quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

Tesouro

Os últimos dias têm sido intensos. Depois de proposto ao meu pai a compra da casa em que moramos, o que ele negou prontamente pois a casa é horrível e só moramos aqui por falta de condição de coisa melhor, o dono pediu que saíssemos dela em menos de 30 dias, dando largada a uma corrida para encontrar uma casa que caiba todos nós pois, além de muitos, temos muitas coisas. Somos sete pessoas com um complexo de acumulação preocupante.

Além disso tem um outro fator que já há bastante tempo nos preocupa, de algum modo: alguns de nós tem muita vontade de mudar para o Sul do país, na esperança de melhores condições. Eu mesmo tenho a grande esperança de viver num lugar que seja minimamente mais belo, organizado, que seja menos caótico que o mundo horroroso que me cerca.

Eu posso parecer que estou cometendo um erro terrível, me colocando infinitamente acima do mundo, contemplando toda a miséria como se estivesse eu mesmo fora dela. Mas isso não é verdade, o fato é que eu estou bem no meio da lama, eu estou chafurdando na lama. 

Já não aguento mais a feiura que me cerca, não aguento a mesquinhez, não aguento a falta das mais básicas virtudes humanas. Eu preciso de uma lugar onde o homem seja mais homem ou vou me sufocar. Não aguento mais, e minha mãe concorda comigo, que esse mundo em que ajudamos os outros e recebemos a pura ingratidão como pagamento é o que há para nós aqui, sendo a única esperança o mundo novo que há de vir.

Não há um dia sequer que eu não pense na morte, oprimido e atingido por toda a falta de humanidade que me cerca. Eu só quero o belo, só quero poder crescer, só quero ver algo que não seja uma selva de concreto, entre muros, entre poeira, entre choro, entre paredes descascadas e relacionamentos frustrados, esse é o desejo profundo do meu ser... 

E não há um dia sequer também que eu não pense que a beleza, a bondade, a justiça é o que me salvará desse abismo existencial. Quando me apego ao Réquiem do Verdi ou a Sinfonia Patética do Tchaikovsky é porque essas coisas são a ligação entre o que há de belo no mundo e a minha imensa pequenez, é a escada pela qual eu posso alcançar aquele lugar, lá em cima e ocupado por tão poucos, que se fizeram grandes homens, se destacando dessa massa disforme e putrefata que vivo atualmente.

Mahler me traz num só movimento de sua Sinfonia Trágica mais experiências humanas do que meses inteiros dentro de casa, os golpes secos do martelo do destino soam em harmonia com cada um dos golpes que eu disse ter recebido aqui, e isso me eleva, um pouco que seja, e me faz olhar o céu e as estrelas, sabendo que o cheiro horrendo que me nauseia não é tudo no mundo, que há algo melhor em algum lugar. São o meu tesouro, presente concedido pelas mãos generosas de meu anjo, que sabe de todos os meus defeitos e necessidades, e que hoje me carrega em seu colo, sabendo ele que já não posso caminhar sozinho.

Isso, aliado a vários problemas na Igreja no último fim de semana, me deixaram num estado de euforia, quase desespero. Precisamos procurar casas, arrumar as coisas em caixas, que não são poucas, e tudo isso aliado a minha mais absoluta falta de ânimo pra praticamente qualquer coisa. Tenho passado dez, doze horas, em cima da cama, estudando, pensando, ouvindo música, mas incapaz de reagir. Preocupado, chorando. Eu vou mergulhando cada vez mais fundo num oceano de águas escuras, gélidas, que me golpeiam com violência, me roubando o fôlego, me esmagando. Eu não tenho forças para lidar com isso, não dá para lutar, eu sou fraco demais e meus membros já nem sequer obedecem os meus comandos. Isso porque muitas das perspectivas de futuro que eu tenho são bastante pessimistas. É a solidão, os problemas em casa da incompreensão, a falta de dinheiro, as obrigações que precisam ser cumpridas. É o castelo que se desfaz, é o tudo que retorna ao nada... O desejo do belo sendo morto pela feiura...

"Muito do que fazemos na vida - às vezes, tudo - é compensação de alguma tristeza que tivemos na infância ou na adolescência. No meu caso, sei exatamente que tristeza foi essa. Quando, no início da adolescência, comecei a me interessar por literatura, teatro, música clássica, história, filosofia, psicologia, teologia, entendi que tinha descoberto um tesouro infinitamente valioso, o alívio quase imediato da maioria dos padecimentos humanos. Qual não foi a minha surpresa ao perceber que em geral as pessoas não apenas eram desprovidas de qualquer interesse por essas coisas, como tinham até um certo orgulho da sua indolência mental, acreditando piamente que acabariam por vencer todas as dificuldades da vida pela simples repetição dos automatismos rotineiros que lhes davam um sentimento de segurança na mesma medida em que, a longo prazo, garantiam o seu fracasso. 

Muitas dessas pessoas não escondiam o desprezo que sentiam pelas minhas preocupações, que elas diziam estratosféricas, e não raro o desprezo se manifestava como arrogância, agressividade e exclusão ostensiva. Aos poucos fui descobrindo que isso não acontecia só no meu ambiente social, mas era uma praga endêmica, uma constante da vida brasileira. Os melhores, os mais conscientes e mais sensíveis eram sistematicamente boicotados e escorraçados, jogados para o fundo de uma existência obscura e deprimente pela santa aliança da mediocridade com a arrogância, da inépcia com a vaidade, da indolência com o carreirismo."

(Olavo de Carvalho)

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