sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

Castelos e pântanos

Eu sei que eu deixei você para baixo, que o egoísmo tem falado mais alto do que todos nós. Estamos todos fechados em medos e preocupações, incapazes de olhar para o outro e ver do que precisam. Mesmo que aquele que precisa é aquele que eu amo mais do que tudo. É a mãe que se preocupa com os outros em cada momento do dia, o pai que se esforça ao limite pelos seus, é a luta, constante e infindável, é a terra que querias, tão prometida, é a parte que te cabe deste latifúndio. 

É engraçado, sadicamente falando, como quando eu sou abatido por uma crise depressiva eu costumeiramente retrate-a como a queda, a destruição, de algo grande, que se desfaz em cinzas. É o meu querido adágio "Tudo retorna ao nada". É sempre a imagem escatológica do Requiem que, entoado pelo coro o poderoso Dies Irae conclama a destruição de tudo que um dia fora grande. Mas, se observar de modo um pouco mais objetivo, como pode algo se destruir tantas e tantas vezes? Eu realmente me reergo sempre apenas para cair novamente? 

Não, não é como se eu conseguisse reerguer todo meu edifício interior apenas para que ele seja demolido mais uma vez pelos meus inimigos, não, essa é uma forma errada de encarar as coisas sendo que, na realidade, eu não contemplo a queda de um grande castelo ou fortaleza, mas apenas estou tentando me levantar, com os joelhos fracos e trêmulos, de uma grande pântano onde me encontro, imerso em sujeira e escuridão. 

Acontece que está tudo indo de mal a pior, e eu só finjo que não percebo que as coisas estão tão ruins e, por isso mesmo, tenho a impressão de que realmente não estavam quando elas acabam piorando. Mas é verdade que as coisas vão mal, é verdade que há muito elas começaram a se desfazer, e é verdade que há muito eu venho chafurdando na lama. 

Me vejo então numa madrugada quente, apavorado pela solidão desses espaços infinitos, numa família disfuncional onde tudo parece ficar cada vez pior, onde todos estão cada vez pior, tentando demonstrar que estão bem mas não estão, tá todo mundo mal, eu tô mal, minha mãe tá mal, meu pai tá mal, minha irmã tá mal, e eu não consigo sequer fazer nada para mudar isso, eu só fico observando, como quem olha uma tragédia à distância, enquanto minha própria casa pega fogo e se desfaz em cinzas. 

Não vejo como posso ajudar ninguém. Tudo o que consigo ver é a intransponível barreira de minhas limitações, e isso é tudo! Olho no espelho e o que vejo é o retrato cansado de alguém que já desistiu de si e que só não desistiu também dos outros por medo da dor que isso pode lhes causar. Mas a barba longa e o cabelo desgrenhados são testemunhos que gritam mais alto do que qualquer palavra minha o que essa vida significa para mim. 

Meus pais lutam cada vez mais incessantemente para conseguir pagar as contas, são os guerreiros mais fortes que conheci, maiores do que os grandes heróis da história, mas só conseguem mergulhar cada vez mais em dívidas e dívidas. Minha irmã já é praticamente um caso perdido, que dorme o dia todo e passa a noite acordada, andando empertigada pela casa com a namorada, que ela malocou aqui. Somos todos estranhos. Eu sou o pior de todos, um peso morto, uma fonte inesgotável de oportunidades de fazer os meus pais gastarem ainda mais dinheiro. Desempregado, doente, bipolar, fazendo minha mãe ser tragada pelo furacão das minhas crises, sejam depressivas ou maníacas, enquanto tenta lidar com a outra filha problemática e a própria saúde fragilizada. E em nada disso eu consigo ajudar, senão que eu apenas pioro toda a situação sendo motivo de preocupação e esforço.

E eu só queria, poder levar a minha mãe para outros lugares, para perto do que restou de sua família, das pessoas que ela tanto. Queria tirar ela da cozinha quente que pouco a pouco suga a sua vida, reduzindo-a a uma fina linha de vivacidade que aos poucos se apaga. Queria dar a ela o reino que ela merece, a vida de rainha que a ela eu destinei. O mesmo para o meu pai, que tanto trabalhou, que tanto lutou, e que merece descanso, conforto, merece poder fazer o que ele queira fazer. Viajar por dias para pescar, conhecer a praia, o mato, montar num touro, qualquer coisa. Dar ou, ao menos buscar, um sentido na vida destes. Já que a geração seguinte vê-se completamente sem perspectiva de futuro. Até a minha irmã como queria poder mostra a ela a possibilidade de cosias que ela poderia ser com sucesso. Modelo, maquiadora, esteticista, grande, famosa, linda...

Não vejo como as coisas podem melhorar aqui, ao passo que a ida da família para o sul se tornou uma espécie de sonho em que depositamos a esperança de dias melhores pra todos. Mas sabemos que as coisas não são simples assim: primeiramente, não seria fácil ir assim e, além disso, é bem capaz que a minha irmã seria contra, em sua obstinada jornada egoísta de autodestruição, nos arrastando ainda mais para longe da decência, nos fazendo mergulhar ainda mais fundo na lama. Queria muito recomeçar. Tudo o que começa tem seu final, isso é normal. A dor do fim vem pra purificar, isto é, recomeçar. 

E eu no meio disso tudo acuso a ela? Não. Eu sou muito pior do que ela. Talvez a culpa seja toda minha por ver o que se anunciava não consegui me fazer ser ouvido. As coisas estão assim porque eu não soube o que fazer quando podia e agora é tarde demais. Agora o tudo retornou ao nada. Só o que consigo fazer em meio a tudo isso é, além de fitar o céu de modo quase catatônico, estudar, tentar aprender e apreender algo do mundo, entre o dia de hoje e o fim inevitável de amanhã. Não é como se fosse a esperança de um final feliz, eu sei, mas é o melhor que eu consigo fazer atualmente, e só isso já tem me custado um bocado. 

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