quinta-feira, 19 de maio de 2022

Mercúrio

Sei que isso é culpa da minha instabilidade, é por esse motivo que eu estou sozinho. É por isso que meus amigos foram embora, um a um, porque eu demandava demais de cada um deles, exigia de todos o mesmo que exigia de mim. Eu sempre fui um peso, pra todos. Eu ainda sou um peso para os meus pais e para os amigos que ficaram, eu ainda tenho altos e baixos e não tenho todas as respostas de que eles precisam. 

E isso porque eu sou assim, um descontrole só. Demoro a me irritar mas quando me irrito tomo decisões impulsivamente e não consigo voltar atrás e isso vai me deixando cada vez mais sozinho. Vou vendo as pessoas indo embora, partindo, como se eu vivesse numa estação de trem e a cada dia alguém entrasse num daqueles vagões para nunca mais voltar. Ás vezes vejo um ou outro rosto conhecido do outro lado da plataforma ou passando rapidamente pela janela de um vagão que começou a andar e que pode nunca mais voltar...

É assim que me sinto quando penso em todos que se foram, quando me disseram que a dificuldade que eu tinha de manter relações constantes vinha das minhas mudanças de humor por causa do Transtorno Bipolar e eu achei que conseguiria superar isso, mas na verdade eu só não queria aceitar que as pessoas já estavam indo embora da minha vida há muito tempo e eu não estava era percebendo o motivo. Eu fico parado vendo as pessoas irem embora, passo a passo e, de verdade, eu tô esgotado. E elas continuam me dando as costas, e eu não sei mais o que posso fazer pra mudar isso, é algo fora de meu poder, mas ainda dói, dói demais cada vez que vejo alguém virar as costas e desaparecer. 

Eu sinto como se estivesse perdendo tempo, e eu o vejo passar ante meus olhos sem que eu consiga contê-lo entre meus dedos. Imagino o mundo lá fora, tantas pessoas e tantas possibilidades, e eu fechado aqui, dopado, dormindo por dias inteiros com medo do que pode acontecer se colocar os pés pra fora. Imagino se o meu príncipe não pode estar por aí e eu só não o encontro porque estou trancado em mim mesmo aqui. E parece que jogaram a chave do cadeado fora...

Não parece que sentem a minha falta, mas o que eu esperava? Ninguém é insubstituível. Esperar que alguém sinta minha falta é apenas um grito desesperado do meu orgulho mais profundo. Por outro lado eu, oficialmente, sinto falta de algumas pessoas, alguns abraços. Sinto falta de caminhar segurando sua mão, de deitar em seu peito florido, de ouvir histórias sob a luz da lua...

É uma noite de sexta, e estou sozinho no quarto, esperando o sono chegar. Já sinto a melancolia retornando, e sei que amanhã provavelmente vou dormir o dia todo. Vi a foto de um antigo conhecido mais cedo, ele cresceu e está lindo, ver seus olhos de novo me fez sorrir e querer me aproximar dele de algum jeito, mas então eu sorri novamente e me fechei sabendo que isso não vai me levar a lugar nenhum, ele não é pra mim, ninguém é. 

Pra mim tudo se tratava de algo como o destino e as escolhas de cada um, caminhos que naturalmente se afastam. Mas hoje eu sei que não é assim, a culpa é minha por ser tão volátil, por mudar da água ao fogo tão rapidamente, por reclamar de tudo. E apenas uma vez eu queria ficar estável, conseguir ser como os outros, que não mudam tanto assim, que não acordam dispostos apenas para querer voltar a dormir quando chegar a tarde. Mas eu não tenho poder nenhum sobre isso, quando menos vejo já mudei e já estou me sentindo como outra pessoa, já estou me transmutando, eternamente mercúrio, passivo de todas as transformações.

É como se universos inteiros fossem continuamente criados e destruídos dentro de mim, numa eterna sucessão que nunca finda, sempre preso em algum ciclo, sempre acorrentado a existência, sempre em algum dos mundos, sempre tentando recomeçar. Samsara. Inferno. Ourobouros. 

“ (..)Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo (..)”

Fernando Pessoa

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