sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

Dies Irae

 "DIES IRAE

Amanheci em cólera. Não, não, o mundo não me agrada. A maioria das pessoas estão mortas e não sabem, ou estão vivas com charlatanismo. E o amor, em vez de dar, exige. E quem gosta de nós quer que sejamos alguma coisa de que eles precisam. Mentir dá remorso. E não mentir é um dom que o mundo não merece. (...) E morre-se, sem ao menos uma explicação. E o pior – vive-se, sem ao menos uma explicação." (Clarice Lispector)

Absolutamente indisposto a qualquer interação social hoje. Na verdade já desde ontem a noite se abateu sobre mim um pesado fardo, uma constatação que pude sentir quase como uma grande peso de ferro lançado sobre as minhas costas. Fui dormir tomado por uma mescla de desespero e um profundo desencanto. Não, o mundo não me agrada. 

Me sinto sozinho ao ver a miséria que me cerca, pessoas que já perderam há tanto tempo a razão para viver e eu, que tantas vezes chego a me questionar sobre minha própria razão, sendo que vivo apenas dando prosseguimento aquele que parece ser meu único talento, ou tendência, nessa vida: a busca pela bíos theoretikós, ainda que de forma tão simiesca quando comparado com meu mestre ou, ainda mesmo, com seus alunos mais proficientes. Não consigo ler tantos livros quanto eles, não entendo o panorama geral, senão que minha mente é um amálgama de fatos atomísticos que muito dificilmente formam um conjunto, deixando-me a única conclusão possível de que estou perdido em meio a este mundo de loucos.

Mas algo ainda me diferencia dos demais: eu tenho ciência da loucura que me cerca, enquanto aqueles que vivem ao eu redor apenas acham que esse é o estado natural das coisas, não se dando conta de que vivem de modo artificial, se contentando com o pouco que o mundo lhes dá para que não perceba o que de fato há por detrás dos divertimentos banais que os homens tanto apreciam.

Por trás de cada alegria gratuita há uma troca, é aquela lei da troca equivalente em que nada pode ser obtido sem algum tipo de sacrifício, então enquanto o homem ganha uma alegria efêmera, ele dá em troca a sua capacidade de ver e pensar como homem, sacrificando sua própria humanidade, em troca de receber sensações de prazer, na bebida, no sexo, e de fugir de toda e qualquer dor. Elas vivem uma mentira, pois não é uma vida de verdade, mas um simulacro, criado e entregue a elas como se se fosse a verdadeira vida. 

Alguns, como tantas vezes eu fiz, buscam o seu refúgio no amor. Mas hoje o amor parece exigir mais do que dá. Aliás, o amor hoje se assemelha muito com um grande buraco negro, sugando para si e destruído em seu interior todos aqueles que se atrevem a se aproximar. O amor tornou-se um engodo, uma armadilha para nós que nos sentimos tão sozinhos em meio a loucura desse mundo que faríamos qualquer coisa para mudar essa realidade. 

Vejo tantas pessoas querendo algo que não se pode obter, por mera cegueira. Eu não posso oferecer alegria, não posso oferecer verdadeira companhia quando tudo o que sou é uma casa vazia, uma boneca de pano, um grande abismo coberto por um véu de aparência humana. Quem ousar olhar muito para dentro de mim, se o conseguir, verá nada mais do que o abismo olhando de volta, prestes a devorar. 

E é exatamente aí que encontramos a morte!

Aliás, não é tão fácil assim. Vive-se em meio a tantas e tantas perguntas, qual a razão de existir o ser e não, antes, o nada? Qual a justificativa para a existência? Existe, é possível conhecê-la, alcançar e transmitir a Verdade? Muito embora soe demasiado abstrato pensar desse modo eu sou confrontado com essas perguntas a todo momento, nas mais diversas situações concretas, desde uma briga com minha irmã até o contar de mortos da pandemia. 

E isso não seria um problema, aliás buscar as respostas já é em si um honroso modo de se viver, mas a grande maioria sequer se deu conta dessas perguntas, e vivem querendo suprimir, de modo absolutamente esmagador, aqueles que querem traçar esse caminho. Por isso a vida de alguém como eu tem sido tão marcada pela solidão. Solidão de quem ainda não encontrou, sequer, a companhia capaz de preencher um pouco esse grande vazio e, a pior de todas, a solidão de quem vive sem conhecer quem ame e quem odeie as mesmas coisas, senão que estou rodeado de pessoas que amam o que mais odeio, a saber: o autoengano e a ignorância, e que odeiam aquilo que amo: a busca pela verdade. 

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