domingo, 15 de maio de 2016

Changin' Cap. 04, Adaptação

04. Adaptação

Não tive uma noite muito agradável, fiquei inquieto o tempo todo, imaginando o dia seguinte. E a cama espaçosa e vazia era deprimente. Enfim amanhecia eu pulei direto no chão. Correndo para um relaxante banho quente na esperança de que ele pudesse me acalmar.

Eu sempre fora muito inseguro quando o assunto era escola. Talvez pelo fato de ter sido atormentado a vida toda e de ter sido perseguido pelo bullying, eu sempre odiei primeiro dia de aula, era uma convenção social completamente constrangedora e trivial, desnecessária, ainda mais dessa maneira, no meio do semestre.

Tomei o café rapidamente e me concentrei em encontrar a roupa ideal, para um rapaz de dezesseis anos eu era preocupado demais com a imagem. Certamente que eu tentaria ignorar os olhares estranhos, mas também era verdade que eu adorava ter as atenções voltadas para mim. Acabei escolhendo uma camisa branca com uma grande listra branca do lado, uma calça preta estilo Skinny e amarrei o cabelo com o tecido creme, assim como o Sr.Kazuki fazia, e prendi os Sinos de Gato com os fios de Koto da técnica Fuchoin no cabelo, próximos da mão direita. Eu não precisaria deles, claro, mas era atitude básica de um Mestre. Eu adorava ser chamado de Mestre...

Andei, com um pouco de relutância, pelas sinuosas ruas até a escola, havia várias pessoas do lado de fora, e praticamente todas se viraram para me olhar quando eu cheguei. Das duas uma, ou eu era notícia no pedaço, ou eu era mais esquisito do que pensava. Aposto na segunda.

Fui rapidamente para o interior do prédio. Segundo os papéis que minha mãe entregara eu estava na sala de número 2C, que ficava no segundo piso. Não foi difícil localizar a classe depois que eu consegui me desvencilhar da multidão de alunos andando desordenadamente nas escadas. Sentei-me ao fundo e desejei que a aula começasse logo, ou que ao menos chegasse mais pessoas, pois os únicos na sala eram eu e mais três aluno, que me encaravam de forma indelicada, com uma expressão que mesclava a confusão e a graça - Pelo amor do Profeta, meu cabelo não era assim tão diferente.

Felizmente não foi necessário esperar muito tempo, pois uma professora entrou na sala alguns minutos depois com vários alunos atrás dela, alguns ofegantes por terem subido as escadas correndo. Não entendi qual era a necessidade de uma escola tão grande se não tinham tantos alunos assim. Eu me lembrei de ter falado com minha mãe sobre isso depois que voltei da papelaria outro dia e ela disse que nesse turno provavelmente não havia mais do que setecentos alunos, o que era pouco, quando comparado com minha antiga escola, que tinha esse número somente na minha série.

A professora que acabara de entrar olhou para mim um pouco confusa, como se estivesse tentando se lembrar quem eu era, os outros alunos que notaram minha presença estavam simplesmente me encarando. Eu devia estar desenvolvendo alguma mania de perseguição.
-Muito bem, você aí atrás –ela apontou para mim com um dedo pequeno e gordo, que estava com um grande anel, aparentemente pequeno demais- Como se chama?

-Meu nome é Kaoru –disse me levantando.Todos os alunos se viraram para me olhar.

-De onde você veio? –Seu tom de voz era carinhoso e maternal, ela me lembrou uma versão baixinha e meiga de minha mãe.

-De uma escola do Rio - disse procurando ser educado e respeitoso com ela.

-Pois então seja bem vindo, conterrâneo, sinta em casa aqui –disse ela mais uma vez extremamente educada- Eu me chamo Márcia, e serei sua professora de Gramática e Literatura.

-Obrigado - disse, me sentando.

A minha primeira impressão sobre aquela senhora estava correta, seu método de ensino era calmo e compassado, e explicava cuidadosamente os tópicos da matéria que a turma estava vendo. Como eu pensara, aquela escola estava bem atrasada com relação á conteúdo se comparada com minha escola no Rio. Mas eu não devia ficar fazendo comparações.

Algumas das aulas seguintes foram tão agradáveis quanto à primeira. O professor de Geografia e Filosofia era um senhor baixinho e gordinho que contou algumas piadas, talvez porque ele percebeu que estava dando Geografia em câmera lenta. A professora de Física era uma mulher séria, quase não notou minha presença na sala, mas explicava muito bem.

No entanto eu senti que poderia ter problema com o professor de matemática, pois nós não fomos muitos com a cara um do outro.

