terça-feira, 5 de janeiro de 2021

Profecia

“Na extrema ponta do Ocidente há um vasto oceano, que no Livro de Deus é chamado o Oceano Quente e Lamacento. As correntes que nele deságuam vêm de um país inabitado cuja vastidão ninguém pode circunscrever. Ninguém mora nesse país, exceto estrangeiros que ali desembarcam inesperadamente. Perpétuas trevas reinam nesse lugar. Aqueles que para lá emigram recebem somente um raio de luz a cada vez que o sol se põe. O solo é um deserto de sal. A cada vez que um povo lá se instala e tenta cultivá-lo, ele o rejeita, o expulsa, e então vêm outro povo ocupar o seu lugar. Alguém começa uma plantação lá? Ela é desperdiçada. Ergue-se uma casa? Vem abaixo. Entre aqueles povos há disputas constantes, ou melhor, batalha mortal. Qualquer grupo que seja mais forte toma as propriedades e os bens dos outros e os força a emigrar. Então ele tenta se estabelecer na região, mas por sua vez colhe somente prejuízo e dano. É assim que eles se comportam. Eles nunca vão parar com isso… É um lugar de devastação, repleto de guerras, disputas, tumultos. Lá a alegria e a beleza só existem quando emprestadas de algum lugar distante.” (Avicena)

Esse é um trecho de uma profecia do pensador árabe que teve uma enorme influência sobre muitos dos pensadores que eu mais admiro. É dele que meu professor, Olavo de Carvalho, tirou parte da inspiração pela investigação que culminou na Teoria dos Quatro Discursos de Aristóteles, pensador que ele entendeu com maestria, chegando a influenciar também a Santo Tomás de Aquino. Mas não é por isso que eu resolvi iniciar a minha reflexão.

Ao passar os olhos sobre estas linhas, num artigo de jornal do meu professor publicado há mais de dez anos, eu vislumbrava, com uma claridade brutal a mentalidade do mundo em que vivo. Já naquela época o Olavo se usou dela para se referir ao Brasil, mas eu me refiro a uma coisa ainda mais limitada, não o país como um todo, mas as pessoas que me cercam. 

Da mesma forma que, olhando ao meu redor, a quantidade de miséria humana é indescritível e, mesmo se me empenhasse a escrever dezenas de páginas, o máximo que conseguiria seria provocar ânsia de vômito ao leitor, ainda que a descrição fosse imprecisa pois, somente com palavras, eu não consigo dizer como é a podridão do lixo humano que me cerca por todos os lados, ao qual sou obrigado a tentar sobreviver, aos trancos e barrancos, sem me deixar afogar pela podridão do meio. 

Sinto como se tivesse sido largado aqui, naufragado de algum modo, de uma viagem cujo destino era alguma terra mais civilizada. Uma das pessoas mais próximas a mim tem orgulho em dizer, de peito arfado, que detesta estudar, atestado desse modo que seu único objetivo na vida é não entender nada e beber cachaça, é isso. Essa é toda a realização humana dessa criatura.

É o mesmo que olhar para um deserto em busca de verde vegetação. Tudo o que há é o solo infértil e árido, um calor sufocante e os raios que maltratam. A sensação da solidão em meio ao deserto é exatamente a mesma também. Não há diálogo, os únicos momentos em que sinto uma brisa leve sob o rosto é quando consigo algum contato distante com mentes de outros tempos que me fazem companhia, quando algum personagem parece entender o meu sofrimento... É ai, e somente aí, que parece-me que a solidão não é completa e absoluta.

Outras tentam, de algum modo, entender alguma coisa, indo pelo caminho mais fácil, que é bradado ferozmente por toda uma sociedade que, tendo como único objetivo na vida também não entender nada, sentem especial tesão em fingir que entendem alguma coisa. Esses usam daquela antiga técnica da crítica sistemática de tudo quanto existe, colocando-se num pedestal infinitamente superior ao da humanidade e julgando-a como má, declarando sua sentença: a destruição total. Destruição essa que dará lugar a quê? Ninguém sabe, mas sabe-se que é necessário destruir. 

Não é necessário ser um gênio, ou talvez o seja, para perceber que isso tornou-se apenas um fetiche destruidor. Apontando erros históricos e injustiças sociais na busca por um mundo melhor eles metem os pés pelas mãos e levam junto todos os valores que construíram a nossa civilização, culpando esses mesmos valores pela destruição dos valores humanos que perdemos há muito tempo atrás (?). Parece-me imensamente absurdo e soa como uma estupidez que deveria envergonhar quem o diz a ponto de o sujeito nunca mais dizer coisa alguma, mas aparentemente o único envergonhado aqui sou eu. 

As trevas são absolutas, e o volume desse discurso absurdo é tão grande que elas me cegam com violenta profusão de ideias que precisam ser ignoradas e destruídas a todo momento. Não parecem sequer coitar observar o mundo sem a lente de suas teses macaqueadas da internet que em tudo vêm o fantasma da opressão e da perseguição. O mundo, para eles, era um lugar de amor e paz que os homens brancos resolveram destruir com sua brutal mentalidade burguesa, machista e supremacista. Tudo se se explica por meio da luta de classes ou raças, ou sexos. Tudo se explica para justificar a existência dos Apóstolos da Destruição Universal.

E então embarco numa jornada sem rumo, para fugir desse continente negro, banhado de ignorância por todos os lados, em busca daquela terra prometida onde encontrarei, segundo a promessa do santo aquinate, a amizade que ama e que rejeita as mesmas coisas. É a luz e alegria emprestadas de outro lugar, algo que não posso encontrar nesse mundo de trevas e chão de sal. Busco luz, busco o calor, não abrasador mas, antes disso, o calor acolhedor de braços que tenham os mesmos anseios que eu, e que detestem a mentira e a injustiça como eu detesto. Embarco numa jornada em busca de fugir desse continente horrendo, donde a vida não pode prosperar, onde a ignorância reina absoluta e conta com a fidelidade de seu séquito, homens e mulheres decrépitos que há tanto desistiram de uma vida digna que hoje em dia sequer conseguem imaginar que tal coisa exista. 

Ficam felizes por suas pequenas realizações, se comprazem em conversas tolas em que reclamam do clima e da política, sem fazer a mínima ideia do que acontece com esse mesmo mundo que é governado por pessoas com ideias tão superiores que eles sequer sabem os nomes de quem as pensou. Ficam felizes em abrir uma lata de cerveja e assistir ao futebol de domingo, não que haja algum problema nisso, mas há um problema em pensar que isso é o mais alto que um homem pode chegar. 

Eu não quero viver assim, cego demais para perceber que vivo na miséria, e nem ofuscado pelo brilho das mentiras que tanto tentam me fazer engolir descaradamente. Eu quero a verdade e, mesmo estando distante dela de algum modo, é ela que se faz próxima o suficiente para me puxar pela mão e me fazer desejar sair desse grande lodaçal, dessa névoa que entorpece a mente e os sentidos, para fugir dessa terrível escuridão. 

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