segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

Esquinas e Correntes

"Caminhante, detém-te a contemplar estes restos mortais; E, se sentires a mágoa a transbordar, detém teus ais." (Eça de Queiroz)

Não adianta, palavras não podem simplesmente trazer de volta aquele que foi tragado pelo vórtice da escuridão, aquele que apenas diverge dos mortos por não habitar o féretro de madeira barata mas, estando ele mesmo já há muito mais morto do que estes mortos, não sente mais o calor doce do sol na praia, ou as carícias do mar nas pernas, ou a brisa leve na face. Já não sente nada senão o vazio apático e silencioso do limbo que é viver sem viver em si, morrer sem poder morrer. 

Que sou eu mais do que carne e ossos? Um consumo desregrado de remédios para dormir e produtos industrializados que mascaram de certa forma, ressaltando na realidade, a podridão que restou do meu ser. Eu fui, pouco a pouco me desfazendo em meio a uma confusão dos diabos, refém dos meus próprios sentimentos que me colocaram em correntes inquebráveis, maltratado e lançado ao chão, sendo obrigado a me rastejar, escondendo na lama as minhas lágrimas enquanto outros caminham por cima de mim, enquanto pisam sem esconder o seu prazer, e enquanto me usam para nada mais além de os impulsionar para cima, indo cada vez mais para baixo. 

Já não vejo mais a beleza das cores, do perfume das flores, e tenho até dificuldade de apreciar as belas melodias, senão que me servem de companhia para abafar os gritos do meu abismo interior, e os rugidos da fera que no seu subterrâneo me devora. 

Em cada esquino por onde passo, vejo pessoas, algumas andando contentes, outras séries, consternadas, todas fechadas em si mesmo, e em algumas eu sinto angústia análoga a esta que também sinto, que é uma revolta furiosa contra o ser, é uma agonia por não saber, é um medo, um desespero desmedido diante da existência, de uma existência que transcende tantas e tantas vezes a minha capacidade de entender e controlar o que quer que seja que eu prefiro desistir, e em cada esquina eu vou abandonando um pouco de tudo isso. 

As imagens que eu pinto aqui por meio de palavras são quase sempre as mesmas, eu bem sei disso e, felizmente, não tenho poder de forçar ninguém a ler ou se compadecer de minha humilhante posição frente a existência. É sempre a fera, a escuridão, o vazio, o silêncio, o abismo. Mas, se eu aprendi que a única coisa dita válida de fato é aquela que parte diretamente da experiência isso é de fato tudo o que tenho a dizer. É o que consigo captar desse mundo, a eterna tensão entre a beleza externa e o horror interno, entre o mundo que brilha sob o sol e a escuridão que nem a lua pode iluminar, são as luzes que me deixaram e as trevas que me envolveram quando eu abandonei a luz para me tornar um monstro. 

O que aconteceu, aconteceu, uma vez fomos felizes mas hoje somos apenas tristeza. Eu gostaria de poder voltar no tempo, mas não ao meu próprio passado, mas para aquele tempo sem divisão, àquele útero primitivo que perdemos há muito tempo atrás. Eu gostaria de esquecer o passado, o meu, os tantos erros repetidos até a exaustão. Queria começar, mesmo achando que já estou velho demais para isso, e que os outros já não toleram recomeços, que já deveria estar bem encaminhado. Mas o fracasso é tudo o conheço, e por isso as imagens que pinto sempre refletem isso, o mundo que se despedaça e se desfaz em cinzas, o tudo que retorna ao nada. 

E esse é o meu retrato mais fiel, é o melhor que posso fazer, o meu adagio lamentoso, meu réquiem, a prece de um homem contrito que geme sob o peso dos próprios pecados e desejos tal qual réu que se apresenta diante do juiz onipotente em toda sua miséria exposta como ferida aberta pelas lanças e espadas de um destino zombeteiro, de uma luxúria arrasadora. É o último compasso dessa longa e triste sinfonia, que lentamente vai diminuindo, calando o coral e os sopros, após uma apoteose tremenda, num último suspiros dos violinos que, lenta e melodicamente, vão se extinguindo na imensidão do horizonte.  

"Em cada esquina cai um pouco a tua vida; Em pouco tempo não serás mais o que és..." (Cartola)

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