sábado, 9 de julho de 2016

O manto dos que amam com ardor

"Quem não provou amarguras
No humano vale da dor,
Nada entende de doçuras,
Desconhece o que é o amor?
Amarguras são o manto dos que amam com ardor."

Esse foi um pequeno refrão cantando por uma carmelita após a recitação do coro onde se encontrava São João da Cruz. Após o término desse canto, o santo então teria entrado em extase, e dito palavras que ainda hoje ecoam nos corações dos carmelitas descalços de todo o mundo. Os grandes santos tem isso de especial: suas palavras e ações ficam gravadas nos corações daqueles que o cercam para todo o sempre. Um exemplo disso é exatamente este que lhe escreve, que mesmo séculos após a morte do santo, continua a meditar quase que diariamente as palavras da Noite Escura. Grandes pessoas deicam grandes marcas.

Claro, nem todas boas o bastante para serem comparados a São João da Cruz, ou Santa Tereza D'Ávila, ou Santa Catarina de Sena. Outros deixam sua marca na história através de marcas ruins. Poderia então listar toda uma série de pessoas que deixaram um legado de sangue e medo e que ainda hoje povoam pesadelos de muitas pessoas. Mas essas são as grandes pessoas, que sendo boas ou más, deixam suas marcas. Outras marcas no entanto, enstão mais presentes no nosso dia a dia e talvez só estejam gravadas no coração de cada um. Falo das pequenas marcas, deixadas pelas pessoas ditas normais. 

Mas isso também é uma questão de perspectiva. O que pode significar o mundo para alguém, não passa de uma coisa desnecessária para outra. E assim somos nós. O homem que era tudo pra mim, não me tinha em maior grau de consideração do que um cão, ainda que constantemente me dissesse o contrário. Da mesma forma, em algum lugar, alguém que me tenha na mais alta estima sequer tem o reconhecimento de minha amizade.  Por fim, em quem depositei grandes expectativas, foi quem mais decepcionou. E a decepção tem algo de engraçado: ficamos com raiva do próximo porque ele não conseguiu corresponder a algo que nós idealizamos. Numa decepção portanto, o culpado é também aquele que se decepcionou. E decepcionar-se, as vezes faz parte do amor.

Sim, parte do amor, mas do amor imperfeito. Aquele que espera do outro reciprocidade pelo sentimento que nasceu no âmago do meu coração. Esse é o amor imperfeito, aquele que espera que o outro preencha o vazio da minha existência. No entanto, o próximo também tem esse vazio que lhe causa sofrimento e também busca por alguém que o complete, que o satisfaça. Todos os problemas do mundo estariam resolvidos se ambos decidissem completar o vazio do outro, mas a vida não permitiria uma solução tão simples pra uma questão tão primordial. 

O vazio, sendo nada, poderia ser ignorado se não fosse a dor que causa. É como uma pessoa perfurada por um projétil ou uma lança: não é o espaço deixado na carne que causa dor, mas a extremidade que restou e que sofreu dano que machuca. Em outra palavras, é como um jarro de água: Ainda que o barro que o molde seja a matéria que o constitui, é o espaço dentro dele que o torna útil. Então, mesmo que as coisas sejam quantificadas pelo tangível, é o intangível que lhes dá valor. Assim é nosso vazio, a dor que ele nos causa é o que o torna o problema central e primitivo da humanidade, aquele pelo qual as pessoas trabalham incansavelmente para tentar alcançar. 

Alguns buscam a solução na tecnologia, no intuito de, criando aparatos cada vez mais engenhosos, facilitem nosso dia e assim nos permita encontramos a nós mesmos e assim resolver a questão fundamental da vida. Outros, mais ou menos tolos, dependendo do ponto de vista, buscam essa resposta no outro. Recolhendo-se em si mesmo e vendo que a resposta não está clara ao contemplar o vazio da própria existência, busca-se complemento numa existência exterior. Em outra palavras, busca-se o retorno aquele estado primitivo que perdemos muito tempo atrás. Uma existência equilibrada, perfeita, e que não sinta mais dor. 

A essa busca eu acredito que possa chamar de vida. A vida é então esse período da existência que compreende do nascimento à morte dos ser, onde o mesmo busca tentar entender a si mesmo e dessa forma entender o que falta dentro de si. E enquanto todos caminham desesperadamente por essa terra, em busca dessa resposta pessoal, vamos nos encontrando uns com os outros. Em alguns momentos nos ajudamos mutuamente. Nos auxiliamos, e em alguns momentos nos completamos. Parece que o vazio da existência finalmente é preenchido. Mas essa resposta é passageira, e a questão da existência se mostra cada vez mais profunda e complexa,

Muitos ainda desistem de buscar essa resposta conscientemente. São aqueles que afirmam viver a vida apaioxandamente, ou os que desistiram de viver e hoje se encontram na amargura, à margem da existência. Mas incosciente, estes ainda buscam o seu próprio eu. Os primeiros, acreditando que as situações radicais ou de extremos possam lhe proporcionar o insight que vai solucionar sua questão. Os outros, fecharam-se dentro de si mesmo numa profunda autocontemplação na busca de uma resposta interior.

Onde então se encontra a verdade?

Dentro de mim?

No meu contato com o outro?

Devo trazê-la de dentro de mim e então colocá-la em contato com o outro?

Particularmente não sei como responder a nenhuma dessas questões, e faço parte do grupo daqueles que apenas que fazer diminuir a dor do vazio da existência e assim, já sem dor e sem torpor, tentar achar a resposta pra essa questão essencial. 

Por fim, me detenho na última frase da estrofe com que comecei o post: "Amarguras são o manto dos que amam com ardor." Quanta sabedoria há nessas palavras. E também quanta dor. 

De fato, quem ama apaixonadamente sem receber nada em troca acaba por sentir dentro de si um vazio constante, provocado pelo sentimento que constantemente de dentro dele sai. E como recompensa só recebe muitas vezes dor e ignorância, o manto que lhe resta é o da amargura. É como um guerreiro que, por ter lutado e vencido inúmeras guerras em defesa de seu povo, acaba por receber uma alcunha de assassino, e por esse motivo passa a ser rechaçado pelas mesmas pessoas pelas quais um dia ele lutou e arriscou sua vida. Esse bravo cavaleiro então recebeu como pagamento por seu esforço o ódio e o abandono. E agora tem de viver como moribundo, como um indigente, nos arredores do país que um dia ele jurou defender. 
Mas por esse motivo ele passará a odiar a sua terra? Não. Ele jurou protegê-la. E mesmo que sua terra não o queira mais por perto, ele ainda lutará por ela caso precise, pois quem ama de verdade, ama gratuitamente, e assim ele vai vivendo em paz, com a dor de sua nação no coração, mas as mãos sempre prontas a lutar novamente.

O povo aqui simboliza aqueles que só nos tem em consideração quando precisam de nós pra suprir sua carência. O povo que um dia o louvou por garantir a sua segurança, hoje o teme e o odeia pelo sangue que teve de derramar para isso. Assim como aqueles que num momento de necessidade nos procuraram, hoje sequer fitam nosso olhar, pois já não precisam mais. Como proceder então? Paga com o ódio recíproco? Não. Mas continuar amando, e continuar trajando o manto da amargura, manto esse que é a prova de que, quem sabe amar, ama incondicionalmente até o fim.

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