domingo, 31 de janeiro de 2021

Um observador


Sentado na varanda, numa cadeira de balanço com um livro no colo, os olhos ardem da leitura que já se prolonga por algumas horas. Deixo o livro fechado com cuidado sob as pernas e fecho os olhos, mentalizando alguns compassos de um dos movimentos sinfônicos de que gosto muito*. 

Os violinos iniciam um lamento que se prolonga, numa dialética com um clarinete solitário e um fagote perdido em melindrosas memórias e, como ondas, as cordas vêm e vão, fazendo com que eu me sinta ofegante, sendo engolido por aquelas notas, revolvido pelas águas impetuosas de um passado que eu tento esquecer, um presente que me têm sido dolorido e um futuro incerto, amedrontador em seu mistério.

O homem que contempla a música em sua memória sente o peso de seu destino, o seu ser que sangra em constatações que ele não gostaria de fazer mas que as faz porque pior do que a verdade dolorida é aquela que, mesmo sendo escondida por camadas e camadas de mentiras, ainda grita sua presença nos recantos mais obscuros do seu coração. 

E é com um pesar que ele se lembra da sua condição: atormentado pela sua condição de observador consciente, perseguido pelos seus desejos e prisioneiro de um destino cruel, que lhe impôs pesadas correntes, as quais ele carrega por onde quer que vá. Como observador ele é obrigado a perceber uma série de coisas que os outros não percebem, como sua mediocridade disfarçada de resignada abnegação, ou de sua ojeriza pintada em belos tons de amizade ou ainda, e mais óbvio que tudo, o desejo real travestido de amor imposto, isto é, a negação do próprio ser. 

Não é com outra expressão senão a de profunda consternação que eu observo o mundo ao meu redor, em especial os que me cercam, mas não me colocando acima deles, como bem pode parecer tantas e tantas vezes, mas justamente por estar no mesmo plano porém distante, é que consigo ver o que muitos não enxergam, ou fingem que não capazes de fazê-lo.

Não é incomum que o homem se feche em suas próprias mentiras, e ainda mais comum é que diga mentiras ao outro afim de impedir seu avanço, afim de impedir que o outro tenha acesso aquele lugar reservado, aquele ponto inacessível dentro de cada um de nós, mas a quem não mostramos a mais ninguém. Não tenho a presunção, tampouco, de dizer que vejo a isto, muito pelo contrário, tudo o que vejo são as próprias mentiras, muitas das quais eu mesmo repito. 

Temos o costume de mentir uma irônica verdade, mas o destino também tem sua parcela de culpa ao nos fazer crer na mentira. Ele nos infecta com um veneno a que ele chama de esperança, e nos faz crer, nos faz alimentar cada vez mais essa esperança que passa a habitar o íntimo de nós, apenas para que ela irrompa algum tempo depois como uma violenta hemorragia, deixando-nos completamente destruídos, a mercê da morte.

E como ele se diverte com isso! Não raramente é possível ouvir as risadas do demônio quando percebe que nós entramos em desespero por causa da esperança que inoculou em nosso coração. Não raro ele se diverte com as nossas tentativas vãs de nadar contra a forte correnteza que ele com prazer sopra contra nós. Em nada podemos ter a chance de vencê-lo e ele, bom, há de sempre garantir que tudo se saia errado ao pobre homem, que não é mais do que uma marionete em suas hábeis mãos, capazes de plasmar as mais terríveis opções aos homens, apenas para seu deleite. 

Ele também ri das minhas atitudes, dos escritos patéticos e de vaga interpretação, do niilismo ao qual ele me prendeu, do pessimismo que permeia a cada uma das minhas palavras e ações. Sequer consigo responder quando alguém me pergunta se estou bem: não sei se minto diante da perspectiva de que ninguém se interessaria pela minha concepção cosmológica negativista da coisa ou se digo a verdade e mato a pessoa de tédio. Me pergunto ainda se a indagação é feita a mim com o intuito de saber a verdade ou de cumprir uma formalidade tosca mas, sabendo a verdade que atitude podemos tomar contra ela? E, sendo uma formalidade comum não posso exigir que se abstenham dela quanto a mim...

"Apenas quando estou profundamente melancólico é que tenho a sensação de que sou eu mesmo." (Franz Kafka)

~

*Sinfonia No. 6 em Bm, Op. 74 "Pathétique", IV. Finale - Adagio Lamentoso de Piotr. L. Tchaikovsky

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