sexta-feira, 30 de abril de 2021

Um rugido e uma espada

Preciso voltar aqui, a este ponto em que posso me desfazer dessas vestes que recobrem a minha nudez e vergonha, e me mostrar verdadeiramente. O meu corpo é repleto de cicatrizes, palavras, pelas letras escarlates que escrevo e que contém, verdadeiramente, o sangue rubro do ritual carmesim que é expressar os meus afetos profundos por meio de palavras. Com efeito o meu sangue se torna a tinta que uso para escrever, usando um punhal como pincel, em minha própria pele a história do meu ser, de como a minha existência se fez e desfez tantas vezes que já não posso dizer o que eu sou, já não me reconheço frente ao espelho e, principalmente, já não reconheço os ímpetos conflitantes entre si que habitam o meu íntimo mais profundo, que espreitam a minha mente. 

E eu sempre acabo retornando a esse mundo particular, onde as palavras que cortam mais do que o aço também podem ser reconfortantes quanto a brisa fresca do mar num tarde prestes a anoitecer, com o vento beijando minha face e as ondas fazendo leves carícias em meus pés. E essas palavras que escrevo me protegem da loucura e do horror que é constatar que o meu amor não é amado.

Me refugio nesse mundo que eu mesmo criei pois aqui eu não sou prisioneiro, aqui livre sou! E o que esse lugar se difere de todos os outros? É porque ontem eu era escravo, mas hoje eu não sou mais. Não há vestígios de paixão, de dor, de decepção. Não há amizades desfeitas pela força de uma lança bestial que cruzou o peito num ataque mortal em nome do medo e dos próprios preconceitos. Aqui é seguro, em meu jardim fechado, pela secreta escada disfarçada onde ninguém pode alcançar. 

Mas, um rugido surge ao longe no céu que, escuro pela noite, se ilumina de forma lúgubre e gutural, de um cinza ameaçador. Ao olhar aquela imagem de luz no céu eu vejo, com o coração palpitante, um gigantesco ser aparecer por entre as nuvens, trajando uma pesada armadura de guerra, com uma espada que, se movimentada, poderia fazer da face da terra qualquer resquício desse paraíso que eu construí. 

Ele ergue aquele monumento de puro aço negro, ameaçadoramente, certo de que não restará nada em apenas um único golpe. E é então que ele para, por um breve instante. Dizem que quando dois grandes espíritos guerreiros de grande virtude se cruzam o tempo para por um instante. O nível de habilidade de ambos é tão grande que o próprio tempo e espaço se tornam incapazes de acompanhar tamanho acontecimento. 

O meu olhar e o da criatura se cruzam, chamas saindo de seus olhos, as mesmas chamas consumindo meu corpo que, embora pequeno, guarda um grande poder advindo do meu amor, do meu desejo por aquele que abandonei no outro mundo e que aqui tornou-se minha força vital. É então que eu vejo que ele faz aquilo para que nem mesmo ali, nos cantos mais longínquos da minha mente possa haver quaisquer resquícios daquilo que um dia senti por ele. É com a espada de um antigo demônio primordial que ele vai destruir tudo o que criei com a mais pura das intenções: me refugiar do sentimento que pudesse feri-lo de algum modo.

E o instante cessa, com a espada sendo brutalmente lançada contra o solo, fazendo o se partir num tremor impetuoso, abrindo rios e lava por todos os lados e explosões colossais, destruindo tudo num átimo, com mais poder do que um milhão de bombas atômicas e que, mesmo assim, mesmo destruindo meu corpo, não foi capaz de desfazer o sentimento que, agora, existe de forma perene nesse mundo, apenas observando para todo o sempre as migalhas do que um dia ali existiu, mas ainda ardendo em chamas, chamas de amor pelo mesmo ser que se destruiu para não me amar. 

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