quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

Frente ao Mar

"Vivemos em uma plácida ilha de ignorância em meio a mares negros de infinitude, e não fomos feitos para ir longe." (H.P. Lovecraft)

Me aproximei do cais, depois de sair andando com raiva. Meus pés doeram depois de alguns quarteirões e foi quando percebi que estava usando força demais, parar para prestar atenção nisso me acalmou um pouco, ou melhor, me distraiu da raiva que me subia pelo peito e transbordava em ar quente pelas narinas, como se a qualquer momento fosse explodir num dragão de fúria. 

Andei pela madeira que tanto tempo fora banhada pela umidade salgada da praia, e parei para prestar atenção ao vento que batia no meu rosto com força. Em outros dias eu aproveitaria essa sensação, ela ma acalmaria, mas hoje não! Hoje o que eu sinto é apenas um incômodo, até pelo barulho das ondas se quebrando com violência no muro de pedras. Mas aquela imensidão, que antecipava uma forte tempestade tinha algo de fortemente amedrontador. Os trovões ficavam cada vez mais altos e frequentes, ao passo que a minha respiração se acelerou, a fúria retornando. O céu é de um cinza tão escuro que parece que resolveu desafiar a própria escuridão da noite. Há no ar uma mescla de ira e melancolia, as mesmas coisas que compõem o meu ser nesse momento.

Pensei em tudo que estava dando errado naqueles dias. A mudança forçada, a falta de uma casa decente, o dinheiro escasso, o otimismo estúpido dos meus pais ou a indiferença da minha irmã. Esse era um daqueles dias que eu só sabia odiar, tudo e todos. Como uma criança birrenta que sai batendo as portas por ter sido contrariada eu saí sem dar satisfações, qualquer coisa iria minar ainda mais a minha paciência que, a este ponto, já estava completamente fora de alcance. 

Não queria pensar em nada, nas caixas espalhadas pela casa, cheia de coisas velhas que os meus pais não tinham coragem de se desfazer e nem, tampouco, dar a elas algum uso. Não queria pensar na casa que provavelmente vamos alugar, alta e feita, claramente "planejada" por alguém que não fazia a menor ideia do que estava fazendo, aliás, mais uma vez a imensa capacidade das pessoas de não se importarem com a beleza de algo me irrita com uma profundidade ímpar. Como alguém pode oferecer a outro uma casa dessas para alugar? 

Minha consciência me acusa de um orgulho desmotivado, uma ganância desenfreada, um desejo pelo luxo e pelo conforto excessivo. Por outro lado algo em mim não suporta mais os arranjos da vida, os jeitinhos que são necessários pra chegar ao fim do mês com algum puto no bolso. As instalações elétricas precárias, as roupas reaproveitadas de outras estações... Isso me irrita. A frase "é muito caro" é capaz de despertar em mim ânsias de vandalismo tão violentas que até mesmo os demônios fogem de mim com medo dessa fúria. E as pessoas insistem que viver dessa forma é sacrificar-se, como se fosse algo bom o sofrimento que vem do universo. Saber sofrer é certamente uma virtude, mas o sofrimento não pode ser em si algo bom. E eu claramente não sei sofrer, admito, reconheço a minha total falta de virtude e envergonho aqueles que tanto gostaria de agradar.

Mas a perspectiva de uma vida em que as coisas continuam dando errado de novo e de novo me irrita demais, e eu me transformo nesse mesmo oceano que está agora à minha frente: ameaçador a tal ponto que ninguém se atreveria a navegar aquelas águas, sob a pena de ser engolido e destruído com o peso daquelas águas infindáveis, que se se agitam deixando claro a todos que ninguém deve contrariá-lo, ninguém deve testar a sua fúria.

As semelhanças, no entanto, terminam aí. Ao contrário do oceano a minha fúria não é capaz de destruir nada além de mim mesmo, fosse assim eu posso garantir que não existiriam senão mais do que ruínas desta cidade em que vivo, afundada sob muitos metros de água, para que ninguém torne a voltar aqui e a tratar esse lugar com uma dignidade que ele não merece. E as pessoas continuam vivendo como se isso aqui fosse o paraíso! Não enxergam elas que pouca coisa poderia ser mais parecida com o inferno do que isso, o inferno que se acomodou em si mesmo, que se fechou e que contempla o espelho como quem contempla uma pedra preciosa, não sendo mais do que um pedaço de carvão, um torrão qualquer de terra. 

