quinta-feira, 5 de maio de 2022

Veneno

Eu sei bem que tenho me matado aos poucos, acho que é porque não tenho coragem de fazer isso de uma vez só. Tenho medo que minha mãe sofra se me perder de uma vez, por isso eu faço com que ela perca um pouco a cada dia. E por isso eu vou me afastando, cada dia tomando mais remédio, dormindo mais, mais distante, falando menos, matando não só meu corpo mas também a ela, um pouquinho de cada vez. Aos poucos dizendo adeus. Talvez a morte não seja tão assustadora quanto dizer adeus. E então eu vou me perdendo na letargia de um sono profundo que eu sei que destrói tudo dentro de mim. Já sinto as dores dos efeitos colaterais dos remédios, e eu sei que meu corpo já não aguenta mais, e eu continuo insistindo, porque meu coração e minha mente também já não aguentam mais e cada dia acordado é uma tortura. E poucos percebem isso. Será que aqueles que me veem sorrindo ou resolvendo com calma os problemas da sacristia imaginam que eu estou me despedindo lentamente? É claro que não, mas cada dia pra mim é um adeus diferente, e a cada dia sinto minha mão mais fria, mais próximo do fim, mais próximo de retornar, finalmente, ao nada. O meu sorriso esconde o meu desejo de retornar a inexistência, e esconde o desespero que é estar consciente do próprio ser.

Depois de dormir mais um dia inteiro, mesmo tendo prometido a mim mesmo que não iria repetir o feito tão logo, eu me sinto bem, calmo, sem aquela sensação de extremo mal estar que tinha pela manhã, quando decidir que esse dia não valia a pena viver. Mas eu sei bem o preço que isso tem, sei bem que a cada tomando tanta coisa pra dormir eu venho destruindo meu organismo, mas o que eu posso fazer? Eu simplesmente não consigo mais viver todos os dias acordado. É desesperador sequer cogitar essa ideia. Não há nada que me faça querer ficar acordado, não há nada que me faça querer viver todos os dias. Tudo o que há em mim é uma imensa desesperança, num vazio que parece não ter limites. Me encontro numa tensão, minha vontade se vê arrastada pela lama e a cada dia eu tomo mais do veneno que pode me levar de volta para o lugar de onde vim. 

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