sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

Boa Noite

Acordei com o barulho metálico do portão se abrindo, a chave sendo colocada na porta e sacolas sendo carregadas com pressa. Depois disso houve silêncio. Parei de prestar atenção nos barulhos fora do meu quarto e foquei em mim, coloquei a mão direita ao redor da minha garganta, toda a dor que sentira ali sumira. Na noite anterior eu tive uma crise de pânico antes de dormir. Mentira para minha mãe que estava bem e vim para o meu quarto. Pelo que pareceram muitas horas então eu lidei com a dor intermitente nos músculos do pescoço, a boca travava e minha garganta soltava ganidos involuntários, espasmos que iam e vinham, com a frequência de um a dois minutos, e aquela tortura permaneceu, com a música sendo minha única companhia naquela noite escura.

Me lembro vivamente de ter conseguido levantar, esquentar um grande copo de leite e tomar com um relaxante muscular que encontrei no fundo da minha caixa de remédios. Voltei pro meu quarto e tentei fazer alguns exercícios para aliviar a dor, que funcionaram por alguns instantes antes da dor voltar e eu me virar, me contorcer de um lado para o outro enquanto o pânico tomava conta de mim. Lembro de ter implorado ajuda a Deus e aos anjos, e um pouco depois disso, os remédios finalmente fizeram efeito, e eu adormeci sem forças pra recomeçar a música que tinha acabado. 

Mesmo sendo manhã já faz calor, me lembro que essa era a previsão para hoje anunciada no jornal da noite. Droga, odeio calor. Continuei deitado, tentando agora prestar atenção na voz do meu professor que traçava um panorama histórico sobre o impacto da mídia nas politicas de segurança pública mas não consegui entender tudo o que ele disse, distraído pelo barulho que as pessoas da minha casa faziam perto da minha janela. Barulho de plástico sendo amassado e de algo metálico golpeando de modo intermitente, e assim como a crise de pânico todo esse barulho pareceu durar horas, e eles pareciam contentes e satisfeitos com todo o barulho produzido, como se fossem inimigos declarados do silêncio e de qualquer noção de ordem ou tranquilidade. 

Levantei pra escrever incomodado com o barulho que agora vinha de dentro de casa. A TV ligada como se todos precisassem ouvir o jornal anunciando as desgraças do dia, a batedeira parecendo trabalhar numa confeitaria 24h e eu tentando me concentrar na música que, agora pela manhã, eu conseguira religar. 

Fui interrompido pelo barulho da água escorrendo pelas paredes do meu quarto, oh quanta miséria nessa vida! E então tomado de novo por aquele espírito da experiência gnóstica universal: o sofrimento num mundo hostil em que as coisas dão errado nos mais mínimos detalhes e não há possibilidade de que seja diferente. Desde o barulho incômodo na manhã à tarde puxando água que jorrava da parede numa torrente quase infindável, fruto duma infiltração maldita, me fazia refletir na baixeza das coisas, me fazendo sonhar com algum céu metafísico onde a realidade seja diferente desta. 

Agora já é noite, e tem uma festa acontecendo enquanto eu me escondo no meu quarto. Simplesmente não é um ambiente pra mim. Tentei socializar, com a ajuda de um pouco de álcool e foi até meio divertido por alguns momentos, mas a superficialidade desse ambiente não é agradável. Me sinto um peixe fora d'água. Voltei então ao reduto seguro do meu quarto. 

É mais certo que eu fique aqui, e espere meus remédios fazerem logo efeito e eu durma profundamente, e finalmente, depois de um longo dia. O efeito é lento, depois de uma breve euforia é como um pequeno pontinho enevoado que surge e vai crescendo dentro de mim, e conforme ele se espalha os meus sentidos vão se enfraquecendo e eu sinto que preciso fechar os olhos mais um pouco toma conta de mim. De fato é o momento mais feliz do meu dia, não há nada que se possa comparar. O barulho agora é do som alto, com a pior escolha de músicas possível, mas já não me incomoda, o nevoeiro começa a se espalhar. É a felicidade que se aproxima. Boa noite.

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