sábado, 2 de novembro de 2024

Cão Faminto

Heliana Grudzien

E, de repente, o mundo inteiro se contorce num vórtice de confusão. 

Não sei em que momento aconteceu, se foi durante a ida ao trabalho, de pé no ônibus, ou antes, ainda quando acordei e vi aquele sol horroroso brilhando e me queimando a pele. Por sorte olhei pela janela e vi que algumas nuvens se formavam do lado que dá para o mar na Baía da Babitonga. Mas as nuvens de chuva não eram a única mudança que se anunciava.

Pouco depois de chegar eu ouvi o barulho de um destino cruel me esperando. E precisei suportar o dia inteiro assim. E olhavam para mim como quem olha um cachorro sujo na rua. E eu desejei ser um cachorro sujo na rua, daqueles que vão morrer de fome na próxima esquina sem que ninguém se importe. Eu desejei ser atropelado por um motorista bêbado e largado ali, vísceras espalhadas no asfalto quente e todos virando o olhar para aquela cena repugnante. Eu queria um raio na minha cabeça. E cada coisa que me pediam era como um raio na minha cabeça. Chorei uma ou duas vezes, mas ninguém viu. E amanhã tenho que voltar, mais um dia. 

E mais um dia, 

e mais um dia, 

e mais um dia. 

É um inferno sem fim. Ser um cachorro imundo que pode morrer de fome é uma sorte. Eu me alimento todos os dias para viver uma vida em que cada célula do meu ser se recusa a viver. 

Quem inventou isso?

Agora será assim? Seremos estranhos? Você vai me chamar pelo meu nome, frio e impessoal? O que aconteceu com o "eu te amo?" Ah é, amor é um incômodo entre nós. Tudo seria melhor se não fosse amor. Maldito amor. E provavelmente deve pensar que a culpa é minha, que comecei a ficar frio e distante. Nenhuma palavra nunca, ao fato de que sempre que eu demonstrava, sempre que eu pedia, clamava, implorava e me humilhava por amor, eu só tinha isso, silêncio frio e distante. E isso não é uma vingança. É apenas um coração dolorido e humilhado que não suporta mais. 

Não importa para ninguém, claro, mas eu queria, com todas as minhas forças, que eu não acordasse amanhã. Mas sei que vou acordar, com o maldito sol na minha cara, e não adianta virar, ele vai queimar minhas costas. E, mais um dia, vou colocar os pés no chão e, como o velho Buck, perguntar "Por que, Deus?"

E isso não importa a ninguém. Apenas ao Gabriel. Esse nome frio e distante. Amante que não ama mais. Morto que esqueceram de enterrar. 

Gabriel. 

Frio e distante.

Um coração dolorido e humilhado. Uma mente confusa e um corpo exausto. 

Todo dia eu digo que vai ser diferente. Que eu vou me impor. Que eu vou colocar um ponto final em todas as situações complicadas que têm me incomodado. E todo dia se repete. E todo dia mais rancor se acumula no meu peito, pouco a pouco me transformo num monstro. Mais uma noite em que apelo para os remédios, não quero ver e nem pensar em nada. Todas as noites dessa semana foram de uma escuridão sem fim.

Cada dia, cada instante de cada maldito dia tem sido uma tortura. Cobranças estúpidas (E a entrevista? E aquele orçamento? E esse destalhe completamente inútil, mas que eu quero jogar em você?). Tudo que faço, que antes me enchia de orgulho, agora é repleto do mais prístino ódio, destilado lentamente. E no dia seguinte é a mesma coisa. E amanhã tem mais um dia. 

E mais um. 

E mais um outro.

Mais um maldito dia!

"— A quem estais carregando,
irmãos das almas,
embrulhado nessa rede?
dizei que eu saiba.

— A um defunto de nada,
irmão das almas,
que há muitas horas viaja
à sua morada."

(João Cabral de Melo Neto)

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