terça-feira, 12 de janeiro de 2021

Um navio na Sibéria

"Meu coração ainda se atreve a desejar, e minha vontade ainda ousa uma esperança." (Tristão e Isolda)

Um gigantesco barco cruza as águas gélidas da Sibéria, envolto em densa névoa no oceano Ártico, em sua imensa força transcendente. As forças da natureza são assim, não são algo contra as quais lutamos, somente podemos observar a sua fúria impetuosa ou, na melhor das hipóteses, fugir em busca de salvar as nossas vidas miseráveis. 

Aqui é onde o homem se encontra frente a verdade mais crua da realidade: é um imenso muro de gelo que ele deve transpor para sobreviver, ele e sua família. Deve caçar antes da chegada do inverno, estocar alimentos, encontrar modos de se aquecer quando o frio atingir temperaturas abaixo de zero. É preciso pensar em tudo pois, o menor deslize pode significar a fome e o frio por seis meses pelo menos, no meio de uma nevasca tão intensa que nem mesmo os animais mais ferozes ousam sair de suas tocas.

E o navio segue seu percurso solitário, onde tudo o que se houve, desde algumas horas após a sua partida até as várias semanas que já se encontram em alto mar é o silêncio dos céus, entre uma tempestade e outra, e o som constante, alto e reverberante das águas em violentos golpes contra o casco da embarcação.

A visão das ondas do tamanho de prédios de muitos andares são absolutamente aterrorizantes, em dados momentos somos tomados pela certeza de que seremos engolidos pela água e nunca mais revolvidos a superfície. E isso considerando o tamanho da nossa embarcação, capaz de levar dezenas de outros barcos menores, aviões e tanques de guerra que, ao aportarem em terras inimigas significaram uma ajuda a mais nos nossos exércitos. 

Mas o que eu faço aqui, sendo lançando com brutalidade um lado a outro pelo movimento desse rei soberano, ou pelas trombadas dos marinheiros, várias vezes maiores do que eu, que me empurram como quem espanta um cachorro pulguento para longe?

Meu maior azar foi ter vindo parar aqui. Preso num fluxo donde não posso recuar e, sobrevivendo aos testes constantes dos deuses que aqui habitam, talvez chegue são e salvo as terras onde serei usado como soldado de infantaria, para morrer na linha de frente enquanto a elite do exército faz o seu trabalho com homens altamente treinamos, com olhos de águia e corpos de ursos, daqueles que acertam um alvo dezenas de metros distante de si, ou que esmagam um inimigo com um só golpe de mãos limpas. 

Quantas coisas aqui parecem estar ao nosso favor? Antes disso, tudo parece conspirar para a mais completa derrota. Podemos naufragar ao colidirmos com um iceberg escondido na escuridão, como a história ainda tão viva no imaginário de todos. 

Isso porque, parece-nos, esse infindável oceano está contra nós, assim como os inimigos que esperam por nós no continente. Tudo conspira contra aqueles que lutam.. E tudo normalmente dá errado aqueles que lutam. 

E é aqui que dou uma pausa a essa narrativa para passar a outra, distinta mas não completamente destoante. A sensação de acordar e ver que as coisas continuam dando errado. Aquela pessoa que prometeu entregar o projeto a tempo ainda está cada vez mais atrasada. Quando me comprometo a algo as pessoas me cobram sem preocupação alguma acerca da minha capacidade, disponibilidade ou bem estar em conseguir realizar tal ou qual função. Quando os outros se comprometem é apenas superficial, não se preocupam realmente com nada além de si mesmos.

A falta de dinheiro tem sido especialmente dolorosa. Desempregado já há um ano, voltando a depender exclusivamente dos meus pais eu me vejo numa situação severamente degradante, de quem  precisa pedir dinheiro para qualquer coisa, e que precisa ouvir 'não" sem se abalar, já que a situação realmente é das piores. Já perdemos o carro, e as dívidas crescem cada vez mais, ao passo que o poder de compra diminui, ao passo que o consumo permanece o mesmo. O fato é que até mesmo eu, incapaz de realizar grandes cálculos, percebo que algo de muito sério está acontecendo em nossa administração familiar defasada. 

Nem preciso falar, mais ainda, dos problemas familiares. A sensação de completo abatimento que se deu sobre nós, como se tivéssemos encontrado uma zona de conforto que na verdade é apenas uma zona de medo de saber o que mais pode dar errado para nós. Todos diagnosticados com depressão, ansiedade, bipolaridade e graves desvios de caráter, a pressão financeira de apenas uma pessoa mantendo uma casa maior que a da média... Não é uma situação nada agradável. 

"O tempo finge afastar aqueles que depois vai implacavelmente reunir." (Wagner)

E não é diferente de cruzar um oceano violento, quando a qualquer momento uma onda pode nos engolir e destroçar, lançando nossos pequenos corpos para serem esmagados pela pressão do fundo do oceano. Estamos à deriva.

Esse é o mundo em que vivemos, a realidade que preciso encarar. Um oceano que deseja me engolir, um exército inimigo que deseja me matar, frio, ventos de tempestade... Tudo isso numa viagem solitária, onde os homens ao meu redor não parecem se dar conta da situação desesperadora em que nos encontramos. A situação é delicada, complicada, eles dizem, mas não percebem que é nossa vida que está em jogo e que logo mais estaremos sendo servidos como comida para as criaturas da escuridão abissal oceânica ou como corpos largados na frialdade inorgânica da areia da praia inimiga. 

Isso porque nesse barco viagem homens de todos os tipos, e de várias classes originárias mas que, aqui, nada disso importa. Todos teremos o mesmo destino: a morte una, cruda, crudelle. Que podemos fazer mais do que o Rinaldo, além de lascia ch'io pianga mia cruda sorte, e che sospiri la liberta?*

Quando tudo parece dar errado, em dias como hoje, em que todo contato humano foi permeado de dúvidas e decepções, eu prefiro me retirar. Sair do convés e ir para o quarto. Que me importa se num naufrágio eu serei esmagado e desintegrado pela força com que a água vai me lançar sobre as placas de metal quando atingirmos as profundidades abissais? Eu não ligo, mas preciso ficar longe, longe para não me contaminar, longe para não me deixar ficar iguais a eles, morando numa caixa de sardinhas e satisfeitos com isso quando, humanamente falando, a única reação possível em relação a essa casa seria a de destrui-la e reerguer outra, decente, no lugar. O mesmo valendo para os valores daqueles que há muito deixaram de sonhar e se contentam em navegar em água perigosas sem destino algum. 

  "Não há algo mais que só viver? Algo mais que dever, e morte. Porque temos sentimentos, se não podemos vivê-los? Porque desejamos coisas, se não foram feitas para nós?" (Wagner)

~

*Deixe que eu chore pela minha sorte e que suspire pela liberdade.

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