domingo, 3 de janeiro de 2021

Meu próprio coração

Uma das muitas questões que me assolam o espírito desde meu primeiro pensamento é: qual o problema comigo? Onde está essa imperfeição fundamental, esse dado da realidade corrompido por algo que eu fiz que me torna tão repulsivo a todos? Mesmo das pessoas mais próximas, é como se sempre houvesse uma barreira entre nós, e não me refiro a uma barreira natural, não, mas uma barreira proposital, um muro erguido para impedir a minha passagem. 

É como se as pessoas, ao se aproximarem de mim, fossem atraídas por algo, um odor agradável, algo de útil que eu simbolizar para elas talvez? E então elas se aproxima, mas, quando enxergam quem eu sou de verdade, elas fogem, se escondem, e me olham como quem olhou para um abismo e viu, no fim daquela imensa escuridão, os olhos do próprio demônio. E então elas fogem de mim, aterrorizadas, isso quando não retornam empunhando tochas e lanças nas mãos, determinadas a me matar. 

E eu, monstro repugnante, que farei, que patrono invocarei quando somente os anjos estão seguros? Criatura de carne e desejos condenada a vagar sem rumo pela terra, sem companheiro pois sou o último da minha espécie, todos os outros ao meu redor são outros, distantes demais, diferentes demais, não querem que me aproxime deles.

Isso porque eu nunca consigo ser bom o bastante. Talvez eu seja bom o suficiente apenas para fazer aquilo que ninguém mais quer fazer, para prestar favores, para tapar buracos, mas eu não sou bom o suficiente para ser o grande amor da vida de ninguém. Esse é o meu limite, a minha imperfeição fundamental: eu não criado para ser amado, eu sou um espécime que nasceu errado, alguém sem par no mundo que, no fim do dia, não tem onde reclinar a cabeça, pois há sempre um limite entre os outros e eu. 

Eles não entendem. Ninguém entende. Parece que só eu sou capaz de enxergar essa gigantesca muralha que me separa de todos. Eu me sinto paranoico, como se estivesse enlouquecendo à vista de todos, principalmente quando todos me dizem que isso não é verdade, que me querem por perto sem reservas, quando eu já consigo tocar o escudo que elas mesmas ergueram no momento mesmo em que me dizem essas palavras. 

Já vislumbro, porém, o dia que não mais terei vontade de quebrar essa barreira. Já vejo chegar a hora que serei eu a fugir dos outros, que serei eu a erguer mais e mais barreiras para que suas lanças e tochas não cheguem perto de mim, para que ninguém possa ferir o meu coração por minha própria culpa de chegar perto sem conhecer a verdade por trás do coração do outro. Talvez por isso seja mais fácil buscar um refúgio no único lugar que me restou: em meu próprio exílio, meu próprio coração. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário