domingo, 3 de julho de 2016

Ah, a liberdade do Amor...

Mais um domingo termina, mais uma semana que se inicia. E como o torpor e o tédio tomam conta de mim nessa noite fria e solitária, mais uma viagem musical eu planejei pra me tirar dessa realidade. 

A escolhida da noite é a Sinfonia N° 4 em Eb Maior - Romântica do Bruckner. É um dos trabalhos mais populares do compositor austríaco e foi escrita em 1874 e revista várias vezes até 1888. Dedicada ao príncipe Konstantin de Hohenlohe-Schillingsfürst (não faço a mínima ideia de como se pronuncia isso, to copiando da Wikipedia) ela estreou em Viena, com grande sucesso, ao contrário da maioria das obras dele que hoje são famosas e que só receberam reconhecimento após a morte do compositor. A execução dessa peça dura pouco mais de 1 hora e é dividida em 4 movimentos.

1. Bewegt - nicht zu schnell.  
2. Andante quasi allegretto
3. Scherzo. Bewegt. Trio. Nicht zu schnell, keinesfalls schleppend
4. Finale. Bewegt, doch nicht zu schnell

A obra começa com um tema inicial conhecido, nostálgico, apresentado pelos sopros e uma aura de suspense paira no ar e aumenta vagarosamente nas cordas. Um crepúsculo em uma cidadezinha do interior da Europa. Pessoas estranhas nem imaginam que suas vidas estão prestes a mudar, e que seus destinos estão prestes a se cruzar para sempre numa aventura sem volta. A primeira impressão da obra é a de que ela começa a preparar terreno para um desfecho triunfal, um romance que além de abrasar corações, será pra sempre recontado nas páginas dessa partitura. 

Antes de embarcarem num grande amor, as pessoas seguem os fluxos de suas vidas normalmente. A paixão mais arrebatadora é aquela que não é esperada, que simplesmente acontece, e que surpreende a todos, com sentimentos avssaladores que nascem do fundo do coração e repentinamente tomam de conta de cada centímetro do ser. Uma paixão tórrida, repleta de sentimentos puros e outros nem tanto, que doem até o osso de tão poderosa. 

Uma paixão é como um sol poente. A luz que dali emana ilumina e aquece, e a escuridão que dele resulta, traz frio e medo. Mas quando a luz do sol se esvai totalmente, ela dá espaço ao brilho da lua, que, mesmo em meio a situação desoladora da noite, ainda nos oferece que um dia a certeza da luz do sol vai voltar. Costumamos nos aquietar no cotidiano. Dificilmente nos arriscamos, dificilmente permitimos que o nosso sol se ponha, pois tememos a escuridão da noite. Mas, tão logo somos privados da luz do astro-rei, a lua nos acalma com sua beleza fria e clara. E as estrelas fazem companhia ao nosso coração. Certamente deixar-se apaixonar-se é dar passos no escuro, é correr o risco de cair e se machucar. Mas na escuridão da noite, a lua e as estrelas dão o seu melhor pra nos ajudar. Seria um desperdício então permitir que sua luz não nos aquecesse também o coração, como faz o sol. Não há motivo para medo. A dor também é certa na comodidade e no conforto, fechar-se na certeza de uma vida segura não é garantia de segurança nenhuma, muito pelo contrário, é muitas vezes sinônimo de uma vulnerabilidade disfarçada. 

Entregar-se ao amor é dar um voto de confiançao ao Destino. Entregar-lhe uma folha em branco com sua assinatura e deixar que ele escreva o que lhe aprouver.  Por vezes seus caminhos são obscuros, desconhecidos, pedregosos e cruéis, e o destino final nem sempre é claro, quase nunca o é de fato. Mas a força do amor é implacável, e resistir a ele quando ele chama, é quase impossível.

O segundo movimento começa com menos suspense que o anterior, mas não menos obscuro. Uma aura descontraída paira ao redor dos amantes. Uma luz brilha ao fundo da estrada. Como se uma aconchegante casinha esperasse pelo casal que andava no frio, depois de ter fugido, para viverem juntos como um só.

Um só. O homem não consegue viver sozinho, mas parece que cada dia mais tornar-se independente é sinônimo de sucesso. Mas a história continua sendo implacável: quanto mais o homem tenta viver longe ds outros, mais o mundo lhe mostra que os homens precisam uns dos outros. É uma lógica simples: somos fracos e incapazes, e só trabalhando em conjunto conseguimos algum resultado. Quando duas pessoas se amam de verdade, o mundo se torna frágil aos seus pés. Derrotam a qualquer deserto com a força de seu amor. Esse movimento fala de companhia. Da tranquilidade que uma pessoa amada nos traz. Do conforto que é um abraço apertado numa noite fria e desolada. De uma carinho delicado, de um gesto de ternura. Companhia. 

No fundo, todo homem sente a necessidade de alguém ao seu lado, para dividir alegrias, tristezas, dúvidas e incertezas. No fundo, tudo o que queremos é segurança. E essa é maior promessa do amor. Por esse motivo mesmo é que, quando ele está prestes a surgir, faz com o que sol se ponha, pra nos privar da segurança da luz do dia e assim, valorizarmos ainda mais essa luz, quando ela voltar resplandecente no dia seguinte. 

Mesmo sendo uma noite escura e fria, aquela mão quente da pessoa que caminha ao seu lado, rumo a casinha na colina, lhe aquece o coração de tal forma que já não há mais o que temer. O amor de tudo já cuidou. Ainda que alguns perigos se vejam pela frente, a calma transmitida nesse pequeno gesto supera toda incerteza. Nossos amantes caminham em um só passo rumo ao destino que escolheram juntos: o de ficarm um com o outro pra todo o sempre. E a medida que os perigos e os medos se revelam por entre as folhagens densas de uma floresta macabra, o amor também se revela grande e protetor. O suspense retorna. O medo dos amantes bota a prova o amor entre eles. O amor vence gloriosamente. Seria essa apenas a primeira de muitas batalhas? Quão longa ainda se mostrará essa caminhada?

