quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

O Torso Arcaico de Apolo

Como uma pequena explosão ele aparece, um ímpeto fulminante que nasce do âmago do ser e cresce, transcende-se a si mesmo e abarca o mundo ao seu redor, insuflando nas veias do pobre homem os desejos mais ardis, aquele instinto mais primitivo, que urge de dentro, como o rugido gutural de uma fera adormecida, um monstro ansioso por devorar sua vítima. Começar por enganar as pobres almas que se iludem de que seu ardente coração quer dar-se sem cessar e que precisa demonstrar sua ternura, mas logo revela-se algo ainda mais macabro do que tudo isso. 

É assim que me sinto quando a languidez luxuriosa me consome, é assim quando as chamas do meu ventre se consomem numa fogueira lúgubre que, em seu movimento bruxuleante hipnotiza a quem possa olhar para aquele espetáculo do grande deus Apolo, que se ergue de dentro das chamas, brilhando com mais clareza que a luz do meio dia. Sua música parece acalmar o sentido, mas isso num plano superficial da alma, no íntimo ela produz um desejo incessante, um vício, ela nos conduz ao completo destemperamento, a entrega total e sem reservas ao anseios da carne, donde cada fibra vibra de prazer. 

Não sabemos como era a cabeça, que falta, de pupilas amadurecidas. Porém o torso arde ainda como um candelabro e tem, só que meio apagada, a luz do olhar, que salta e brilha. 

Se não fosse assim, a curva rara do peito não deslumbraria, nem achar caminho poderia um sorriso e baixar da anca suave ao centro onde o sexo se alteara.

Não fosse assim, seria essa estátua uma mera pedra, um desfigurado mármore, e nem já resplandecera mais como pele de fera.

Seus limites não transporia desmedida como uma estrela; pois ali ponto não há que não te mire. Força é mudares de vida. 

“Archaïscher Torso Apollos” de Rainer Maria Rilke (Tradução de Manuel Bandeira)

E assim, tendo em mente esse corpo apolíneo que das chamas surge, a mente eclode num oceano impetuoso de desejo e sedução. O corpo, o meu corpo, já não responde a outros estímulos senão aqueles que surgem da necessidade mais baixa do homem. O membro em riste, o suor escorrendo pelo corpo, desenhando-se nas linhas e curvas mais indecentes, a respiração ofegante, ainda que na solidão de um sonho que se dá ainda durante a vigília. É como um demônio que, possuindo o homem faz dele seu escravo, injetando em meu sangue o seu veneno, que pouco a pouco consome o corpo, penetrando a cada fibra reduzindo a carne e os ossos em cinzas. E o homem não descansa enquanto não se sacia, mas sua saciedade é algo impossível, sendo que se dará apenas naquele último dia, lacrimoso aquele dia, em que ressurgiremos das cinzas a que fomos reduzidos. 

O homem, o grande homem, que se ocupa das discussões nobilíssimas do mundo das ideias, que trata os seus pares por meio de haikais literários, esse homem é reduzido ao menino, o que não pensa em nada além do fluxo incessante de hormônios que percorrem o seu corpo, mergulhando seu hipotálamo num oceano de testosterona, um menino que não sossega enquanto não dá seu último urro de prazer, jorrando sua virilidade na massa plasmática primordial da vida, cedendo as pernas fracas pelo êxtase orgástico e gemidos ofegantes de prazer, um prazer simples, efêmero, que traz consigo toda sorte de arrependimentos, ao passo que o grande Apolo apenas se deleita, já que seu prazer não finda, senão que se alimenta de nossa pequena porção de alegria, logo substituindo o torso ardente, brilhante de suor e porra por uma máscara cinza de abatimento, abnegação e vergonha. 

Daí o desejo pela carne do homem, de ser possuído, deflorado, de se ver sujo de suor e porra naquele ambiente enevoado, após as demonstrações mais bestiais de prazer num sexo onde não há limites exceto a própria vontade, ilimitada, incessante, maligna... É o advento das feras que tomaram forma humana. 

Força é mudares de vida. 

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