sexta-feira, 15 de novembro de 2024

Olhe no espelho, ou saia de si

Olhe no espelho, ou saia de si, olhe pra linha do horizonte: veja desfalecer a vontade, seja esmagado pelo eterno devir, perceba que as ideias eternas existem apenas para uns poucos infelizes iluminados. Tudo o mais passa, e não vale nada. E tudo mais causa apenas desespero, apenas o desejo pelo fim, apenas o retorno ao nada. E então você se dá conta da imensa pequenez, de uma finitude estúpida, e de idiotas que buscam sentido no caminhar para o fim, nas misérias, as grandes e as pequenas.

Alguém em algum lugar nesse exato momento luta pela vida, numa cama de hospital, num terreno de guerra (infelizmente distante de alguém que realmente merecia ver o fim vir do céu numa arma projetada com requintes tecnológicos para matar, destruir e aterrorizar). E tudo o mais que o homem faz é para matar, destruir e aterrorizar, ou para esconder isso de si mesmo. 

Alguém luta contra um câncer que já dominou tudo, alguém toma remédios para aliviar a dor, alguém se mexe com dificuldade, alguém está imóvel na cama como um vegetal e se apega ainda a única centelha vital que lhe resta, respirando por aparelhos, tendo a vida passando pela frialdade das cânulas de um motor prateado.

E por quê?

Para quê?

Se nos outros momentos a vida busca por esmagar cada pequena fração de esperança com a força descomunal de cinquenta deuses?

Mas isso também não é verdade.

O mundo, a vida, o destino, o universo, é brutalmente indiferente a cada um de nós. 

E é por isso que não há sentido, e nem sentido no buscar sentido, em porque alguém se debate numa cama de hospital, ou de por que crianças correm deixando para trás os corpos destruídos dos pais sob escombros e barulhos que lhes assombrará por cada maldita noite dos próximos quarenta ou cinquenta anos. E então, são chamados de heróis, sobreviventes. Sobre elas se compõem glosas, epopeias, mas, no fundo, são apenas desgraçados que, talvez, se recusaram a sucumbir. 

E tem eu, desgraçado que não viveu nada disso. Que vive melhor do que muitos desses jamais poderiam sonhar. Mas que nota a desgraça de estar em casa descansando pela primeira vez sabe-se lá desde quanto tempo, e a alergia atacar, a internet não funcionar, a farmácia não entregar o remédio que poderia me fazer ver a vida com um pouco menos de antipatia. Mas eu só vejo um vizinho estúpido usar um cortador de grama no feriado e o meu pai um aspirador de pó comprado na internet (num dia que ela funcionava normalmente) e outro vizinho gato limpando o carro (queria encontrá-lo um dia no aplicativo de pegação, de preferência sem a esposa e com bastante tesão). E eu, idiota, tosco, incapaz de suportar esses pequenos sofrimentos e colocar todos, eu e os refugiados de guerra e os moribundos, no mesmo rebanho de condenados a essa existência maldita.

Encho a cara de remédio e, no momento que termino de engolir, com a água já com gosto metálico, vejo que a internet voltou, e eu poderia voltar a maratonar a minha série, mas agora eu só vou acordar amanhã. Para olhar no espelho, ou na imensidão da linha do horizonte, e ver a vontade esmagada pelo eterno devir de uma existência patética e miserável. Em todos os planos. Aqui na sacada fria, na cobertura de um hotel de luxo, numa praia ou numa maca improvisada de algum hospital de campanha numa zona de guerra, infelizmente longe demais de matar alguém que deveria ficar calado por ter ideias idiotas demais. 

A camada de poeira diminuiu, mas apenas para evitar crises de rinite ou sinusite, ninguém percebeu que a poeira significa que todos já desistimos de viver. E aquela pobre criança, filha de idiotas, nasceu no meio de nós. Coitado, mais um no rebanho de desgraçados.

Veio a tarde e uma noite, segundo dia.

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