domingo, 1 de setembro de 2024

Ondas

Pacific, Alex Colville

“Nada é para sempre, dizemos, mas há momentos que parecem ficar suspensos, pairando sobre o fluir inexorável do tempo.” (José Saramago)

O meu sumiço não vai provocar nenhuma comoção. Não canso de repetir, porque essa impressão não se cansa de voltar ao meu peito, que eu não sou importante assim. Não é como se eu colocasse palavras na sua boca, de outras pessoas, é apenas a verdade, e a prova disso é o silêncio. 

Eu sou um momento ínfimo, algo tão passageiro e insignificante na vida de todos que, como algo que tenha sido observado por um ser onisciente e presenciado outros fenômenos tão próximos do nada que nem sequer pode-se dizer com certeza que eles existiram. Assim é comigo também. 

Sempre que me afasto, então, não é sequer notado, todos pensam que eu apenas estou dormindo, porque sim, porque é um capricho qualquer, porque sou preguiçoso ou depressivo. Mas não entendem que o dormir é, para mim, fugir dessa percepção: todos continuam suas vidas normalmente sem mim. Ainda que sejam vidas miseráveis. 

"(...) A maioria das pessoas estão mortas e não sabem, ou estão vivas com charlatanismo. E o amor, em vez de dar, exige. E quem gosta de nós quer que sejamos alguma coisa de que eles precisam. Mentir dá remorso. E não mentir é um dom que o mundo não merece." (Clarice Lispector)

Eu sei que esse silêncio é justamente um sinal da minha insignificância. Como um átomo a mais que se levantou, uma pequena pichação num muro despedaçado que logo será enterrado pelas folhas altas do mato que cresce descontroladamente. Ainda que continue lá, ninguém percebe, ninguém se importa.

Entende que é isso que quero dizer ao me referir que meu amor foi negado? Isso porque as pessoas sempre aceitam apenas uma parte dele, uma parte ínfima, menor, e dizem que isso é tudo. Vejo a maioria me procurar quando precisa de algo, eu sou uma solução para seus problemas, esquecido tão logo eles acabam. Eles querem apenas essa parte de mim. 

Eu, 

meu eu, 

completo, 

todo amor,

indivisível,

o eu que ama com a própria vida, 

esse amor não é amado, 

esse amor é apenas tolerado, 

um incômodo exagerado, 

porque eu só sei amar sem medidas,

um amor doentio.

Quando então aparece alguém que oferece aquele amor mais conveniente. A atenção de alguém que interessa mais, alguém mais bonito ou que se conforma melhor com os ideais morais kantianos mais toscos e idiotas, quando surge qualquer idiota que se encaixa nessas categorias, o meu amor se torna um amor de segunda classe, um tipo exótico, um tipo que as pessoas sabem que podem confiar até, mas não o tipo que se quer ao lado. Um tipo esquecível. 

É como observar as ondas do mar, o que me recorda que já faz vários meses que não caminho perto ao trapiche do Porta do Mar, aqui perto de casa. Observo as ondas irem e virem, em alguns dias mais agitadas, outras tão calmas que parece até que o mar está a dormir. Mas ondas que vêm e vão, tantas e tão numerosas que nenhuma delas chega a ser tão importante. Virão outras, e depois outras, e mais outras ainda, por milhares de anos têm sido assim e continuará por muitos milhares, então nenhuma delas é tão importante assim. 

Há aqui uma perspectiva cretina da minha parte: essas reclamações, essas lamentações, partem do princípio que não deveria ser assim. Mas quem disse isso? Eu permiti que meus sentimentos chegassem aqui, eu permiti que as coisas ficassem assim. Eu permiti me tornar intenso assim, eu me tornei um incômodo para outro e um algoz para mim mesmo. Ele não pediu meu amor, pelo menos não em toda sua completude, como ofereci, e tomou a parte que lhe cabia, mas o que faço com o resto? É um problema meu, um problema que eu preciso resolver. 

Uma parte de mim quer pedir perdão, de novo, por ser assim. Outra parte quer apenas seguir em silêncio, afinal não sou tão importante assim. Uma outra ainda gostaria de tentar mais, insistir. E uma última tem medo da resposta, da resposta coberta de toda a moral imposta desde cedo, de todo o medo que envolve essa questão, ou da simples verdade: ele não me ama como eu o amo. São amores diferentes, se é que existem amores diferentes e não apenas diferentes formas de demonstrar.

Me incomoda ser ainda tão independente de um amor, ao mesmo tempo que sou tão amargurado com essa coisa toda. Reclamar sempre do amor é coisa de quem nunca foi amado, ouvi isso alguns anos atrás, numa festa, de madrugada, e me lembro que doeu muito ouvir isso. Mas hoje vejo que é verdade. Eu nunca fui amado. Eu não sou suficiente para ser amado. É um grande sinal de imaturidade pretender entender complexas questões filosóficas e teológicas quando algo assim ainda é um problema tão grande para mim. Preciso crescer. 

Minhas ondas continuam. Meu silêncio continua. Meu amor continua. E nenhum deles é importante. Só recebo em troca o silêncio.

[...] Do tempo, que é de um só e é de todos.
Sou o que é ninguém, o que não foi a espada
na guerra. Um esquecimento, um eco, um nada.

(“Sou” de Jorge Luis Borge)

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