terça-feira, 19 de julho de 2016

A História de Uma Rosa

Cícero disse que "Não há nada mais gratificante do que o afeto correspondido, nada mais perfeito do que a reciprocidade de gostos e a troca de atenções" e bem, pelo pouco que eu conheço da vida, me arrisco em dizer que ele está coberto de razão. Passamos pelo mundo então em busca dessa reciprocidade, em busca de alguém em que possamos tocar à alma e o coração, bem como alguém que toque nossa alma e nosso coração. 

Começo então essa postagem de início de noite de terça a refletir sobre alguns dos afetos da alma e do coração. Ao som da obra que exprime com maestria a alma de quem a compôs: a fabulosa Nona Sinfonia de Beethoven. Dispensa maiores comentários, claro, mas com certeza as falas de hoje serão dosadas de acordo com os andamentos dessa que é provavelmente a maior de todas as obras musicais de todos os tempos. Nas palavras do último anjo de NGE, "A música é a mais alta realização da cultura humana." Concordo. Pois bem, passemos aos afetos.

Quando penso em sentimentos, eu quase sempre imagino uma roseira a crescer num jardim, ao lado de uma pequena casa porém confortável casa de madeira num bosque. Rodeada então de plantas belas e com as mais variadas tonalidades de verde, a roseira cresce tímida em meios as grandiosas arvores que se erguem ao redor da residência e se perde em meio as pequeninas e coloridas flores que cobrem o chão das clareiras em tons de um amarelo vivo, um branco delicado e tantos outros tons que transmitem calma e alegria ao sentidos. A roseira então sentindo-se deslocada em meio a tantas belas criaturas se rodeia de espinhos, para evitar que qualquer um se aproxime dela, temendo que lhe arranquem por pensar que é apenas um arbusto grosseiro que ali cresceu sem ser plantada. De fato, não pertence aquele lugar, mas fora ali deixada pelo vento. 

As outras plantinhas então, não se aproximam da pequena roseira, pois temem que seus espinhos machuquem suas próprias flores, tão delicadas e tão importantes para a beleza natural do lugar, que enchia os olhos dos moradores que ali viviam. A roseira então se destaca em meio as outras plantas à medida que vai crescendo, e seus espinhos se multiplicando, mas a distância com as demais plantas lhe entristece e ela sente que não faz parte do jardim, mesmo estando ali, contra sua vontade. Ela então observa as tantas cores que a rodeiam. Flores rosas, roxas, amarelas, brancas, de todas as cores, e tudo que ela tem são suas folhas e espinhos que em nada chamam a atenção, visto que de verde o bosque está completo. 

A roseira decide então reunir aquilo que ela tem de mais profundo em si. Ela junta a saudade da terra onde estava sua família de rosas. E ao se recordar do lugar onde estavam antes plantados, um roseiral, ela se recorda que também tem algo a oferecer àquele jardim. Reunindo então todas as suas forças e vontades, em seu galho mais alto surge um pequeno botão. As outras plantas se perguntam se aquela arvorezinha espinhenta seria capaz de dar algo além de espinhos e folhas ásperas. E qual não é sua surpresa ao ver que num belo dia de sol, onde os pássaros cantam alegremente a roseira desponta com o desabrochar da mais bela de todas as flores: A Rosa. Mesmo com seu caule espinhento e suas folhas ásperas de medo pelo jardim desconhecido, a Rosa reuniu os afetos mais profundos de sua alma, os sentimentos de querer fazer parte da família daquele belo jardim, e deu a ele o seu melhor. Uma flor como nenhuma outra havia sido plantada ali. Com suas pétalas macias e delicadas, de um vermelho vivo que se destacava em meio as outras flores mesmo à distância e que exalava um doce perfume, que preenchia o coração dos moradores que por ali passavam, depois de um dia cansativo de trabalho, se renovando de energia somente em vislumbrar a beleza daquela Rosa que surgira ali.

As outras plantas que antes evitavam a roseira e temiam lançar-se próximas de seus espinhos agora cresciam vistosamente ao seu redor num composição colorida única, fazendo daquele jardim o mais belo de todos os jardins, com flores de todas as cores e tamanhos e uma única Rosa Vermelha, da cor do sangue mais carmesim, reinando gloriosa em seu meio. Até mesmo as árvores, grandes e imponentes, que só permitiam a passagem da luz do sol necessária ao crescimento saudável de todo o jardim, reverenciavam à beleza da Rosa e deram as suas próprias folhas um verde ainda mais vivo, animados pela nova moradora. Aquela pequena rosinha, que antes se sentia triste, sozinha e deslocada, agora estava rodeada de amigos que a amavam.

