por inconsequência. De todo modo é ruim. 

Então minha vida se resumiu a isso, trabalhar, gastar, e nunca viver. Na verdade, não venho tentando nem sequer sobreviver. O que eu tenho é uma forma de subsistência, muito abaixo da vida humana, é bestial, animalesco. É por isso que, antes de desejar a possibilidade, eu desejo apenas o nada, o fim, o silêncio.

quinta-feira, 7 de novembro de 2024

As flores lá fora

Achei aquela cena curiosamente adorável, ele agitava os pés sentado num banco claramente alto demais para nós. Parecia uma criança, e de fato fiquei reparando, enquanto conversávamos, nas espinhas vermelhas no rosto, misturadas com a barba por fazer, denunciando hormônios da juventude, a voz fina, mas os pelos dos braços mais grossos que os meus, é uma idade engraçada.

Mas não teve nenhuma faísca, apenas achei fofo. Peguei o ônibus e segui o meu caminho. Vi fotos dele e a namorada, o vi mandando mensagens fofas e declarações públicas. Meses atrás eu teria ficado chateado, eu só olhei para cima e vi o céu despejar em chuva. Um dia lindo. 

Uma amiga minha disse que, desde que me conhece, eu reclamo de ser alguém que não tem sonhos ou aspirações, de modo que não fico em busca de algo assim. Realmente, nunca fui alguém que esperava muito da vida, mas, quando atualmente digo que não estou com vontade de fazer nada, eu estou me referindo até as coisas simples que antes eu gostava de fazer, como ouvir música e beber na sacada. Nada mais tem graça. E não é culpa de algum episódio depressivo. Quando estou eufórico as coisas continuam sem graça, apáticas.

Acho que talvez, com a idade, eu venha mesmo perdendo a capacidade de ver algo de bom até nas coisas simples da vida. Se antes eu achava as grandes aspirações uma droga, agora, os pequenos prazeres da vida parecem carregados do mesmo desinteresse que todo o resto. É tudo chato, todos são chatos. Eu sou insuportavelmente chato.

Eu gosto de prestar atenção nos olhares. Eles são importantes pra mim. Me recordei dos olhares dos protagonistas de The On1y One, e como quase tudo entre eles era dito dessa forma. Não sei se todos observam os olhos assim. 

Temos opiniões diferentes sobre olhares. Sobre Pokémons. Eu acho que pelúcia de Pokémon é presente de casal. Canecas também, mas acabaram quebrando minha caneca favorita (isso não é uma analogia poética, realmente quebraram. Mas tem lá sua dose de poesia também).

Eu juro que eu queria te entender, e às vezes, eu acho que entendo e às vezes não, mas de todo modo parece que eu sempre vou ficando mais consciente da distância que há entre nós. É como se fôssemos de mundo diferentes, polos diferentes que, de algum modo, orbitam ao redor um do outro sem jamais se tocar, mas também sem se repelirem completamente. De algum modo nos entendemos, mas me parece ser na superfície. Acho que é porque, naquilo que é mais essencial e profundo, isto é, nos sentimentos, não podemos nos entender. Nós nos amamos, mas eu não consigo mais acreditar no amor como antes e você não vê o amor como eu vejo.

Acabei voltando a esse assunto. Me distraí enquanto ficava sem ideias pra escrever, olhei pras flores lá fora, e meu chá esfriou. Tomei tudo mesmo assim.

"Não haveria segurança? Não se poderia aprender de cor os caminhos da vida? Nenhum guia, nenhum abrigo, mas tudo milagre e um salto no vazio do alto de uma torre?" (Virgínia Woolf)

quarta-feira, 6 de novembro de 2024

Punhado de Areia

Alfred Kubin

Dormi dois dias inteiros, e isso já não é nenhuma novidade por aqui. Acontece que eu simplesmente não consigo pensar ou ter forças para fazer outra coisa. Seja caminhar um pouco ou até ir à missa, tudo é de uma dificuldade extrema. E amanhã preciso ir para aquele inferno de novo, mais uma semana que começa. Não tenho mais vontade de fazer nada. O coração já não ama nem sonha. Isso é coisa de gente que ainda não viu o mundo. 

