quarta-feira, 25 de setembro de 2024

Retrato da Batalha

"Estava sempre lendo para me livrar do tédio. Esse tédio, mais tarde, chamei de existência." (Sartre)

Acordei de péssimo humor, e ainda tenho que aguentar as convenções de abraços e beijinhos. Queria que minha expressão fosse suficiente para dizer "não se aproxime e fale somente o absolutamente indispensável." Mas parece que não é tão fácil assim. É claro que não estou com a mínima vontade de trabalhar, mas já deixei as coisas se acumularem por uma semana inteira, preciso dar um jeito nelas.

Nenhuma vontade.

Me lembro de algum ponto, algum momento, em que tive orgulho de trabalhar. Foi breve, eu sei, mas agora não há nem mesmo nenhum resquício disso. 

Tampouco quero voltar para cama. Hoje não quero café, chá, abraços e nem palavras de carinho. Tudo isso me parece vazio e sem propósito. Eu, na verdade, não faço ideia do que eu quero. A única coisa que sei é que, ao menos, não quero conversar, e seria bom se pudesse aproveitar o meu silêncio. Hoje, amanhã, sempre... Apenas na minha própria companhia e de uma música baixinha.

Disseram que estão preocupados comigo, mas acho que é tarde demais. Primeiro porque já sugaram tudo o que tinha de mim então, na verdade, estão preocupados com o que não podem mais ter de mim. Patéticos. Mas, de todo modo e francamente falando, é tarde demais, já não tenho salvação. Não há ponto de virada, não há nada nem ninguém que possa entrar em minha vida e girá-la num eixo de cento e oitenta graus. Essas coisas, o anjo salvador quando se está à beira do abismo, só existem em filmes. Na vida real a vida termina sem que ninguém repare, e só fazemos falta até jogarem a primeira pá de terra sobre nós.  

Acho que, se há uma virada de vida, é apenas aquela última gota a transbordar que possa nos fazer finalmente tomar a decisão de tornar o próximo momento, no último. E acredito que agora esse momento não deve tardar. Já sinto a mudança no ar, e não me refiro a chegada da primavera. Sinto aquele ar que senti quando me deixaram para trás, aquele ar de que esse lugar já não é mais o meu lugar. E que talvez eu não tenha lugar, mesmo que me esforce para ser o lugar de tantos. Sinto que a hora se completou: é hora de partir, já não há mais lugar para mim aqui. 

Marduk lutra contra Tiamat. O caos primordial que a tudo busca devorar, destruir, em confronto com a ordem que deseja se impor por sobre o cosmos, marcando o que deve ficar acima ou abaixo. Não me sinto mais parte desse confronto, senão que desapareci nas profundezas de Apsu.

Talvez meu interior seja um retrato dessa grande batalha entre as forças da ordem e do caos.

Não estou completamente depressivo, mas também não estou bem. Não sei o que é. Não sei nem o que sou. Talvez seja saudades. As coisas da alma são tão complexas. 

Enjoado, entediado. Não apenas do dia de hoje, mas do trabalho, dos amigos que não fiz e dos que se foram. Enjoado dessa vida miserável, enjoado dessa vida maldita. Enjoado dessa existência patética. Enjoado dessa rotina, enjoado do futuro, com nojo do passado. Enjoado de ser e de estar. 

Acordei de péssimo humor, e ainda tenho que aguentar as convenções de abraços e beijinhos. E parece que o dia será cheio.

"Não existe uma regra de ouro que se aplique a todos: todo homem tem de descobrir por si mesmo de que modo específico ele pode ser salvo." (Sigmund Freud)

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