quinta-feira, 6 de julho de 2017

Quimera ingrata

Vês?! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão – esta pantera -
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te a lama que te espera!
O Homem que, nesta terra miserável,
Mora entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera

Toma um fósforo, acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro.
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa ainda pena a tua chaga
Apedreja essa mão vil que te afaga.
Escarra nessa boca de que beija!

(Augusto dos Anjos)

Profundidade, apenas o que posso conceber ao ler repetidas vezes as palavras de Augusto, que só não chamo de mestre por minha insistente recusa em reconhecer a genialidade de quem despreza a Igreja. No entanto não poderia deixar de perceber a dor escondida, ou talvez bem explícita, nesses versos. 

Penso na poesia como uma irmã mais nova da música, expressa bem os sentimentos da alma mas não tanto quanto sua irmã. Por isso quando leio algo assim, como mais cedo quando lia os versos poéticos de Santa Teresa D'Ávila, eu penso estar observando o que se passava na superfície da alma da pessoa que o escreveu, assim como quem lê essas linhas que outrora digito podem contemplar o que se reflete na superfície de minha consciência. 

Vejo então nesses versos o ódio que vem daquela fase após uma decepção em que a raiva impera nos sentidos, pelo rancor da traição e a tristeza de não ter percebido antes o fantasma soturno se aproximar de suas costas para então com um beijo trair-lhe antes de desferir o certeiro golpe que resultaria no seu sangue derramado pelo chão, com o seu amor espalhado pelas ruas frias e vazias da nossa humanidade desumana...

Vejo então nesses versos a dor transformada em ódio e cuspida como palavras rasgando as folhas onde são escritas, fluindo da mão com a mesma força em que a espuma surge da boca raivosa daquele que as escrevia após ter sido covardemente atirado para fora de sua própria casa e posto para correr pelos seus próprios cães. Os cães que um dia afagaram sua mão ao chegar em casa depois de um longo dia de trabalho e que agora desejam sua jugular como lobos raivosos espreitam sua caça na noite de luar...

Nós nos orgulhamos de termos domesticado os cães mas na verdade nosso espírito é que ainda precisa ser domesticado, para aprender a reconhecer no amor verdadeiro o seu senhor e não apenas nos desejos torpes e impuros de nossa carne apodrecida por nossos próprios hormônios descontrolados que pululam agitadamente afogando nosso gozar num oceano de prazeres que mais destroem do que realmente nos fazem gozar. 

Nosso sentimento se distorceu então, e o que era amor ontem já não pode se diferenciar mais do ódio hoje, e essa quimera abominável, resultante da cruza pecaminosa de tantos instintos condenáveis é que faz da nossa busca pela felicidade uma eterna busca por decepções amargas que nos são empurradas goela abaixo por pessoas ingratas a quem um dia ousamos chamar de nossos amigos.

Profundidade, mas até que ponto vale refugiar sentimentos profundos em palavras vazias? Ora, até mesmo a cisterna do vizinho consegue ser mais profunda do que o cérebro de suas filhas, mas não tão profundo quanto a cavidade vaginal das mesmas... O que me irrita e traz espuma e sangue aos meus lábios é saber que as lágrimas que um dia enxuguei servirão para me afogar num futuro não tão distante onde as mãos que segurei enquanto tremiam de dor irão me apunhalar por trás e que o rosto que um dia me olhou com olhar de mansidão e gratidão me fitarão com desprezo e asco. 

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