terça-feira, 5 de julho de 2016

Uma noite delirante com Berlioz

Algumas experiências na vida são para nós um presente. Outras, um acaso, e outras ainda, um castigo. E é com essa mentalidade que inicio esse post de hoje, bem mal humorado por conta do meu retorno as aulas de direção. E que saco essas aulas viu? Meu instrutor tem uma conversa fiada daqueles hétero bonachão que só sabe falar de futebol, política e mulher. Dessas ultimas ele ainda dá em cima na rua... É. Não tem sido fácil. 

Mas, como dizem os sepientíssimos pessimistas: "Não há nada tão ruim que não piorar, não é?" Pois bem. Pra variar, enquanto dirijo, eu não posso tomar nenhum tarja preta, pra não afetar meus reflexos e coordenação, que aliás, não são bons nem quando estou sóbrio, quem dirá ébrio. Até lá, vai ter que ser enfrentando a humanidade nua e crua. Eita. Pra completar, meu celular resolveu dar bug de ontem pra hoje, e estou com problemas pra acessar a rede Wi-Fi aqui de casa com ele, e detesto usar os Dados Móveis da operadora por motivos óbvios. Como já tentei de tudo e até nada, vou esperar até amanhã e depois quem sabe procurar assitência técnica. Aff.

Pra meditar hoje, eu escolhi a Sinfonia Fantástica Op. 14 do compositor francês Hector Berlioz

É o trabalho mais conhecido de Berlioz e foi criado por inspiração de sua paixão pela atriz irlandesa Harriet Smithson, após vê-la representar o papel de Ofélia na peça Hamlet, de Shakespeare, no Teatro de Paris, em 1827, e também pela leitura de Fausto, de Johann Wolfgang von Goethe. A obra é um marco na música francesa, pois inaugura o sinfonismo na França. Berlioz quebra a estrutura formal da sinfonia, formada de quatro movimentos, quando a apresenta com um movimento a mais. Berlioz redigiu um roteiro impresso em 1831 em que indicava o que o protagonista imaginava em cada movimento da obra. Para o autor, o artista, sob efeito do ópio, tem alucinações e estas são traduzidas em cinco situações indicadas através dos cinco movimentos.

Escolhi essa obra pois ontem eu li essa informação sobre ela e pensei: "Ora, se ele tava apaixonado quando escreveu, e eu estou apaixonado agora, talvez consiga compreender o que ele imprimiu de seus afetos nessa peça." E cá estou, quando obviamente já devia estar dormindo, começando a ouvir uma sinfonia de quase 1 hora, pensando num amor que provavelmente nunca vai acontecer. Já a escutei em outras ocasiões, mas ao ler o título, achei que fosse uma obra apoteótica, como a Nona de Beethoven ou a Primeira de Brahms, e como não me surpreendeu nesse quesito, eu a abandonei na minha lista de 'obras admiradas mas nem tanto'. Junto com a Paixão Segundo S Mateus do Bach e as sinfonias de Mozart. Mas penso que nessa noite, imerso na atmosfera correta, essa experiência será diferente. 

Como já é de costume, vou escrevendo enquanto escuto e aqui viajando na obra... com a ajuda do programa escrito pelo próprio compositor, o que me ajuda muitíssimo, né?

Devaneios e Paixões: no primeiro movimento o artista descobre-se apaixonado. Pensa na amada, vê a amada em todos os cantos, não pode viver sem ela e transforma-a em uma ideia fixa. Essa ideia fixa é expressa em música na forma de um tema, tocado pelas clarinetas, que representa sua amada.

O início da obra me soa otimista, com uma pitada de suspense. Destaque já pra beleza dos primeiros acordes das cordas, que já me transportam pra uma aura realmente romântica. Penso agora num homem que vivia sua vida despreocupadamente. Trabalhava, saia com seus amigos e se divertia, como um jovem adulto tem direito. Esse homem nunca se prendeu a lugar nenhum, e muito menos a pessoa nenhuma. É livre. Faz o que quer, quando e como quer. Mas de repente, como que num gracejo do destino, sua vida muda completamente. 