Depois de três aulas uma sirene tocou alto, anunciando o início do intervalo, pois a maioria dos alunos saiu correndo da sala antes do professor. Eu estava decidido a ficar bem quieto onde estava. Depois de alguns minutos eu percebi que uns alunos passavam pela porta, olhavam dentro da sala e depois se viravam sorrindo. Unf. Eu sabia que seria assim. E teria que esperar a semana toda ainda para que eu tivesse a companhia do Shinitt. Ele não teria problema em se adaptar, era bonito, inteligente e um garoto perfeitamente normal, a única coisa que falariam dele é que ele namora comigo. Pensando bem ele teria alguns problemas sim. Fiquei, pensando por vários minutos em varias coisas, mudanças, Shinitt, escola, Shinitt, casa nova, Shinitt. E nem percebi que acabei me desconcentrando completamente de tudo ao meu redor.

-E então, como está sendo seu primeiro dia? –Eu olhei assustado procurando quem falara, me descuidara, isso era atípico, o que estava acontecendo comigo ali?

-Bem, mais ou menos – Respondi á garota que conheci na loja um pouco tarde demais pois ela me olhava frustrada.Aparentemente para tornar a conversa mais pessoal ela, ainda sentada, colocou as mão na mesa onde eu estava e aproximou o rosto de mim.

-Há você se acostuma com esse lugar – Ela disse em um tom de voz diferente do usara comigo da outra vez, agora era carinhosa, eu tive a certeza que aquele dia ela realmente me paquerara...

-Não é isso. Sinto falta de alguém... – Eu disse com um pouco de amargura na voz, detestava ficar sozinho em um lugar que não conhecia.

-Humm, então é isso. Você parece mesmo alguém que teria namorada.

-É, mais ou menos isso  -Decici  omitir essa parte, não enfrentaria isso sozinho de jeito nenhum – Você não me disse seu nome.

-E nem você o seu. Mas eu me chamo Núria – Ela disse dessa vez usando o mesmo tom petulante do outro dia.

-Eu sou Kaoru. Desculpe-me, não tinha visto que você estava do meu lado  - Disse tentando me desculpar pelo fato de ter ficado três horas ao lado dela sem perceber.

-Não tem problema, você estava nervoso pelo primeiro dia. Mas eu aceito suas desculpas se me convidar para um café – Dessa vez estava na cara que era uma cantada, os olhos dela brilhavam e prestando atenção eu percebi que seus batimentos e sua respiração aceleraram.

  -Tudo bem então. Depois da aula, pode ser? Mas você escolhe o lugar, porque eu não conheço nada aqui –Disse num tom preocupado.

-Claro, tem um lugar aqui perto que é ótimo. Achei que alguém como você conheceria todos os bons lugares da cidade... –Ela disse de maneira que misturava a petulância, como se estivesse se divertindo comigo.

  -Não, eu não gosto muito de sair de casa – Disse tentando evitar situações futuras em que ela pudesse me chamar para sair de novo. A sirene tocou alto novamente. Francamente, tem que ser muito sádico para chamar os alunos com um som tão estridente. Mas talvez só eu percebesse como o barulho era alto, parece que meus sentidos voltaram.

-Ok, então ta combinado, depois da aula você me conta mais sobre suas preferências e quem sabe sobre sua casa.

-Tudo bem – Eu disse, me desligando da conversa e me concentrando nos sons ao meu redor: passos, conversas animadas, cadeiras e mesas sendo arrastadas no andar de baixo. Eu estava concentrado de tal modo que consegui até mesmo contar claramente a quantidade de pessoas que estava no prédio, levei alguns minutos mas consegui, setecentas e quarenta e duas pessoas, incluindo alunos, professores, faxineiros e outras pessoas cuja função não identifiquei. 

-Ei, Kaoru, ei – Alguém sussurrava rapidamente ao meu lado.

-Hum, o que? – Disse confuso.

-O professor.

Olhei para frente para ver o homem que me encarava com uma expressão séria. Aparentemente eu me esqueci da aula e ele me perguntara algo, possivelmente meu nome.

-Desculpe senhor, poderia repetir? – Pude ouvir claramente várias risadinhas abafadas.

-Claro rapaz, obviamente você tem coisas mais importantes a pensar, não é?

-Não senhor, me desculpe, eu só estava...

-Basta. Como se chama?

-Kaoru.

-De onde você veio Kaoru?

-De um colégio do Rio.

-Pois bem, vejamos se o ensino no Rio é melhor que o daqui. Responda-me: O que é uma Torikabuto? –Pude ouvir, claramente também alguns suspiros de surpresa, aparentemente ninguém da sala sabia a resposta, pois o ritmo de todas as respirações mudaram, inclusive a do professor, que era agitada e descompassada, como algo o  tivesse impedindo de respirar normalmente.

