terça-feira, 3 de setembro de 2024

Catarse ou Purgação

Gosto como as músicas ajudam a criar certos ambientes nos quais nos sentimos mais ou menos confortáveis. Evito sempre músicas altas no geral, gosto da coisa mais ambiente, e minhas variações se dão então mais no estilo que me ajudam a manusear certos humores em dias mais complicados. 

Durante um dia da última semana eu precisei começar uma tarefa que, não só vinha adiando há muito, como percebi que ela seria ainda mais chata do que de costume. Escolhi então para ouvir o dia inteiro os meninos do Stray Kids. Embora goste bastante deles, admito que as músicas são, em sua maioria, agitadas demais para mim, até agressivas (no bom sentido), e isso me ajudou a criar certa disposição, aliado também a combinação dos óleos essenciais de menta piperita e laranja doce. O resultado foi uma atmosfera mais confiante, a atenção mais desperta, o trabalho fluindo com mais clareza. 

Em dias de mau-humor eu prefiro ouvir um pouco de rap, por exemplo, o TARA (que foi protagonista de dois BLs bem fofinhos) mas que tem uma fixação por bundas e seios fartos, então ele canta coisas como

"I like the way you walk in
Big fat ass I give her my ten
She could suck a soul out my ting"
(TARA)

Embora o conteúdo seja meio bobo, Tara parece um adolescente com os hormônios a flor da pele mas com uma voz grave o bastante para fazer rap e ser bem recebido por isso, mas gosto do estilo meio bélico que ele produz em mim, uma espécie de catarse ou purgação dos meus próprios sentimentos. 

Para hoje, embora eu acreditasse que deveria ouvir músicas ainda mais densas, como as sinfonias 5 e 6 de Mahler, acabei optando pelo Concerto para Piano N° 3 de Rachmaninoff, com Yunchan-Lim como solista, e o Concerto para Piano N° 1 de Chopin, por Seong-Jun Cho. Há algo nessas interpretações, ambas gravadas em concursos internacionais que me cativaram. Para além da aparência dos solistas, afinal Yunchan-Lim é um verdadeiro príncipe, mas a combinação entre as orquestras maduras, sob a regência de maestros experientes, e nomes de idade ainda terna, interpretando peças de uma profundidade emocional gigantescas. Não surpreendendo que essas peças figurem entre as mais executadas do repertório ocidental, mas, em especial o compositor russo, algumas das mais desafiadoras para o instrumento. 

Essa melancolia de ambas as peças. A depressão explorada ao extremo pelo russo e a melancólica visão dos campos de camélia na Polônia geram em mim uma calma. Afinal, meu coração tem estado em afetação constante, em sentimentos conflitantes, 

Em se tratando de Rachmaninoff, o seu 2° concerto foi um grande sucesso dada a profundidade melancólica do compositor em conseguir transpor os sentimentos de sua depressão profunda, após um colapso nervoso, nas partituras. Posso imaginar a plateia atônica assistindo aqueles golpes poderosos do início do primeiro movimento, seguindo do tsunami da orquestra: a depressão que tudo domina. Mas esse concerto é uma escalada, uma passagem do inferno e o purgatório ao céu, culminando nas notas derradeiras que declaram: eu venci. 

Mas em sua próxima obra ele decidiu explorar ainda mais esse lado, ainda tendo algo de triunfal ao fim, mas, de certo modo, se aprofundando nessa melancolia, expressa pela aura, pelo nevoeiro provocado pela orquestra. O que acompanhamos então é a intimidade desse compositor, que em cada nota depositou sua experiência, o seu vazio e até os momentos de maior agitação e desespero. 

Já quanto a Chopin, a contraposição entre piano e orquestra, a melancolia e a agitação do mundo, revelam um dilema comum aos artistas, almas capazes de registrar as experiências humanas mais profundas, em especial na música que nasce dos cantos mais profundos da alma. O homem contempla os longos campos de canola, uma memória de tempos mais simples e felizes, que me recordam aquelas paisagens de Combray descritas por Proust (não conheço muito da literatura polonesa para encontrar lá algum paralelo, fico com Proust mesmo). E, assim como Proust muitas vezes dilui a consciência dos seus personagens nas longas descrições que os cercam, Chopin também se perde entre sua história e a agitação da orquestra. Tudo é feito, no entanto, com tamanha delicadeza que o resultado são obras que, com um pouco de atenção, refletem o que acontece de real, dessa nossa dicotomia entre o que vemos, o que queremos, o que sentimos... 

Ambos parecem lamentar-se sobre seus instrumentos, e é belíssimo, cada nota soa como uma lágrima, um lapso ou fragmento de memória que bate à janela... São belas imagens. A música, sendo a arte que nasce da alma, é um bom refúgio. 

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