Uma amiga que está em missão em Uganda me mostrou esses dias a alegria de uma comunidade a receber água pela primeira vez em semanas. Todos com um grande sorriso no rosto. Eles também não têm tempo para sonhar. Ou talvez os sonhos sejam tudo o que eles têm. Talvez sejam idiotas cheios de esperança de que algo ou alguém vai se compadecer deles. Não, isso não vai acontecer. Vão morrer e apodrecer do mesmo modo que viveram: sem que ninguém se importe com nenhum deles. Talvez nem ganhem uma lápide: mármore me soa um luxo extravagante num lugar onde não tem nem água. Talvez terminem como um amontoado de terra com uma cruz feita por mãos cheias de calos usando um graveto seco. Assim terminam os sonhos.

Talvez eu esteja reclamando de barriga cheia, são desgraças diferentes: boa parte do tempo posso me irritar no ar-condicionado, tomando café ou chá e, mesmo que não tenha muito dinheiro, ainda gasto parte dele com coisas para o meu rosto. Mas ainda me sinto como um idiota útil. Trabalhando aos fins de semana, e feriados, sem vontade de viver, com medo do amor e evitando falar com as pessoas para não me tornar emocionalmente dependente delas. Mas, no fundo, desejo ser apenas um punhado de terra, alimentando felizes vermes e bactérias, sem mensagens idiotas e nem paixões a me incomodarem. 

Eles não têm água, mas talvez tenham esperança. Eu padeço dessa sede. 

Talvez seja um pressentimento, mas me parece que isso é o começo do fim. Ainda bem, já não aguento mais. 

Algo de Love in The Big City tem mexido comigo. Especialmente a melancolia de alguns episódios, a forma como os relacionamentos vão terminando, pouco a pouco, como a vida vai perdendo a cor e a paixão se esmaecendo. E eles que tinham tudo pra ficar juntos, acabam se separando sem nem mesmo entender o motivo. É cruel. 

Mas o protagonista, o gigante Nam Yoonsu, está sempre tentando, sempre conhecendo gente nova e, mesmo se decepcionando depois, mesmo acabando sempre sozinho, ele se diferencia de mim por não viver sozinho na melancolia apenas. Ele tenta se livrar dela, como quem abana fumaça na frente do rosto. Muito embora não adiante, parece ainda melhor do que eu, aqui sentando sentindo pena de mim mesmo de um modo patético.  

Eu deveria sair mais, tentar conhecer pessoas, isso me parece tão óbvio, mas, ao mesmo tempo, tão difícil. Vejo algumas pessoas, e seus amigos, sempre sorrindo, e vejo como estou sempre de fora. Me chamaram para uma festa há algumas semanas, já fazia mais de ano que não era chamado pra nada, mas eu achei aquilo insuportável. Os mais jovens eram idiotas, quem tinha minha parecia ter nojo de mim e os mais velhos também. Talvez tenham percebido meu desconforto: ninguém falou comigo depois daquele dia. 

Tentei conhecer pessoas em aplicativos, nada nunca evoluiu. No trabalho eu sou um completo estranho de pessoas que passam o dia inteiro comigo. Eu nunca consigo me encaixar, parece que estou sempre numa página diferente das outras pessoas…  

O personagem da série está preso num ciclo de conhecer, se apaixonar e não conseguir permanecer com a pessoa, e isso o torna cada vez mais melancólico, sempre sozinho, mesmo se divertindo com os amigos e encarando a vida de um jeito mais sério. Eu, por outro lado, parece que nunca consigo nem mesmo conhecer ninguém. E assim parece que vai se aproximando meu fim…  

"Morremos um pouco a cada dia. De fato, a cada dia, uma parte da vida se perde. Então, também, enquanto crescemos, a vida decresce. Perdemos a infância, em seguida, a puerícia, em seguida, a adolescência. Todo o tempo que passou até o dia de ontem está extinto. Este dia, mesmo que estamos vivendo, o dividimos com a morte." (Sêneca)

segunda-feira, 4 de novembro de 2024

Aforismos de Domingo

Domingo, de novo. O pior, o mais desgraçado dia da semana, como dizia o velho Buck. Mas hoje é um dia bonito. 

A chuva cai fina desde a madrugada, sopra uma brisa fresca, agradável. Ainda assim, eu não quero ficar acordado. Percebi também que não quero conversar muito. Desperta alguns sentimentos que estou tentando evitar. Vou só escutar uma música, e dormir. É, é melhor assim. Se tudo dói, se tudo é ocasião de queda, se toda diferença é como um espinho na pele fina, é melhor não sentir nada. 

Domingo de novo. Vou dormir de novo.