-É uma flor asiática da espécie Aconitum carmichaelli . Sua raiz é utilizada desde a antiguidade como anestésico, analgésico, sedativo, vasodilatador, anti-inflamatório e imunoestimulante, além de causar hipertensão arterial. A medicina tradicional chinesa utiliza essa planta para tratar de problemas circulatórios e gripe simples. No Japão feudal era uma das plantas usadas pelos ninjas, conhecidas como shinobibana, devido a suas propriedades venenosas, já que doses pequenas podem ser letais e provocar ataque cardíaco ou até mesmo AVC em uma pessoa saudável. – Assim que eu terminei de falar percebi que todos os alunos se viraram para mim e até mesmo o professor estava boquiaberto.

-Muito bem, parece que agora temos um espertinho entre nós –Disse ele rindo na minha cara, isso me irritou.

-Não me consideraria espertinho. Apenas inteligente –Ele ficou sério de repente.

-Não fale comigo como se fosse melhor do que eu.

-Então não me faça perguntas cujas respostas estão no glossário de um Mangá de seu filho.

-Pois bem então, vamos dar continuidade a aula –Disse ele desconcertado. Aparentemente ele lecionava Biologia e não voltou a olhar para mim até o fim do quinto tempo, pois era uma aula dupla. 

     A última aula do dia era de Ed. Física, mas somente teoria. Pena, pois os alunos daqui se surpreenderiam com o que um aluno da Fuchoin era capaz. Eu e a garota chamada Núria saímos da sala assim que a maioria dos alunos já tinha ido embora depois que o sinal tocou, novamente alto demais.

Olhando para o rosto dela percebi que sua expressão estava muito feliz. Me perguntei se ela tinha quedas por garotos de cabelo comprido. Se fosse isso, eu seria perfeito para ela, tinha cabelo de sobra. Contudo quando saímos da escola comecei a me preocupar se ela achava que aquilo fosse uma espécie de encontro. Se ela achasse que sim eu poderia ter problemas para explicar certas coisas a ela.

Caminhamos lentamente pelo lado esquerdo da escola onde havia uma rua comercial, imaginei, ali tinha até mesmo algumas lojas maiores, que eu imaginava não ter ali, mas então eu pensei que aquela pudesse ser uma cidade em desenvolvimento, como o país. Eu obviamente não conhecia essa parte da cidade, e é claro que Núria percebeu isso, pois estava sorrindo para mim.

Ela apontou para um pequeno restaurante do lado inferior da rua depois que passamos por umas três lojas. Pensei que depois deveria voltar ali sozinho, se tivesse sorte não precisaria me deslocar até outra cidade para comprar roupas. Entramos e nos sentamos em lugar mais afastado dos demais, se considerar que o local estava vazio isso não era necessário. Logo percebi, pelas poucas pessoas ali, que aquele era um ponto de encontro para namorados. Preocupei-me ainda mais se aquilo era um encontro pois se fosse eu não imaginava desfechos muito agradáveis para aquele.

-O que achou daqui? – Perguntou animada, depois de pegar o cardápio em cima da mesa. O lugar estava ornamentado com vários quadros de rosas nas paredes e as mesas tinham toalhas com pequenas florzinhas rosa bordadas, senti enjôo ao prestar atenção nesse detalhe.

-É bem bonitinho – Respondi mentindo convincentemente. Ela me olhou levantando uma sobrancelha, como se “bonitinho” não fosse resposta para um menino, e não era, eu deveria ser mais convincente em minha atuação se quisesse que aquilo não terminasse como um escândalo que detonaria minha reputação antes mesmo de eu me adaptar aquele lugar – Quer dizer, aposto que muito casais vêm aqui.

-Acho que sim, mas me diga, o que você esta achando da cidade? – Perguntou parecendo interessada.

-É um lugar bem calmo, quer dizer, se comparado ao agito do Rio... – Talvez eu estivesse somente imaginado a idéia do encontro, aquilo não me parecia que levaria mais do que a uma conversa entre amigos agora.

-Deve ser. Humm – Ele pensou por um instante – Por que você saiu de sua antiga escola?
-Bom, não foi por causa da escola. É que eu morava com o meu pai, aí aconteceram algumas coisas e... enfim, eu achei que seria bom passar um tempo com minha mãe.

-Humm, eu a conheço?

-Acho que não. Ela não trabalha na cidade. Mas e você, sempre morou aqui? 

