quinta-feira, 26 de agosto de 2021

Melindres

Sombra de inferno e noite carregada,
Em que o céu de um só astro não se aclara,
De nuvens, quanto o pode ser, toldada,

Véu tão grosso ao meu rosto não lançara,
Nem, ao contacto, fora tão pungente,
Como o fumo, que ali nos rodeara.

(A Divina Comédia, Purgatório - Canto XVI)

Você já sentiu como se nada, nada mesmo, desde os mínimos detalhes, desse certo? Eu não posso ir nem na cozinha sem que um problema apareça. Bom, esse foi fácil de resolver mas e os outros, aqueles enormes, que dependem de tantas decisões baseadas puramente no outro que são verdadeiramente uma incógnita, impossível de saber como se resolverá² Você já sentiu como se tudo estivesse desmoronando, como se cada problema fosse, na realidade, uma pequena rachadura num edifício já condenado a ruir? 

De algum modo eu sinto que já vivo em meio à ruínas, e é como se nada pudesse levantar-se delas, exceto demônios escondidos que teimam em me perseguir. E é assim que vejo o mundo, desde o momento em que acordo, como um uma grande destruição que nunca se finda, nunca acaba, mas sempre, mais e mais, me destrói e me reduz à cinzas. 

Você já sentiu, como se tudo estivesse desabando diante de si²? Você já sentiu que o mundo inteiro está desmoronando, retornando ao caos, ao nada? Mas eu queria o nada, eu queria a morte, voltar a inexistência, queria não precisar viver nada disso, queria não precisar tomar uma decisão, queria não precisar lutar uma luta que, desde já, já está declarada que perderei. E tudo retorna ao nada, e eu permaneço me entristecendo, e tudo vai desmoronando. É só isso, dia após dia, e nada muda nesse círculo infernal, como se eu estive preso na barriga do ourobouros, infinitamente condenado a destruição.

Eu só queria disposição, a mesma que os idols têm para dançar horas num palco quente para milhares de pessoas, cantar, sorrir, brincar. Eu não sei fazer mais nada disso, e eu olho para eles e vejo vida, vejo a vida pulsando, brilhando em seus sorrisos incríveis, em seus cabelos perfeitos, músculos esculpidos por algum anjo inspirado pelos deuses mais belos. Eu olho para eles e vejo vida, a mesma vida que sinto, dia após dia, se esvair de mim. E me olho no espelho e vejo a morte estampada em cada olheira, o olhar vazio sendo uma janela para o reino da morte, cada linha profunda da pele ressecada um pavimento da estrada que conduz diretamente ao fim. A vida, que neles pulsa, em mim restou apenas uma pequena chama consumindo os restos de uma casca vazia. 

Já não consigo ler como antes. As vozes dos meus professores não encontram eco no meu ser, elas apenas se esvaem, a música se tornou um pano de fundo, sem significado, tudo o que tem relação com o outro é incômodo ou sem sentido, e eu apenas olho a tudo catatônico, inerte, a espera da demolição que nunca vem. Com isso os vícios se mostram cada vez mais presentes, como se as suas raízes profundas lançassem-se em direção ao céu da minha consciência, turvando a visão do meu jardim, povoando de ervas daninhas as flores que entre lágrimas eu vou colhendo. E todos os dias encontro razão para me entregar ao sono profundo e artificioso dos benzodiazepínicos, e todos os dias eu digo que devo parar, mas a cada tarde eu me desespero e quero desparecer, sendo a sedação o mais próximo do nada que eu posso alçar. 

E esse sono, artificial, mas que me conforta em seu silêncio profundo, sem sonhos e nem vislumbres, as vezes apenas acossado de uma libido dominandi que me ajuda a adormecer, me afastando então, por horas breves, dos assomos de pesadelos que tenho desperto, e que espreitam a minha mente como um animal esperando para devorar uma pobre vítima. 

Eu tento meu melhor, mesmo que não haja nada de bom pra continuar tentando, mesmo que eu já não acredite que algo possa melhorar. Me vejo esquecido, trocado, traído, e já confuso demais para saber se esse inferno pelo qual caminho tal qual Dante, sem interferir mas apenas observando, assistindo aos sofrimentos e divertimentos dos demônios, é real ou apenas fruto da imaginação da minha pequena mente distorcida. 

A gente tenta porque não tem outra opção, já que morrer é causar dor demais. E essa é a minha sina: contemplar essa existência perpetuamente, com sua melancolia, seus apetites bestiais, com a vagarosa depressão que me destrói. Esses aspectos melindrosos da existência sem essência me consomem e a cada dia me convenço mais que tudo também deveria deixar de existir. 

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