X

Meu pai gosta de apostar na loteria. Hoje ele me viu acordado por uns minutos e entrou no meu quarto pra mostrar os números que ele acertou no último sorteio. Admito que eu não estava desperto o bastante pra entender bem o que ele disse, mas não importa, ele não ganhou nada. E todos os meses ele faz isso, e às vezes ainda organiza um bolão na família. Nunca ganhamos nada. Mas, de algum modo ele ainda tem esperança.

Minha mãe também é uma mulher de muita esperança. Eu já estou chegando aos trinta anos e ela já vivia com meu pai há mais de dez anos antes que eu nascesse. Eles nunca tiveram uma casa ou carro do ano, ou melhor, até tiveram, mas venderam a casa num esquema esquisito com a família e o carro para pagar dívidas, e claro que nunca conseguiram nada disso de novo. Mas ela, quase todos os dias, reclama dessa casa apertada em que moramos e diz que "se Deus quiser" um dia ela vai ter a casa que sonha, com bastante espaço. Ela já tem mais de sessenta.

A esperança não é uma coisa bonita. Eu não consigo achar essa ilusão deles boita e nem tampouco inspiradora. Eles são dois miseráveis que acreditam que um dia vão deixar de ser. E eu também sou, com a diferença que sei que nunca vou sair da mediocridade. 

Eu trabalho todos os feriados, e nem posso tirar folgas direito porque o trabalho acumula. E chego tão cansado, irritado mesmo, que só quero dormir, desaparecer. E não há em mim nenhuma fração dessa maldita esperança que meus pais carregam. Se fôssemos pouco mais sensatos todos já teríamos nos suicidado há muito tempo. Pois nada vai melhorar. A maioria das pessoas vive uma vida medíocre e morre, sendo esquecida pouco tempo depois. 

A esperança é uma porcaria. É só um jeito de fazer com a humanidade inteira não colapse em um desespero coletivo. Se as pessoas parassem pra olhar a si mesmas, por alguns instantes que fosse, e entendessem sua realidade, seu lugar no mundo, pulariam na frente do primeiro carro. É o mais sensato a se fazer. Mas todas carregam consigo essa maldita esperança. Que as faz continuar a viver.

X

Passei a manhã toda tendo pequenos relances de ideias para escrever, mas agora que me sentei com esse objetivo todas se esvaíram. A inspiração é, de certo modo, efêmera, exceto pelo fato de que sempre gosto de escrever até mesmo sobre a falta de vontade de escrever. E, bem, ultimamente, falta de vontade é o tema que mais tem me afetado. 

Isso porque não tenho tido mais vontade de fazer nada. Estava fazendo a lista de compras do mês, e me surgiram algumas ideias que poderia usar em casa. Foi apenas um lampejo. Logo desanimei. Afinal, numa casa apertada, com todas as coisas amontoadas, de que adianta investir em beleza? O mesmo vale para o trabalho, e o mesmo para os outros campos da vida, não que tenha muitos. Há dias que não tenho vontade de ir à missa. Há dias que não tenho vontade de assistir minhas séries como antes, mesmo que os episódios de hoje de Love in The Big City tenham me marcado, mas ainda não processei o suficiente para conseguir expressar em palavras. Estudei um pouco, mas não tenho conseguido acompanhar tanto as aulas como gostaria. A minha lista de livros tem um valor absurdo e impraticável, e nem tenho mais onde colocá-los, muito embora, de todas as falhas de minha vida, a busca por uma vida intelectual continue sendo a única intacta.

E isso porque eu não quero isso para agora, quero construir ao longo dos anos, e não desejo aprender tudo imediatamente. A possibilidade de um universo inteiro com o qual posso aprender, o mundo do simbolismo, o abandono dessa realidade pela religiosidade atual e como ela foi substituída pela moral kantiana. A pesquisa histórica do desenvolvimento e prática do concílio Vaticano II e suas atuais correntes... Essas coisas ainda me enchem os olhos e, pouco a pouco, vou compreendendo um pouco mais. 

No entanto, isso não é algo que eu poderia chamar de esperança. Não, essa é a minha tábua de náufrago. Eu sei que não tenho salvação, mas enquanto me agarro aos destroços do navio destruído, essas coisas ainda mexem comigo. 

O mar revolto, a terra perdida em qualquer direção: símbolos do infinito que nos engole e que nos revolve sem que tenhamos possibilidade de resistir. Se olhamos para cima vemos um céu distante e inalcançável, se mergulhamos vemos o abismo do Ōkeanós, escuro, esmagando qualquer um que se atreva a penetrar seus domínios. É um símbolo da vida, percebe?