Nosso belo jovem livre, com seus olhos da cor do mar, pele dourada e cabelos cor de mel, agora vê-se sendo transportado para uma realidade que até então ele não conhecia, e cuja existência ele ignorava completamente. Repentinamente, enaqunto caminha por um mercado, com alguns de seus amigos, que brincam alegremente, levemente alterados por algumas doses de uma bebida forte, ele a vê pela primeira vez: Num vestido longo e cor de rosa, pele delicada, bochechas rosadas, cabelos castanhos amarrados e pendendo em cachinhos pelo obro. Um pequeno sombreiro que ela segura nas mãos enluvadas de seda lhe protege do Sol. Essa cena delicada dura alguns segundos, tempo em que o coração de nosso jovem para de bater, e de repente somos envolvidos por um tsunami da orquestra. Ele se apaixonou. Ele não se interessou apenas, não. Isso é amor, amor a primeira vista. Paixão mesmo, daquelas que secam a boca, estremecem os ossos  e que fazem até o mais valente dos homens recuar de medo, frente ao desconhecido futuro.

Mas o nosso jovem amante não se importou com o fato de sentir de que sua vida estava virando de cabeça para baixo. Isso não importava realmente. Nada mais importava. Somente ela. Essa bela criatura envolta em delicadeza, tão pura quanto a Alva de um Serafin e tão bela quanto uma Sílfide, que lhe hipnotizara o olhar e que agora detinha o poder sob seu coração. Se há uma palavra que possa exprimir uma paixão assim, essa palavra é 'avassaladora'. A jovem lhe deu as costas, passou a caminhar então em outra direção, e nosso amado se perdeu por entre a multidão. Mas ele ainda consegue sentí-la por perto. E a segue, correndo pelos corredores estreitos, olhando dentro das lojas, a procura de sua amada. Seu coração parace querer saltar de seu corpo, mas no fundo, o brilho do olhar da jovem dama o aquece e o consola deliciosamente, dando a ele uma profunda sensação de tranquilidade. Essa mistura de sentimentos, alvoroço, torpor, é um dos frutos desse ópio mortal a que demos o nome de amor, e que agora consome o coração desse rapaz como o fogo consome a tudo aquilo que ele toca. 

Um baile: durante um baile da alta roda parisiense, o compositor vê – ou pensa que vê – sua amada entre os casais que rodopiam. Esse movimento, em ritmo de valsa, faz um uso bastante interessante da harpa.

O segundo movimento já traz o suspense de novo a tona. Nosso jovem descobriu tudo sobre sua amada: seu nome, sua familia, suas aspirações e desejos, seus hábitos. E como todo bom apaixonado, descobriu onde ela estaria nessa noite. Ele vai então a sua procura nesse baile. E de fato, também consigo enxergar a jovem dama por entre os casais enamorados que dançam sob as luzes de uma bela mansão. O gigantesco candelabro de cristais ao centro, o piso de uma pedra brilhante, visível por entre os vestidos luxosos das damas...

Sua amada está realmente presente ali. Ela não dança, mas sempre aparce aqui e acolá, sempre lhe olhando por entre a máscara lilás que ela segura por sobre os olhos. Mas seu olhar é inconfundível para nosso tolo enamorado, e ele tem ceretza que a reconheceria ainda que fosse na mais profunda escuridão. Na verdade, já está bêbado, e vendo coisas. Ela não poderia estar em todos os lugares ao mesmo tempo, e nem usando vários vestidos em uma única festa como aquela. Mas ele a vê, sente sua presença. De fato, sente sua necessidade, e por isso sua mente se encarrega de lhe dar essa presença, através dessas visões. 

Cena nos campos: para esquecer a mulher amada, o artista vai para o campo. Todavia, não consegue recuperar sua serenidade. A imagem de sua paixão, na forma da “ideia fixa” volta a atormentá-lo.

Seu amor enlouquecido começou a lhe trazer problemas. Sua obsessão então tem de ser tratada. Nosso louco enamorado decide então partir. E por entre os prados de um verde brilhante, ele busca consolo na leve bruma dos campos. Cuidar um pouco de sua sanidade mental lhe fará bem, e quem sabe, se colocar seus sentimentos no lugar, consigar encarar a situação de tão forma que a conquista de sua amada lhe seja possível. 

Ele fita as montanhas ao longe. Sente a brilha lhe balançar os cachos cor de mel que pendem até os ombros. Toca o rosto e sente que sua barba está grande. Esquecera-se de se barbear, de se cuidar, tão ocupado estivera contemplando a beleza sublime da jovem dama nos últimos meses. Tão ocupado em segui-la por todo canto, fora demitido, e como sua fama de inconstante e delirante lhe renderam sucessivas demissões, não mais achou onde pudesse tirar seu sustento.

Mas parece que nem mesmo o ar distante pode lhe arrancar essa paixão. E até por entre as aves que voam pelo céu azul e límpido, ele enxerga o doce rosto de sua amada. Suas mãos tremem, seus pés vacilam, e novamente ela reaparece bem ali, a sua frente. E ele então corre ao seu encontro. Não consegue alcançá-la no entanto. Ela parece se afastar cada vez mais, e como a névoa, se torna fumaça cada vez que ele está prestes a tocá-la. 

