domingo, 10 de janeiro de 2021

Morangos Silvestres

"Na solidão, onde todos se veem limitados aos seus próprios recursos, o indivíduo enxerga o que tem em si mesmo." (Schopenhauer)

Eu não sei como começar a descrever o que sinto, isso porque não entendi o que se passou comigo desde que recebi uma notícia dura. Meses atrás eu entraria em choque, provavelmente choraria e me cortaria na esperança de aliviar um pouco o súbito desespero que me subiria a garganta como aquela ânsia análoga a ânsia de um cardíaco. Mas isso não aconteceu. Consegui me manter firme, com os olhos duros e sem estremecer, sejam os joelhos, a voz ou o coração. 

Foi com uma frialdade que me é estranha que meus olhos passaram por sobre aquelas mensagens, ao passo que minha imaginação me brindava com imagens ricas em detalhes de como as coisas chegaram a esse ponto. 

Por uma grave ironia do destino eu estava assistindo um filme antigo, Morangos Silvestres, de Ingmar Bergman e, tal qual o protagonista, me vi revisitando lugares do passado, acontecimentos e pessoas que me fizeram ser o que sou e como sou. Isak Borg tornou-se frio e egoísta, na visão de pessoas próximas, mesmo que conseguisse disfarçar isso com o seu lado caridoso como médico. Me vi mais ou menos na mesma posição, alguém sempre a postos a ajudar o outro mas, de algum modo, sem deixar de ser nisso mesmo um grande egoísta que durante todo o tempo só pensa em si mesmo. 

Isso porque estou, o tempo todo, pensando em mim, na minha própria condição solitária, notando o quanto me encontro num oceano de autopiedade por viver em meio a miséria espiritual, por viver sem conhecer o amor, sem ao menos experimentar verdadeira companhia, no sentido bíblico do termo. 

Me surpreendi com minha própria frieza. Sim, eu não sabia que podia agir dessa forma. Assim como os morangos foram para ele um portal ao passado aquelas palavras tornaram para mim inevitável lembrar daquela voz, daquele sorriso e daquele corpo que, neste exato momento, pode estar sendo usado como matéria básica para a formação de outro ser nas entranhas rubras de uma carne que aos braços dele se entregou, que pode gerar uma nova criatura vinda de uma força fecunda latente daquela brônzea e plásmica substância. A mesma que eu tantas vezes desejei com mais força com que desejo o ar que eu respiro.

Da potência ao ato, é assim que pode se suceder e, ao mesmo passo, eu estava ontem mesmo a desejar a nulidade do não ser. E assim vai sendo construída a narrativa do que se passou, e de como eu passei, e ele seguiu, e aqui chegamos, de algum modo. 

Não poderia deixar de pensar como isso me coloca, uma vez mais e com uma brutalidade sem precedentes, ante a verdade do meu eu, ante a verdade de quem sou e do que eu signifiquei e ainda significo naquela vida. Vida que tanto me maltratou e que eu tanto lutei para que me amasse, vida que me fez pensar tantas vezes como o poeta, que não passo de um monstro que sofre desde a epigênese da infância as más influências cósmicas e carmicas e que contempla somente ao lado da solidão o enterrar, hoje mais do que nunca em definitivo, da quimera que foi o amor que por ele eu criei e alimentei. Ele não me poupou, ou pensou na dor que poderia causar em mim, sabendo tão bem o quanto já chorei e sofri em nossa história.

Também não consigo deixar de pensar nisso como uma condenação, uma paga devida ao meu pecado,  pecado que não me lembro de ter cometido. Meu pecado que consiste em ter amado de forma errada, quando não deveria amar, quando deveria me contentar com a solidão? Uma condenação aplicada pessoalmente pelo meu próprio algoz que, com chicote em mãos faz abrir a minha carne mas, diferente daquela carne, a qual ele devorou avidamente, esta não é para seu deleite, senão que ele apenas se diverte com o meu sangue derramado, o meu rosto desfigurado.

Mas a face que agora mostro ao mundo não é mais a do monstro destruído pelo seu próprio amado, não, mas uma máscara vazia, fria. É com o olhar distante que olho o mundo como quem olha para insetos passando. É assim que eu aparento encarar o mundo pois é assim que, no meu íntimo, eu desejo encarar a vida, com a mesma frialdade inorgânica com que a terra devora os corpos putrefatos até deixar apenas os cabelos nas páginas amareladas dos livros que ninguém quer ler. 

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