quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

Fulgor divino

Sinfonia n.° 9 em ré menor, op. 125, Coral
Ludwig van Beethoven

I. Allegro ma non troppo, un poco maestoso

O sol surge lentamente na linha do horizonte, tingindo de dourado e clareando aos poucos o véu de veludo azul que recobria a noite. As trombetas dos anjos anunciam a chegada do rei, que vai aos poucos tocando a todas as criaturas com seus raios, levando calor e abraçando a tudo quanto existe. Sua luz chega até os cantos mais remotos da terra e todos, homens, plantas e animais sentem o calor do astro os tocar.

Depois de uma noite fria, o toque morno do sol acaricia delicadamente a pele de quem dorme. Entrando pelas frestas das janelas, ou através das cortinas abertas que voam sob a brisa fresca da manhã as pessoas recebem esse beijo de luz, que toca os corações e acorda as almas para um novo dia. 

Despertando de seu sono olhos se abrem aqui e ali, e ouve-se o bocejar de crianças. Camisolas de seda e camisas de linho caem por sobre ombros ainda dormentes e pendem por bustos que acabam de acordar. Braços se erguem, músculos retesados se esticam, enquanto Apolo cruza os céus anunciando a todos que um novo tempo chegou.

O que esse dia nos reserva? Suspense...

Os pássaros cantam aqui e acolá, e acordam as galinhas em seus poleiros. No bosque, pequenos animaizinhos correm e pululam de alegria, o farfalhar delicado das folhas secas no chão e dos arbustos dão nos conhecer que muitos ali acordaram. 

Uma vez no centro do mundo, o astro rei impera gloriosamente sobre todas as criaturas, e uma vez mais reafirma sua soberania, dando a todos um riso de terna confiança: mais um dia, uma nova esperança! Todos se ajoelham diante dele, e a ele prestam culto vivendo, trabalhando, sorrindo laboriosamente  sob o olhar atento de tão majestoso monarca. 

O sorriso daqueles homens que na terra cantam é a paga que ele recebe pelo seu serviço. O suor derramado com paixão, a alegria dos homens é a alegria que preenche a terra, como o calor do sol preenche o mundo, preenchendo o coração de todos com uma força inimaginável. Essa alegria, esse calor, vai penetrando a pele até o tutano, e transborda num grande sorriso, eis o poder do sol, a alegria!

II. Scherzo

No ritmo diário os homens continuam a sua labuta. No ritmo diário, em meios as vicissitudes da vida os homens continuam sorrindo em meios as tempestades, e elas não conseguem dominá-los. A alegria que preenche seus corações é a calmaria que abafa o som de qualquer trovoada. 

Marchando rapidamente pelos becos iluminados, pelos corredores das fábricas, pelos campos floridos e recheados de frutas as pessoas sorriem. Sorriem pois a vida lhes sorriu primeiro, sorriem pois um novo dia nasceu, uma nova vida nasceu. Sorriem pois na varanda de uma antiga casa uma senhora rodeada pelos seus netos lhes conta histórias engraçadas da juventude, de sua mocidade virginal. Numa rua próxima soldados caminham rapidamente, a guerra acabou! Verão suas esposas e abraçarão novamente as suas crianças, consolando suas mães aflitas.

Os cães brincam com os gatos no quintal. Correm entre as roupas que secam no varal. As alvuras são manchadas pelas patas rápidas que cruzaram o pasto. As mulheres não se deixam abater pela rotina pesada. Cuidam dos filhos, das casas, das hortas, mas percebem que o que fazem o fazem por amor, e por isso o sorriso em seu rosto manchado pelo suor. 

Somos transportados pelas mais belas paisagens, nos altos montes onde o sol brilha com mais força, por campos de tão grande tamanho que chegam a perder de vista. A relva verdinha, da cor da esmeralda, as flores de todas as cores, amarelas, rosas, vermelhas, brancas, brilhando delicadamente. A água de um regato, cristalina e fresca, refletindo a figura daqueles que sobre ela se debruçam para aliviar a sede. As borboletas que voam por todo lado, junto com as abelhas e os pequenos pássaros, que preenchem o ar com seu doce canto.

Onde quer que se olhe está a alegria. As cores, a delicadeza, a magia...

III. Adagio molto e cantabile

Uma alegria diferente recai por sobre alguns. É a companhia, que torna as lutas mais brandas e as rotinas mais doces. 

Uma alegria diferente se deita sobre alguns. É o amor, do amado e do amante, que tinge de rosa o entardecer e cruza o horizonte como uma estrela cadente, indo de um extremo a outro em poucos instantes. 