-Não, eu vim para cá quando tinha seis anos, meus pais são donos da papelaria em que eu trabalho.   Depois que viemos para cá eles abriram uma segunda filial para poderem ficar mais perto do trabalho – Por algum motivo eu imaginei Núria usando uma roupa de executiva fazendo ela parece com uma empresária japonesa tarada e com um fetiche bem sombrio  - Agora eu me lembrei, aquele dia você estava comprando matérias para duas pessoas, eu reconheci algumas coisa lá na aula, o que significa que uma dessas pessoas era você, e quem era a outra, seu irmão? – Droga, eu não percebi como ela era detalhista.

-Humm, bem... – Por sorte o me celular tocou na hora, a quem quer fosse, muito obrigado. Núria me observou com curiosidade, como a música tema era ANGELUS de Hitomi Shimatani eu imaginei que ela nunca havia ouvido aquilo.

-Eerr, alô? – atendi sem ao menos olhar quem era.

- Kaoru? Filho? Como foi seu primeiro dia?

-Ha, oi mãe, foi muito bom, obrigado.

-Fez algum amiguinho?

-Acho que sim, mas não fale dessa maneira...

-É brincadeira... Mamãe só queria dizer um oi... Tchauzinho amor...

-Ta ok, ESPERA – Tuuu, ela já desligara, queria prolongar um pouco a conversa com ela...

-Humm, me desculpe por isso, você sabe como é... – Enquanto eu falava no celular ela havia pedido dois shakes para nós, esquecei de dizzer a ela que detestava morango.

-E se sei, minha mãe me deixa maluca as vezes... –Sorte, ela aparentemente esquecera a história dos materiais.

-Nossa o que ela faz?

-Aquela mulher é super protetora. Não consigo dar um passo sem que ela pergunte aonde vou.

-Aposto que ela não faz por mal... – Disse, para “alimentar” a nova conversa.

-Humm, eu acho que faz sim... – Ela falou sorrindo.

-Não devia se preocupar muito, pais que protegem os filhos demais ou exigem demais dles são umas das principais causas dos suicídios adolescentes... – Ela me olhou como se eu estivesse falando em um latim capenga,Por Favor essa cidade não tem nenhuma cultura.

-É, acho que são. Isso me lembrou – Há não – Aquela resposta que você deu ao professor de Biologia aquela hora – Ufa, então era isso. Ei, aquele Mané dava aula de biologia? – Foi bem legal, geralmente ninguém sabe as respostas das aulas dele.

-Mas aquele era uma pergunta boba – Eu sou de mais ou não sou???

-Pode ser pra você, mas ninguém sabia, e ele já havia feito ela pra turma antes –Eu dei um gole logo no shake enquanto esperava que ela continuasse a falar, mas ela simplesmente ficou olhando para mim.

-humm, o que foi? – Perguntei confuso, na defensiva.

-Nada, é que... você é bonito... –Droga, de novo.

-Núria, eu... Eu tenho que ir, preciso preparar o almoço para minha mãe, ela vai chegar cansada...Me desculpe...

-Não, não tem problema, eu entendo. Está quase na hora de eu ir trabalhar também...

-Então ok, nos vemos amanha na escola certo? – Disse me levantando e deixando o dinheiro sobre a mesa.

-Eu pago metade.

-Nada disso, na próxima talvez. E então, amanha? Na escola? – Estava tentando deixar claro, sem muito sucesso, que deveríamos nos ver apenas na escola.

-É acho que sim.

-Algum problema?

-Não, não é isso... – Ela sorriu, mas de forma não muito convincente...

-Ok, até amanha então – Disse saindo e acenando devagar, sorrindo para que ela não se sentisse mal.

Caminhei normalmente, em direção a escola e depois para casa, imaginando o que exatamente acabara de acontecer. Cheguei a conclusão de que ela só queria ser simpática comigo. Mas estava na cara que se eu quisesse ela seria outra coisa também. Sorri comigo. Shinitt teria sorrido também se estivesse aqui. 

O dia estava claro, pela minha experiência não haviam muitos dias assim aqui. Uma briza soprava lentamente em minha direção, eu podia sentir o leve aroma das plantas dos jardins por onde passava e também identificar o cheiro de comida sendo fita naquele momento pelas casas ao meu lado. Por algum motivo pensei involuntariamente em minha antiga casa, minha antiga rua e automaticamente minha antiga escola. Havia muitas diferenças, e mesmo considerando o fato de que eu adorava cidades movimentadas, mas eu poderia me adaptar ali, poderia me sentir em casa, talvez chegasse até a chamar aquilo de lar. Aquilo me parecia um lugar para recomeçar.

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