"A maioria das pessoas não está pronta para a morte, a sua ou a dos outros. Ela as choca, as apavora. É como uma grande surpresa. Diabos, não deveria ser nunca. Levo a morte em meu bolso esquerdo. Às vezes, tiro-a do bolso, e falo com ela: ’oi gata, como vai? Quando virá me buscar? Vou estar pronto’." (Charles Bukowski)

domingo, 3 de novembro de 2024

Dia de Finados

"Esse é o problema de ser escritor, o problema principal - ócio, ócio demais. A gente tem de esperar que a coisa cresça até poder escrever, e enquanto espera fica doido, e enquanto fica doido bebe, e quanto mais bêbado mais doido fica. Não há nada de glorioso na vida de um escritor nem na vida de um bebedor." (Charles Bukowski)

Os últimos dias foram de uma escuridão interminável. Nauseante. Me lembro de ficar deitado, olhando para lugar nenhum, esperando alguma força para ir para casa. Chegando em casa, simplesmente enchia a cara de vinho e um monte de remédio para dormir, e apagava. Ao voltar, no dia seguinte, o ódio crescente ia tomando conta de mim, depois, durante o dia, apenas um grande e brutal vazio, esperando a hora de voltar a mergulhar na escuridão e, no íntimo, esperando que não tornasse a acordar. 

Mas todo o dia o sol nasce de novo, e daqui pra frente sempre mais e mais claro, é uma forma até brutal de acordar. Eu odeio a claridade do sol. Sempre odiei. Porque dias claros significam pessoas alegres, e significam que esperam que eu esteja alegre, e já tem muito tempo que eu não sei o que é uma alegria de verdade. E os dias passam lentamente, uma eterna roda de tortura, mas eu não sei o que querem de mim. Só sei que tem sido cada dia mais sombrio, embora o sol brilhe, cada dia mais obscuro, mais terrível. Sem paz, sem lar, sem pousada.

O coração se tornou exilado, anda por lugar nenhum sem ter onde dormir. O amor passou, a alegria passou, a euforia passou. Mas o vazio ficou. Por que parece que o vazio nunca some, mas só aumenta, só chega a lugares onde antes não estava? Parece que, ao fim de tudo, o vazio só vai consumindo tudo por onde quer que passe. 

Hoje é um dia patético, como minha vida. Trabalhando num feriado porque idiotas que estão na praia decidiram que isso seria uma boa ideia. Nenhum movimento. Pelo menos posso ouvir música em paz por algum tempo, sentir o cheiro de um chá quentinho de mel, gengibre e cúrcuma, e esperar pelo momento de chegar em casa e, finalmente, assistir alguma coisa. Preciso atualizar as séries que não vi nos últimos dias. Queria também rever uma que me tocou bastante, mas eu sei bem que não vou ter disposição pra isso. Saudades de quando eu podia virar a noite assistindo e dormir o dia seguinte todo. Queria rever The Eclipse, a força da atuação de First e Khaotung. Mas sei que não vou dar conta. Nem saí do trabalho ainda e já estou derrotado. Patético, como esse dia.

Dia de Finados, rezando pelas almas do purgatório, muitas das quais, passados alguns anos de sua morte, já não têm que reze por elas. São esquecidas pelos homens, lembradas apenas por Deus. É como se nunca tivessem existido. Se olhamos ao redor vemos um mundo construído por pessoas que já morreram, no entanto, vemos o que fizeram, já não as vemos mais. É como se não existissem, e o mundo fosse feito por um demiurgo, uma entidade meio abstrata, uma presença ao mesmo tempo, perene, mas sem contorno. Não há muita dignidade nisso. Assim como não há dignidade em trabalhar num feriado, enquanto outros festejam à beira de uma piscina. Mas, desde que existe humanidade, as coisas são assim: umas são mais lembradas do que outras. Umas têm mais dignidade do que outras. 

E ainda dizem que estamos no mesmo barco! Patético. Eu trabalhei num maldito feriado. Outros fizeram "ioga de finados." Passamos por essa vida e depois viramos túmulos velhos, sem nome e nem rosto.

O dia de finados terminou sem que eu conseguisse uma companhia, nem para uma foda rápida sequer. E começou a chover baixinho agora. E eu me sinto um túmulo velho, sem nome, simplesmente esquecido dentre tantos outros.