O cor de rosa enche o mundo, outrora repleto do dourado apolíneo, de uma ternura sem igual. É o toque delicado de uma mão por sobre o ombro, um abraço sincero, um tocar dos lábios na testa ou uma simples troca de olhares. 

Os dois se deitam, lado a lado, as mão segurando-se firmemente. Os olhos se fecham num sorriso. O mundo todo poderia caber ali, entre aqueles dedos entrelaçados. O amor toma conta do mundo, a ternura recobre a tudo de uma delicada fragrância. Seria o cheiro de rosas? Oh não, isso meus amigos, é o amor!

Mas lá no andar debaixo uma marcha militar os convida: os amigos chegaram! As núpcias tem de esperar, é hora de compartilhar as alegrias com os convivas. E dessa, não apenas os homens participaram, mas toda a criação veio para contemplar, contemplar a verdadeira alegria!

IV. Recitativo

Descendo as escadas, os amigos se encontram vigorosamente num rompante. O calor do sol invade novamente a face ruborizada daqueles ali presentes. As risadas também se unem, e por fim, descendo as escadas, o amor que lá em cima ficou. 

Todos estão aqui. Comecemos a celebrar: a alegria!

Não há na terra alegria que se possa comparar. O coração se inflama, a alma se rejubila, tamanha a força desse sentimento que transborda dentre os homens. Ouvimos novamente o lento despertar do dia, a magia das cores e o carinho do amor que cativa.

E finalmente termina a alegria dos homens, para que eles então conheçam a alegria dos céus. Maior, perfeita. Ela começa lentamente, lá no horizonte, como o sussurrar de pequenos anjos que aos poucos se aproximam. 

É o Apocalipse? Decerto que esse mundo não pode suportar aquilo que de mais perfeito há nos céus. Mas a destruição não tem lugar aqui, não, antes disso o todo é preenchido pelo ressoar das primeiras notas do paraíso. O mundo já não existe mais, mas algo ainda melhor surge a nossa frente. 

Grandiosos portões de ouro puro, mansões e salões, tudo repleto de miríades e miríades de pedras preciosas das mais belas cores. O céu não é apenas um azul salpicado de branco, senão que abriga o rosa, o dourado, o verde, numa profusão perfeitamente pintada pelo mais talentoso dos serafins. 

Conduzidos por uma grandiosa estrada, pavimentada de diamantes, os anjos os levam aos pés de um grande trono. 

Os homens são, pouco a pouco, preenchidos pelos amor, já não se dão conta mais de estarem na terra, senão que flutuam como se estivessem nas nuvens, até que explode o coro dos anjos, tomando a todos num arrebatamento idílico. 

Eis que finalmente fomos levados a mais alta das virtudes: a beatífica visão do mundo perfeitamente repleto de alegria. Os campos elíseos onde todos gozam das alegrias mais doces. Tomados então pela mais perfeita criação divina eles, os homens, as mulheres, as crianças, os santos, os anjos, entoam este canto:

Oh amigos, mudemos de tom!
Entoemos algo mais agradável
E cheio de alegria!

Alegria, mais belo fulgor divino,
Filha de Elíseo,
Ébrios de fogo entramos
Em teu santuário celeste!
Teus encantos unem novamente
O que o rigor do costume separou.
Todos os homens se irmanam
Onde pairar teu vôo suave.
A quem a boa sorte tenha favorecido
De ser amigo de um amigo,
Quem já conquistou uma doce companheira
Rejubile-se conosco!
Sim, também aquele que apenas uma alma,
possa chamar de sua sobre a Terra.
Mas quem nunca o tenha podido
Livre de seu pranto esta Aliança!
Alegria bebem todos os seres
No seio da Natureza:
Todos os bons, todos os maus,
Seguem seu rastro de rosas.
Ela nos dá beijos e as vinhas
Um amigo provado até a morte;
A volúpia foi concedida ao humilde
E o Querubim está diante de Deus!

Alegres, como voam seus sóis
Através da esplêndida abóboda celeste
Sigam irmãos sua rota
Gozosos como o herói para a vitória.

Abracem-se milhões de seres!
Enviem este beijo para todo o mundo!
Irmãos! Sobre a abóboda estrelada
Deve morar o Pai Amado.
Vos prosternais, Multidões?
Mundo, pressentes ao Criador?
Buscais além da abóboda estrelada!
Sobre as estrelas Ele deve morar.

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