segunda-feira, 9 de setembro de 2024

Pequena Miséria

“Bêbado”, Albert Anker

Madrugada silenciosa. 

A cidade inteira se prepara para acordar em algumas horas e iniciar mais uma semana de trabalho. Menos eu, que estou de folga, e até nisso parece que ando na contramão de todos os outros. 

Observei-o por um tempo hoje, a força dos braços alvos enquanto golpeavam o instrumento de madeira com força e ritmo. As veias à mostra por conta do casaco azul-claro puxado até pouco acima dos cotovelos, deixava aquela ação musical um tanto quanto sensual, mas provavelmente eu fui o único a pensar isso ali e, dada a grossura de seus óculos, duvido muito que ele tenha percebido meu olhar também. 

Mas, como nem tudo são flores, nem só dessa observação se fez minha noite, senão que também terminou com a confirmação de que ele não suporta a minha presença. Já havia notado que ele me ignorava sempre que estávamos próximos, mas cheguei a dar o benefício da dúvida para o fato de que nunca precisamos conversar realmente. Essa noite, mesmo rodeados de pessoas, onde ele devia estar bem mais confortável que eu ali, preferiu se afastar o máximo que pôde de mim. E, claro, creio que ninguém além daquela que foi cúmplice dele, tenha percebido. Até porque eu não fiquei ao lado dele por querer, senão que estava prestando mais atenção ao meu amigo do outro lado, com quem queria realmente conversar. 

É apenas uma percepção, sem importância, de um cara gato, porém idiota, pois eu nunca cheguei sequer a dar em cima dele para ser tratado assim, a menos que ele considere algumas curtidas no Instagram como flerte, o que reforçaria ainda mais seu status de idiota. 

Tirando isso, foi até uma noite divertida. Claro que ainda acho todas aquelas pessoas chatas e superficiais, mas, pelo menos, eu saí um pouco. 

Mas agora eu me arrependo menos de não ter ido na semana passada também. 

Me recordo que tinha prometido a mim mesmo que iria tentar mais. Disse que iria, por exemplo, assistir mais, tentar ler um pouco, ficar mais tempo acordado. Mas então chegamos aqui, chegamos a uma segunda preguiçosa e eu, de frente a televisão, não quero ver nada, não quero falar com ninguém. Quero apenas ficar deitado, no escuro, no silêncio, até que precise voltar ao inferno da agitação dos dias. 

Minha vida está uma droga. E eu não tenho nenhuma força ou vontade mudá-la.

Estagnei num emprego medíocre que não pode me valorizar. Não tenho feito amigos, muito menos um namorado, e as minhas dívidas se acumulam cada vez mais. Se, esse mês, eu deixei de pagar algumas para focar numa maior, no mês seguinte essas vão se acumular, e então vai continuar tudo difícil.  Meu notebook, embora seja relativamente novo e com pouco uso, afinal eu apenas assisto vídeos nele ao fim de cada dia e escuto música, já apresenta um defeito incômodo.

Estou sempre irritado, incomodado, e quando chega o dia de descansar em casa, em que poderia caminhar pela beira do mar, ou sair com alguém, assistir um filme ou algo assim, só quero dormir. Seja dopado, e os meus remédios já diminuem drasticamente, ou apenas ficar quieto na cama, fingindo que não existo. 

Comprei uma máquina de café que queria há vários meses, e já me cansei dela. Até vejo algumas pessoas, saírem, irem a cafés, festas, livrarias, pizzarias, e eu não tenho vontade de nada disso. Não quero sair com algum cara bonito e babaca como aquele de ontem à noite. A visão do homem cansa, a visão da minha vida mais ainda. Minha vida está uma droga. 

E eu não tenho nenhuma força ou vontade mudá-la.

Queria não soar fatalista, daqueles que dizem coisas como "o universo é hostil e a humanidade é inviável." Mas, ao dar uma olhada rápida na minha vida, isso é observável. Não é como se eu tivesse grandes sonhos que foram destruídos e esmagados pela realidade. Eu nunca quis nada muito grande, nada exagerado, e ainda assim cada pequeno desejo foi brutalmente esmigalhado diante de mim. 

Até mesmo agora, uma segunda, dia de folga, eu só queria poder ficar deitado e ouvindo música. Isso não envolve grandes somas de dinheiro, não requer uma evolução espiritual de décadas, não envolve um esforço de anos estudando. Não. Apenas um dia de folga de um homem medíocre num emprego medíocre, morando de aluguel com os pais numa casa medíocre. 

Mas nem mesmo o computador colabora. A música simplesmente pausa, e eu sei que poderia pesquisar o que fazer e, persistindo, levar na assistência técnica. Mas percebe como que sou privado de um prazer medíocre, até mesmo tosco, como se o universo estivesse tentando me provar algo. Se fosse pesquisar perderia horas, se fosse levar na assistência gastaria um dinheiro que não tenho para pagar o conserto. Mas por qual razão eu não posso simplesmente ouvir música como se isso fosse algum tipo de luxo anormal que carece de alguma lição superior para me ensinar humildade de perceber que a vida não faz nossas vontades? Eu sei que o universo não liga para mim. Não. Eu não sou importante assim.

O universo.

Deus.

O Tudo e o Nada.

A Verdade.

E até as pessoas ao meu redor, inclusive o idiota de ontem a noite.

Todos são absolutamente indiferentes a mim!

Droga! Eu só queria poder ouvir música sem ser incomodado. Mas que caralho de vida é essa que nem isso é possível? E ainda querem que eu tenha amor a ela? Que cuide dela? Dessa miséria sem fim? Que viva para mim mesmo mesmo quando sou privado até das coisas mais mínimas e que ainda tenha a ousadia de sonhar e sonhar grande? É um absurdo.

A insistência na vida só pode ser fruto de uma coisa: ignorância e desespero. No fim, a vida se encarrega de acabar com cada um de nós. Não há razão para tentar fazê-la feliz. Não há razão para buscar ou esperar alguém. Não há. 

Aceitemos o fato de que vivemos para sofrer e sermos levados sem nenhum alento, conforto ou recompensa. Que vivemos para o desespero constante da solidão. A vida é um vórtice infinito de dor. A única diferença é que, na escala das misérias, há aqueles miseráveis mergulhados em pequenas misérias como eu. Não perdi uma grande riqueza, não tive meus sonhos esmagados, não tive que tenho destruído num desastre natural, não tive a vida decepada por uma doença terrível (ainda), mas não consigo nem mesmo a porra de uma tarde simples ouvindo música. Inferno!

~

"Num verdadeiro círculo de Amizade, cada pessoa é simplesmente aquilo que é: ela representa a si mesma e mais nada. Essa é a sublimidade da Amizade. Não tenho nenhum dever de me tornar Amigo de quem quer que seja; e ninguém no mundo tem o dever de ser meu Amigo. Não existe obrigação, nenhuma sombra de necessidade [...] entretanto, é uma dessas coisas que dão valor à sobrevivência." (C. S. Lewis)

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