"Estava deprimido, bem, deprimido não, mas estava desanimado com a estrutura toda, o jogo todo, a vida toda." (Charles Bukowski)

sábado, 2 de novembro de 2024

Cão Faminto

Heliana Grudzien

E, de repente, o mundo inteiro se contorce num vórtice de confusão. 

Não sei em que momento aconteceu, se foi durante a ida ao trabalho, de pé no ônibus, ou antes, ainda quando acordei e vi aquele sol horroroso brilhando e me queimando a pele. Por sorte olhei pela janela e vi que algumas nuvens se formavam do lado que dá para o mar na Baía da Babitonga. Mas as nuvens de chuva não eram a única mudança que se anunciava.

Pouco depois de chegar eu ouvi o barulho de um destino cruel me esperando. E precisei suportar o dia inteiro assim. E olhavam para mim como quem olha um cachorro sujo na rua. E eu desejei ser um cachorro sujo na rua, daqueles que vão morrer de fome na próxima esquina sem que ninguém se importe. Eu desejei ser atropelado por um motorista bêbado e largado ali, vísceras espalhadas no asfalto quente e todos virando o olhar para aquela cena repugnante. Eu queria um raio na minha cabeça. E cada coisa que me pediam era como um raio na minha cabeça. Chorei uma ou duas vezes, mas ninguém viu. E amanhã tenho que voltar, mais um dia. 

E mais um dia, 

e mais um dia, 

e mais um dia. 

É um inferno sem fim. Ser um cachorro imundo que pode morrer de fome é uma sorte. Eu me alimento todos os dias para viver uma vida em que cada célula do meu ser se recusa a viver. 

Quem inventou isso?

Agora será assim? Seremos estranhos? Você vai me chamar pelo meu nome, frio e impessoal? O que aconteceu com o "eu te amo?" Ah é, amor é um incômodo entre nós. Tudo seria melhor se não fosse amor. Maldito amor. E provavelmente deve pensar que a culpa é minha, que comecei a ficar frio e distante. Nenhuma palavra nunca, ao fato de que sempre que eu demonstrava, sempre que eu pedia, clamava, implorava e me humilhava por amor, eu só tinha isso, silêncio frio e distante. E isso não é uma vingança. É apenas um coração dolorido e humilhado que não suporta mais. 

Não importa para ninguém, claro, mas eu queria, com todas as minhas forças, que eu não acordasse amanhã. Mas sei que vou acordar, com o maldito sol na minha cara, e não adianta virar, ele vai queimar minhas costas. E, mais um dia, vou colocar os pés no chão e, como o velho Buck, perguntar "Por que, Deus?"

E isso não importa a ninguém. Apenas ao Gabriel. Esse nome frio e distante. Amante que não ama mais. Morto que esqueceram de enterrar. 

Gabriel. 

Frio e distante.

Um coração dolorido e humilhado. Uma mente confusa e um corpo exausto. 

Todo dia eu digo que vai ser diferente. Que eu vou me impor. Que eu vou colocar um ponto final em todas as situações complicadas que têm me incomodado. E todo dia se repete. E todo dia mais rancor se acumula no meu peito, pouco a pouco me transformo num monstro. Mais uma noite em que apelo para os remédios, não quero ver e nem pensar em nada. Todas as noites dessa semana foram de uma escuridão sem fim.

Cada dia, cada instante de cada maldito dia tem sido uma tortura. Cobranças estúpidas (E a entrevista? E aquele orçamento? E esse destalhe completamente inútil, mas que eu quero jogar em você?). Tudo que faço, que antes me enchia de orgulho, agora é repleto do mais prístino ódio, destilado lentamente. E no dia seguinte é a mesma coisa. E amanhã tem mais um dia. 

E mais um. 

E mais um outro.

Mais um maldito dia!

"— A quem estais carregando,
irmãos das almas,
embrulhado nessa rede?
dizei que eu saiba.

— A um defunto de nada,
irmão das almas,
que há muitas horas viaja
à sua morada."

(João Cabral de Melo Neto)

sexta-feira, 1 de novembro de 2024

Em Braços Inexistentes IV

"As causas de sua amargura, remotas e próximas, eram muitas. Tinha raiva de si mesmo por ser jovem e estar à mercê de insaciáveis e tolos impulsos, com raiva também da reviravolta do destino que transfigurava o mundo à sua volta num panorama de miséria e falsidade." (James Joyce)

Venho lutando nesse processo, lento e doloroso, de uma profunda transmutação alquímica na minha alma. Primeiramente venho buscando entender as origens da minha carência, da minha necessidade do outro, do medo constante de ser abandonado. 