Um certo dia então, qual foi a surpresa de todos no jardim, um jovem que por ali passava se deteve em frente ao jardim, e com os olhos marejados de lágrimas, adentrou o mesmo, pisoteando muitas das pequenas flores em direção a roseira, e sem se preocupar com os espinhos, arrancou a Rosa de lá. Tão logo o jovem desapareceu no horizonte com a mais bela das flores que um dia nascera naquele jardim, o mesmo foi tomado por uma súbita tristeza. Todas as flores, em sinal de companheirismo a jovem rosa, deixaram que suas pétalas caíssem ao chão e até as arvores foram tomadas de um verde triste e frio. A roseira, sentia muito a perda de sua única rosa, e sentia ainda mais ao ver que até suas companheiras haviam perdido suas belas cores. E novamente se recordou do antigo roseiral onde vivia, e reunindo novamente todos os afetos que tinha dentro de si, ela fez brotar inúmeros botões. Caiu a noite, e todas as plantas dormiam tristemente, enquanto a roseira apenas se concentrava em trazer seus sentimentos à tona. Pensava ela então na alegria que sentiu ao ser aceita pelas outras flores e em como eram belos em seus dias de glória. Na manhã seguinte, a surpresa do jardim foi a maior que podiam imaginar. A roseira havia feito desabrochar em si, não apenas uma como antes, mas 7 das mais belas Rosas que o mundo já vira. E novamente o jardim foi tomado pela cor daquele vermelho vivo, que mais uma vez dera vida ao jardim que animados pela ressurreição da Rosa, agora sim poderia ser chamado de o mais belo de todos os jardins, com flores de todas as cores, e uma roseira que crescia vigorosa e que, mesmo que lhe arrancassem todas as rosas, no outro dia fazia-lhe brotar outras tantas no lugar, a fim de nunca mais permitir que a tristeza chegasse ali, ao seu pequeno mundo. 

Creio que me alonguei demais em devaneios ao imaginar a história da Rosa, mas como disse, a música de Beethoven tem esse poder.  E assim como a Rosa é a flor mais bela do mundo, a Nona, sendo a música mais bela do mundo também tem o poder de dar vida ao jardim dos nossos corações. 

Digo isso pois mais cedo estava a nutrir uma confusão tremenda dentro de mim. Inquieto, não consegui ler, e divagando em pensamento até mesmo caí em sonhos desagradáveis quando por alguns minutos me encostei à cama. Então, como num insight, me veio o refrão da Canção da Alegria à mente, e então decidi escrever enquanto me deleitava com a obra do grande mestre alemão. 

Estou agora absorto em meus próprios sentimentos. Como se eu mesmo, sentado debaixo dos Cedros, fitasse aquele belo jardim, onde nossa Rosa cresce gloriosa, levando cor e amor a todos que a contemplam. Como que embriagado de vinho, me vem a mente o rosto de várias pessoas queridas, muitas das quais tem feito meu coração sangrar, queiram ou não, outras que apenas me trazem alegria, e outras ainda que tem em mim o mesmo efeito que a Rosa produziu naquele jardim: faz desabrochar em mim o que há de melhor em meu interior. Penso especialmente naquele que, mesmo sabendo não sentir nada por mim, ainda me arranca o mais doce sorriso. Ah... o amor... 

Retornando então à frase com a qual iniciei essa breve reflexão de hoje, eu penso que, enquanto a rosa, triste por estar ali contra sua vontade, só conseguia exteriorizar sentimentos ruins, e por isso afastou as outras com seus espinhos. Mas quando decidiu trazer de seu interior aquilo que tinha de melhor, o sentimento foi reciproco, pois as outras flores também deram o seu melhor. Assim penso ser a vida. Requer de nós o nosso melhor, pra que possamos cobrar do outro o melhor que ele possa nos dar. Claro, nem sempre teremos mais flores em troca de nossas cores, e podemos acabar por receber espinhos em seu lugar, mas quem garante que aqueles espinhos, não são o melhor que aquela pessoa possa nos dar naquele momento? 

Penso que as vezes exigimos demais do outro, quando na verdade deveríamos exigir mais de nós mesmos. Façamos como a Rosa e, mesmo quando nos machucarem, e arrancarem de nós o que temos de melhor, deixemos brotar no lugar outras tantas flores no lugar, e assim, preencher todos os vazios com o doce perfume e a bela cor de nossos afetos, e assim, quem sabe um dia, receber em troca também a melhor flor que alguém possa nos dar. 