E eis que o nascer do sol finalmente se anuncia ao fundo do panorama visual de nossos amantes. Aos poucos, a luz do sol dissipa as trevas, e agradecido a luz da lua que protegeu nossos jovens, o astro-rei retorna ao seu trono majestoso no alto do céu para aquecer os corações. 

Mas a lição deve ser agora tomada dos dois. A luz lhes fora tirada para que quando retornasse no amanhecer, lhe fosse dada o devido valor. Fitando então o grande astro, os amantes entendem a sua missão: apoiar um ao outro. Proteger um ao outro. Acompanhar um ao outro, ainda que seja ao inferno. O tema inicial deixa saudades. A glória do sol é a glória do amor. E finalmente começa a vida que nosso belo casal deve agora começar a construir como um só. Já não são mais dois amantes que fugiram para juntos viverem escondidos nas montanhas, longe dos problemas de suas famílias e amigos. Agora são como uma única pessoa, que lutará para ali sobreviver e desfrutar de sua liberdade.

Ah, a liberdade do amor. Finalmente podem se amar, livremente, sem culpa, sem temor. Ah, a liberdade do amor. Finalmente livres das amarras da noite fria que eram suas vidas, agora podem viver sob a claridade de sua única prisão: seu próprio coração.

Chegamos então ao final dessa obra belíssima. O suspense novamente se faz presente. Mais atenuado que os do primeiro movimento, mas ainda presente. Cresce gradativamente, anunciando uma batalha? São as dificuldades, as lutas que agora nossos amantes devem enfrentar.

O retorno do astro-rei não foi só apenas a quebra das antigas prisões dos que temiam pelo amor, não. O sol aquece mas também queima. E assim como num deserto parece machucar a pele e judiar da alma, nossos amados precisam continaur a provar do seu amor para continuar a viver. Mas muito embora implacável como a noite, o sol também é generoso em seu ensinamento, e o amor mostra que a tudo pode suportar. Mas o amor é como uma criança. Como a criança que agora anima a vida de nosso casal. Precisa ser cuidado, alimentado. Poderá um dia vencer a todos os mais valentes guerreiros do mundo? Sim, se estiverem dispostos a guiá-lo. Se assim for, o amor a tudo suportará, a tudo e a todos vencerá! E um dia se mostrá ainda mais triunfal do que o próprio Sol. E aqui ele também se mostra como o próprio Sol: grande, poderoso, imbatível, implacável. Na medida dos desesperos e abismos da vida. 

Vemos reflexos de muitas batalhas. Muitas guerras. Muitas mortes. Muitras traições. Mas embora todas essas coisas sejam dolorosas, o amor as supera em número, pois ainda não há nada que ele não consiga fazer. O amor tudo suporta. 

O tom da obra é bastante épico. Aqui e ali notamos cenários e batalhas medievais. Mas também notamos a palavra que pra mim melhor define o amor em toda a sua extensão e complexidade: sacrifício. Penso aqui nas grande tragédias que foram vividas em nome do amor: Andrômeda que se sacrificou por amor ao seu povo. Tristão e Isolda, Romeu e Julieta. Todos morreram por aquilo que amavam. E se pensam que foram separados pela morte por isso mesmo o amor não conseguiu nesses casos um final feliz, enganam-se. É justamente ai que o amor atinge o seu poder máximo, e sua maior demostração de grandiosidade: quando vence as barreiras do espaço e das circunstâncias, e dá aos amantes a oportunidade de viveram para sempre em seus próprios corações. São apenas um, recordam-se? Pois bem, ainda que um morra, para sempre no coração do outro viverá. E mesmo hoje, séculos depois, ainda vivem sem amando nas notas dessa obra que ecoa pelo tempo e que imortalizou nas páginas das partituras, e na mente dos ouvintes, aquecendo-lhes o coração como o Sol aqueceu as faces rosadas de nossos amantes. 

Ah o amor... tão grandioso, tão complexo, tão misterioso. Junto com o destino e a sorte, ele governa a vida dos homens e ditando seus sentimentos, prende uns aos outros as amarras que só a ele é dado o poder de desfazer. E assim ele dá aos homens a graça de conseguirem aprender. Aprender a amar, aprender a perdoar, aprender a lutar, aprender a acompanhar. O amor é uma arte, o amor é a mãe de todas as artes. O amor é necessário a beleza. O amor é necessário a existência. O amor é necessário a felicidade. E por fim, mesmo que hora tenha desaparecido por completo, e hora sua força esmague a todos em seu calor, o amor ainda pode ser vivido, como aquela luz delicada do Sol que aquece a alma e o coração e se mostra calmo e benevolente, superando a todo e qualquer desastre. 

Termino aqui com a tradução de um trechinho dos Carmina Burana, que falando do amor e da Primavera, também reconhece no Sol essa beleza que ilumina os corações:

O sol aquece a tudo
sutil e puro,
e em Abril de novo revela
a sua face ao mundo;
ao amor incita
a alma do homem,
E sobre os prazeres, 
governa o deus pueril.

(Trecho de Omnia Sol Temperat)

~

PS.: Só esclarecendo, eu não estou enlouquecendo e sentindo falta do calor. Apenas achei que o Sol daria uma boa referência pra figura de linguagem que eu usei aqui. Ainda prefiro o frio que está fazendo, e se depender de mim, vai continuar assim por um longo tempo. 

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