E como essa carência, que se revela num confronto brutal com a realidade, em que sucessivas pessoas, amigos e amantes, me deixam sem olhar para atrás, resultaram numa personalidade instável, constantemente buscando compensar esse lócus com o mínimo de afeto que me é oferecido. Então me apego rápido, me afeiçoo, e as amizades acabam se misturando com esses sentimentos confusos, e então eu espero ser correspondido, num sentimento que, chegando a ser obsessivo e doentio, me torna insuportável até para mim mesmo. 

Quantas vezes isso aconteceu? E tenho certeza que todas às vezes o sentimento era real, mas era amor? Sei que eu o amo, mas o que é amor e o que é dependência emocional? 

Há algo aqui que vem da ausência da figura paterna, que eu constantemente tento substituir ainda que não pense nisso conscientemente? Ou medo de encarar a realidade, brutal e inclemente, por ser superprotegido a vida toda e não conseguir agora viver só? Donde vem essa insegurança fundamental que se apresenta como vazio que se expande mais e mais, e que me torna dependente de todos quantos se aproximam de mim?

Essas perguntas têm guiado a minha desconstrução. Eu venho mentalizado isso durante todo o dia, o que requer silêncio e concentração. A compreensão e subsequente desconstrução são as primeiras fases dessa minha transformação. 

Aos poucos vou entendendo que o meu amor por ele e a dependência são coisas diferentes, que mais uma vez coloquei uma pessoa num pedestal quase divino e devotei a ele a minha existência inteira, e ele a negou. Por isso é preciso agora retomar as coisas e as colocar em seu devido lugar. Aliás, lugar esse que não deveria ser ocupado por ninguém.

Não posso pular etapas e nem me precipitar. É preciso entender com clareza que eu tenho si uma carência muito grande, e que fui sim superprotegido, e que agora, em contato com a realidade, o medo se perfez em necessidade do outro. Por isso constantemente busco mãos para segurar ou abraços para me consolar. Uma vez internalizado isso talvez eu possa entender e desenvolver um sentimento que não seja baseado tão somente nessa dependência do outro. 

Preciso caminhar sozinho, provar sozinho que posso viver sem necessitar da constante aceitação de um meio ou grupo. Não preciso me envolver com os jovens da igreja que se deixam levar pela cegueira tosca das novas comunidades, tampouco fazer amizades baseadas na busca constante pelas coisas mais supérfluas. Preciso tomar as rédeas desses impulsos, e assim não permitir que novamente volte a me apegar assim, e a me machucar assim, e a me quebrar assim, como me quebrei das outras vezes. Preciso conseguir, de uma vez por todas, a caminhar com esse vazio fundamental que há em mim, e que parece me assustar desde que me lembro, desde meu primeiro pensamento. 

E preciso lidar ainda com os sentimentos conflitantes que vão surgindo daí, como a revolta de nunca ter uma resposta, como se meu silêncio fosse errado quando o silêncio foi tudo que tive, sempre. E esse silêncio tem sido a causa da minha tristeza, tristeza profunda. 

Em nome da paz, da busca de certa tranquilidade, eu deveria encarar uma situação difícil e desconfortável ou simplesmente fingir demência, como se não fosse comigo? Até que ponto posso fazer isso? É desconfortável, humilhante, me incomoda. Mas eu deveria me submeter a isso, por estar com medo do embate, de precisar enfrentar o outro? 

Talvez seja esse outro aspecto observável da minha personalidade: eu estou sempre em busca de alguém que me dê segurança, e fugindo dos embates, fugindo sempre. Sempre covarde. 

Preciso conseguir enfrentar as situações, me impor, colocar limites. Não ser sempre maleável aos outros. Mas é tão difícil, parece sempre que eu sou manipulado e manipulável pelo outro. Eu sei que, de modo geral, o controle que temos sobre a vida é bastante limitado, mas por que, dentre todas as pessoas, eu sempre pareço perder para o outro, ou ser manipulado, ou literalmente controlado? Por que sempre pareço tão fraco?

"Pela primeira vez na vida eu tive a coragem de olhar pra uma situação e entender que era pouco, muito pouco. E além de pouco, era um desrespeito comigo escolher isso. Saí fora quando entendi que aceitar qualquer coisa em nome do amor não é pra mim, nunca foi."