Sobre o jovem que arrancara a Rosa com os olhos marejados, este se viu tendo de tomar uma difícil decisão, em arrancar daquele jardim a sua flor mais bela e a de desistir de seu grande amor. Com uma certa dor no coração ele então resolveu arrancar dalí a Rosa, para num gesto de ternura, ofertá-la a seu amado num pedido de perdão. O jovem trouxe sofrimento ao jardim, mas não o fez de todo pelo mal, pois afinal, assim como a Rosa, também era o que ele poderia fazer para expressar o seu amor.

Com isso pretendo dizer que precisamos pensar bem nos dois lados de uma determinada situação. As vezes a reciprocidade por si mesma não é possível, mas insistimos nela e nos decepcionamos. Se o jardim soubesse porém, do que passava o rapaz, teriam ofertado de bom grado também suas flores, a fim de que ele pudesse oferecer  não apenas uma rosa, mas um ramalhete das mais belas flores que ele podia encontrar. 

Pensemos então em nossos afetos. Que possamos dar ao jardim que nos cerca sempre as mais belas rosas, e mesmo quando a esperança parecer perdida, devolver ao próximo o amor e a alegria, nas pétalas de nossos afetos mais interiores. E assim, possamos ser as flores que ornam os jardim dos Campos Elíseos, onde nunca murcharemos ou morreremos, mas somente passaremos a eternidade a cantar à alegria da vida junto com toda a criação.

Por fim, toda vez que escuto a Nona de Beethoven, fico a pensar no fato de que ele já estava praticamente surdo quando ela foi executada pela primeira vez. E ainda que não o estivesse completamente debilitado da audição, certamente a mesma estava muito comprometida. Ainda assim ele foi capaz de terminar essa que é a maior de todas as obras. Não precisava mais do sentido da audição. Já passara dessa fase do espirito, ele agora compunha com a alma. Assim como alguns dizem que Santa Catarina de Sena escrevia muitas coisas sendo que mal sabia escrever, em completo extase. Assim também é com as almas que deixam vir a tona aquilo que tem de mais profundo em si mesmas, desabrocham em afetos que se marcam na história. Posso dizer com certeza que mesmo em meioa s dificuldades envolvidas na mesma, Beethoven amava a música, e esse era o afeto mais profundo de sua alma, marcado agora nas páginas da história, e assim também acontece com quem ama sem impor limites, a quem ama apaixonadamente. Quem ama assim, é torturado na roda, como nos dizem os Carmina Burana, mas também imprimi no coração de homens de todos os séculos o seu amor. E isso, é o verdadeiro poder desse amor. 

Cantemos então à alegria com Beethoven:

Oh amigos, mudemos de tom!
Entoemos algo mais prazeroso
E mais alegre!

Alegre, formosa centelha divina,
Filha do Elíseo,
Ébrios de fogo entramos
Em teu santuário celeste!
Tua magia volta a unir 
O que o costume rigorosamente dividiu. 
Todos os homens se irmanam 
Ali onde teu doce vôo se detém. 

Quem já conseguiu o maior tesouro
De ser o amigo de um amigo,
Quem já conquistou uma mulher amável
Rejubile-se conosco!
Sim, mesmo se alguém conquistar apenas uma alma,
Uma única em todo o mundo. 
Mas aquele que falhou nisso 
Que fique chorando sozinho!

Alegria bebem todos os seres
No seio da Natureza:
Todos os bons, todos os maus,
Seguem seu rastro de rosas.
Ela nos deu beijos e vinho e 
Um amigo leal até a morte; 
Deu força para a vida aos mais humildes 
E ao querubim que se ergue diante de Deus!

Alegremente, como seus sóis corram
Através do esplêndido espaço celeste
Se expressem, irmãos, em seus caminhos,
Alegremente como o herói diante da vitória.

Alegre, formosa centelha divina,
Filha do Elíseo,
Ébrios de fogo entramos
Em teu santuário celeste!
Abracem-se milhões!
Enviem este beijo para todo o mundo!
Irmãos, além do céu estrelado
Mora um Pai Amado.
Milhões se deprimem diante Dele?
Mundo, você percebe seu Criador?
Procure-o mais acima do céu estrelado!
Sobre as estrelas onde Ele mora.

(Tradução de AN DIE FREUDE - ODE TO JOY ou Canção da Alegria)

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