segunda-feira, 30 de agosto de 2021

Compassos

Hoje foi a minha mente que não serviu aos estudos, divagou, viajou para terras distantes, se perdeu em meios aos vastos campos de canola, no mar brilhante pela luz do sol, na brisa fresca de uma tarde qualquer no bosque. Decidi deixar tudo de lado, sem a pressão de manter a rotina artificiosa que criei para manter minha mente um pouco nos eixos. Quero apenas ouvir um pouco de música e dormir, deixar-me completamente entregue a letargia de sentir os membros pesados, os olhos pouco a pouco se fechando e adormecendo lentamente sob efeito lisérgico. É assim  que eu vou levando as coisas. 

Claro que eu gosto dessa visão, claro que eu gostaria de guardá-la na memória, mas eu sei que ela logo se esvai, como a marca dos pés gravada na areia da praia. E então, sentindo a maresia contra meu rosto eu fecho os olhos e o que escuto? Um kyrie cantando por um coro ao longe, sei bem que é reflexo da minha alma, mas ainda assim aquele canto me domina, e eu me sinto leve, como se pudesse voar lado a lado com aquelas gaivotas que serpenteiam o céu azul em uma dança complexa demais para que eu consiga entender seu padrão. 

O que esses dois elementos tem em comum? Representam a vontade mais profunda do meu ser: a fuga para uma terra distante, bela, onde possa contemplar a beleza natural e onde também possa viver a espiritualidade contemplativa que me é cara. Aqui tudo é barulho, tudo é cheio e complicado. Preciso de um novo recomeço, um total, uma mudança de ares capaz de me trazer o brilho no olhar que perdi, preciso chegar até esse praia onde voam os pássaros e onde o azul do céu se mistura com o azul do mar numa profusão de tons que enchem os olhos e inspiram a vida a continuar. 

E o Agnus Dei se dissipa ao longe, os remédios fazendo seu efeito, as extremidades perdendo sua precisão, o olhar se tornando pesado, a liberdade finalmente chegando nos braços de um anjo que me levam a descansar enquanto tocam os últimos compassos do órgão... 

X

Foi apenas uma leve garoa, que começou fazendo um tilintar nas latas de cerveja vazias no quintal de casa. Eu abaixei a televisão para ouvir melhor e o som foi ficando mais forte e mais próximo. Em alguns minutos a chuva encheu o ar de um cheiro doce de terra molhada, a terra das plantas de minha mãe perfumando o ambiente. De repente tornou-se mais fácil respirar, com a umidade devolvida na secura do centro-oeste. Eu sorri e senti meus olhos se encherem d'água, emocionado e sensível. E chuva logo passou, deixando os perfumes no ar e um sentimento bom no meu coração. É, e é assim que eu hoje vou dormir. 

X

Eu estou cansado, absolutamente exausto, de acordar todos os dias, de ser obrigado a viver como se a vida valesse a pena, como se eu acreditasse no futuro, como se eu pudesse ver um amanhã em que tudo dará certo. Eu estou cansado do pânico todas as noites, do medo do desconhecido, de ficar sozinho, mas também cansado do barulho que é quando não estou só. Eu estou cansado, cansado demais, pra dar um passo sequer pra onde quer que seja, porque eu não tenho rumo, eu não tenho razão e, se ainda não me atirei a frente de um carro foi só porque temo causar dor a única pessoa que amo e que me importo realmente, de resto só enxergo a minha vida como um fardo, como um peso desnecessário, um incômodo. 

E eu queria dormir, dormir tão profundamente que não sentiria isso, essa angústia, esse medo, essa incerteza. Queria dormir tão profundamente que não mais acordaria, não mais veria o amanhã ou o anoitecer, não mais sentiria medo e nem a obrigação de ser. Estou cansado de ser, mesmo porque já não vivo, não, isso é uma forma muito mais baixa de existência, e eu nem sei que nome dar a isto, é patético, é vergonhoso é um arremedo de vida. Apenas. 

X

Estava me sentindo até bem nos últimos dias, mas elas precisavam voltar, como fantasmas para me atormentar, me tirando a paz, o sossego, me fazendo entrar em depressão profunda com toda a confusão e barulho que trouxeram em suas malas. Essa foi a causa do meu colapso, e eu sei que ninguém entenderia isso, porque todos estão do lado delas, do lado errado, do lado da maldade, e eu sozinho sinto os efeitos de toda essa malícia, como uma esponja, como se meu corpo recebesse tudo de ruim que elas trouxeram sabe-se lá de onde... E agora como eu faço pra vomitar tudo isso que dentro de mim causa uma tempestade? Como faço pra me reerguer uma vez que me sinto atacado por um grupo de monstros que devoraram a minha carne e me inocularam veneno? 

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