A morte continua a espreitar-me, murmurando suas setas malignas por entre o som das ondas, com sua voz fria e metálica, distante, ao mesmo tempo que parece estar sendo dita em meus próprios ouvidos, como se a maresia fosse o hálito daquela que busca ceifar as vidas, mas que em dados momentos espera que a própria vítima faça o trabalho em seu lugar. 

E continuo a pensar em todas as coisas que odeio nesse momento, odiando principalmente o meu destino que escolheu-me para viver dificuldades as quais claramente não tenho virtude para suportar, sempre rastejando pelos cantos, murmurando contra a própria sorte, pensando na morte e na felicidade daqueles que têm uma vida com maior dignidade. 

Não temo em mostrar esse meu lado. Não temo em dizer que gostaria de estar gastando os meus dias no alto de algum prédio milionário, gastando numa punica compra na internet mais do que minha família ganha num ano inteiro de trabalho. Essa diferença me causa uma repugnância tão grande, não pelos ricos e poderosos, mas pela minha própria sina que não seria exagero dizer que a retalharia se se aparecesse diante de mim, como retalhei a mim mesmo em tantos momentos, quando já não suportava a integridade de um corpo que apenas existe para sofrer, do qual ainda exigem que suporte com graça e vitalidade, quando sequer consigo me levantar da cama sem gemer ou quando o calor é tanto que transformam a carne numa espécie de gelatina, e ainda querem nos obrigar a ter mais disposição. Eu odeio como romantizam a dificuldade da pobreza, como vivem aceitando resignados essa vida miserável quando um fim, ainda que autoinflingido, seja muito mais digno do que essa mediocridade sem limites. 

E eu sei que eles não conseguem a razão de eu pensar assim, eu sei que deixo muita gente triste ao olhar com desprezo o que conquistaram com tanto pesar, e eu juro que eu não queria ser assim, mas eu não consigo evitar, não consigo pensar de outro modo que não seja grande, belo, não consigo querer nada que não me agrade o senso estético, que não me dê conforto e status, e por isso eu não consigo imaginar vivendo feliz a vida resignada e abnegada que, por exemplo, a minha mãe vive.

Ela não consegue me entender, e tem sempre nos lábios um discurso de que algum dia as coisas serão melhores. Mas eu não consigo parar de pensar que, em sua já avançada idade as coisas nunca melhoraram, então por qual razão eu deveria crer nisso? A mim parece-me que está é só uma mentira que ela repete para si mesma há tanto tempo que passou a acreditar, não sendo mais possível enxergar a realidade tão dura que temos de enfrentar, seja no convívio uns com os outros, seja na nossa própria forma de encarar o ser. 

É olhando para este mundo, essa realidade das coisas, que eu desejo o fim, o fim desse mundo como o conhecemos, o fim das diferenças, dos muros que nos separaram uns dos outros, o fim da dor, ainda que isso signifique ter de destruir tudo e todos que conhecemos para renascermos novamente como àquele fruto do útero primitivo que perdemos há muito tempo atrás. É por isso que eu desejo que a mente das pessoas se desfaçam, quem retornemos a inexistência, ou melhor, que retornemos ao um, que esse um seja a fera que gritará Eu no coração do mundo, sem dor e sem a infelicidade que é viver no meio de tantas feras que gritam e se matam nesse mundo.

Tudo isso eu vejo, me lembro e imagino, às margens desse oceano de escuridão, que não me traz paz e nem aquela tranquilidade, mas que me amedronta, que desperta em mim a mesma fúria selvagem de suas águas, que me atrai com sua ânsia destrutiva, com sua magnitude de quem não quer ser contido, quer apenas expandir-se ilimitadamente, sem as prisões de sua própria consciência. 

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