Essa brincadeira alucinada lhe rende a loucura, o desespero, e ele cai de joelhos por entre a grama molhada, que refletindo a luz do sol nas gotículas de orvalho de suas folhas ainda projetam a doce visão de sua linda mulher a sua frente. Tão real que ele imagina sentir até mesmo sua respiração, e as notas baixinhas de sua risada delicada. Mas tudo não passa de ilusão. 

Aos poucos ele consegue se dar conta de sua condição. E percebe que já está por enlouquecer. Busca então conforto em sua casa. Quem sabe sua cama e uma xícara de café possam lhe acalmar e lhe devolver o juízo. Ele então se deita, cansado, sujo de sua aventura no campo, mas ainda que de olhos fechados, continua a ver a face encantadora de sua musa. Por fim, ele escuta o prenúncio de sua própria morte. 

Marcha rumo ao cadafalso: o artista fuma ópio e sonha que matou a amada, sendo condenado à morte. Esse movimento termina com sua decapitação.

O tom inicial já é mortal. Macabro. Deitado em sua cama no campo, o jovem alucina que sua amada esposa o traiu e fugiu com outro, e por esse motivo passa a desejar sua morte. Se ele não poderá ser o dono de seu corpo, ninguém mais o será. 

A insanidade mental é aqui bem trabalhada. E com requintes de detalhes. Nosso jovem é um "louco saudável". Embora sua apareência real esteja suja e mal cuidada. O retrato de sua psicopatia interior é belo e ainda cortez, formal, elegante, e por isso mesmo consegue então ser assustador. Como um louco que carrega uma navalha por entre as vestes tem a coragem de dar a sua amada tão cruel fim? Ele a corta numerosas vezes, e se recorda disso enquanto é perseguido pelos homens que, perturbados pelos gritos de despesero da jovem, o encontram em flagrante. 

Depois de pego, ele então sofre nas mãos dos homens, e ainda é condenado a morte, a qual ele encara com um olhar fulminante, onde já não mais é possível encontrar o doce jovem apaixonado de meses atrás, somente o louco alucinado.

Sabá das Feiticeiras: a mulher que ele amava transformou-se, depois de morta, em uma bruxa. Tem início um Sabá infernal, no qual Berlioz coloca à prova todos os recursos da orquestra moderna. Rápida e estrondosa conclusão.

Mentendo então as caracteristicas iniciais do último movimento, mas adicionando um caráter um pocuo mais assustador. Vemos então os sonhos assombrados de nosso jovem que, ainda delirando em sua casa no campo, imagina-se sendo torturado depois de morto pelas terríveis mulheres infernais, dentre elas a sua amada. 

Mais do que uma cena melindrosa e grotesca, notamos o retrato do último estado da loucura. Aquela que é tão profunda que o homem exterior não mais se dá conta de que está sonhando, e onde apenas o homem interior assiste passível as terríveis torturas infernais. 

Somos levados então a contemplar um luxiorioso bacanal. Nosso jovem, depois de torturado mais vezs do que é capaz de contar, morto de dor em sua própria carne, contempla agora por toda a eternidade o corpo de sua amada sendo entregue aos mais variados homens, que a defloram completamente a sua frente, levando-o a loucura completa. Ele grita, vocifera, lança palavras de ódio e maldição, mas estando ali como espectador daquele inferno do seu amor, não consegue deter a cena que se desenrola a sua frente. 

Completando então o clima obscuro dos dois últimos movimentos, os andamentos finais da obra são de um estupendo terror, um verdadeiro filme de terror, que culmina então num climax bizarro e grandioso. Como se o destino, ao final de tudo, risse de toda aquela cena.

"Se você não almeja minha morte, em nome da piedade (não ouso dizer do amor), faça-me saber quando poderei vê-la. Imploro-lhe graça, perdão… de joelhos, com lágrimas!!! Oh!, infeliz como sou, não acreditei merecer tudo quanto sofro, mas bendigo os golpes provindos de sua mão. Espero
 sua resposta como a sentença de um juiz”.

H. Berlioz

Termino então por aqui a interpretação de hoje com um tremento aperto no coração. Como se eu também estivesse começando a alucinar naquele baile, como o herói de Berlioz. E por isso resolvi finalizar o post com a citação do próprio compositor, e que coincidentemente expressa minha insegurança e tensão nesse momento... 
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Fonte dos textos em itálico aqui e aqui.

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