Não gostaria de ser o tipo de pessoa que vive atrelado ao passado como sou. Não gostaria de sofrer pelos que se foram e tampouco de perder tempo imaginando como tudo seria se ainda estivessem aqui. Mas é assim que eu sou e por mais que tente, parece que não sou capaz de mudar.
Dramático por natureza, até o mais simples dos acontecimentos tem pra mim uma importância absurdamente grande. Não sei delimitar as coisas por ordem de importância em diferentes níveis e infelizmente, em se tratando de pessoas, ou eu as amo apaixonadamente ou não sinto nada além do puro desprezo. Claro, não é assim o tempo todo pois acho que nenhuma mente seria capaz de suportar essa carga neural por muito tempo, mas o fato de ser assim comigo mostra o motivo por detrás do meu esgotamento psicológico.
Cheguei a conclusão, não sem ajuda profissional claro, de que meu quase colapso nervoso e meu óbvio princípio de depressão (que só não era óbvio para mim) são frutos desse meu péssimo costume de dar a tudo uma importância demasiada grande demais e com isso, esquecer de viver para ficar me detendo e planejando formas de resolver problemas que ainda nem sequer aconteceram. Minhas prioridades são completamente invertidas. Enquanto por um lado vejo as pessoas a minha volta priorizando os estudos, a sáude, eu só consigo priorizar o meu coração que insiste incessantemente em tomar as decisões mais importgantes da minha vida no lugar da minha cabeça. Toda essa situação me faz imaginar então um cenário um tanto quando trágico, que eu vou tentar descrever enquanto escuto a Sinfonia Dramática de Ottorino Respighi.
O cenário que melhor descreve meu atual estado mental é o de uma batalha iminente. Como que num castelo, daqueles bem antigos do período feudal, onde o exército espera o avançar do exército inimigo. A batalha será inevitável e tudo o que se encontra no coração de um jovem soldado é o medo e o silêncio que o aguarda em sua primeira guerra. O ar da noite é frio e preenche seu pulmão com lufadas gélidas que lhe enrijecem a alma e o coração. Um calafrio percorre seu corpo fazendo-o perceber o quanto está trêmulo. Sua mão vacila ao tocar a bainha da grande espada. Mesmo tendo treinado e se preparado durante toda a vida para aquele momento, o medo da morte que se aproxima a marchas largas faz com que a sua espada não passe de uma grade peso em sua cintura. O suor frio que escorre por todo o corpo faz grudar a longa franja no seu rosto, atrapalhando sua visão que, fitando o horizonte, espera o momento em que irá surgir o grandioso inimigo a ser derrotado. Seus companheiros percebem seu desespero, mas mesmo sendo mais velhos e mais experientes, também eles estão paralisados pelo medo. Mas o que esta batalha tem de tão aterrorizante assim que até mesmos os velhos guerreiros se tremem de medo?
Trata-se de um inimigo ainda mais poderoso e temível do que todos os senhores desse mundo, pois o exército que marcha em direção ao castelo do jovem guerreiro é comandado pela própria morte. Uma gigantesca horda de cadáveres dos piores homens que um dia viveram caminha em direção a eles. A rendição não é uma opção pois a morte será igual a da derrota. A partida também não, pois as histórias contam que, não importa o quanto um povo corra, esse exército maldito sempre os encontra e os massacra, transformando a todos em soldados renegados que passam então a lutar ao lado da própria morte. Esse exército avança rapidamente, embora seja formado por corpos apodrecidos de homens, mulheres e crianças de todos os tempos, que marcham sem vacilar em direção a seus inimigos. É convocado apenas quando um povo atinge tal grau de desenvolvimento que precisa ser eliminado, pois começa a ameaçar a soberania do próprio Destino sobre o mundo. O Destino então ordena que sua maior general, a Morte, marche em direção a esse povo, antes que este se torne de fato um perigo aos seus planos de continuar a comandar o mundo.
Então os mortos se erguem num local distante, massacrando vilas inteiras impiedosamente, apenas para dar tempo suficiente do povo que é seu real alvo entrar no desespero total. Aqueles poucos que conseguem sobreviver e chegar ao reino para contar dizem que lutar é inútil, impossível um exército humano vencer o conjunto de todas as pessoas que morreram. Por mais que lutassem, destruissem e dilacerassem os cadáveres, milhares e milhares mais surgiam, tornando aquela uma batalha com um único fim: o extermínio total e completo daqueles que são atacados.
De volta ao castelo, o dia começa a nascer, mas isso não diminui em nada a apreensão de todo um povo que se reuniu para tentar lutar por sua própria vida. A combinação da mais elevada tecnologia junto as tradicionais técnicas de combate corpo a corpo fazem deste povo o mais temído no campo de batalha. Mas nada disso adianta frente a um inimigo que não pode ser derrotado. Serão todos dacapitados e verão o sangue da própria gente lavar as escadarias das grandes catedrais daquele país. O jovem soldado, apaixonado, pensa em seu amado que foi morto ao tentar extrair alguma informação do maldito exército dos mortos. Num descuido acabou sendo pego numa cidade onde passava a noite e agora, segundo testemunhas, sua cabeça está erguida num espeto ao lados das bandeiras negras que conduzem a Morte em seu cortejo real. Uma gota do suor frio escorrega por sua face e mistura-se com as lágrimas grossas e pesadas que caem, deixando pequenas marcas no chão que logo se secam como se nunca estivessem estado alí. Como essas lágrimas desaparecem, assim também sua vida se dissipará com o advento do último inimigo. Mas ora, o último inimigo a ser aniquilado é a morte. E ela não pode ser vencida pois, tudo o que tem vida, um dia morre. Aceitando o seu destino então ele se agarra mais decididamente a sua espada enquanto continua a fitar firmemente o horizonte.
Se recordando vagamente das reuniões táticas que tivera ele se lembra de ter ouvido que técnicas estrategicas não funcionam com esse exército. Não importa quantos milhares sejam mortos por bombas ou ataques nucleares. A Morte tem total liberdade para convocar todos os mortos dos grilhões do inferno para lutar ao seu lado. Tudo o que podem fazer é lutar até cairem de exaustão e serem dilacerados para se tornarem parte também da grande horda de demônios do passado. Mas esse jovem guerreiro, admitindo a superioridade do inimigo, permite-se perder-se em devaneios enquanto espera por sua morte.
Caminhando ao lado se amado por paisagens artificiais de beleza estonteante, ele se lembra da brisa fresca da manhã acariciar seu rosto enquanto faz rodopiar por sobre os dois suas longas vestes. Os cabelos ao vento voando na mesma direção de pequenas pétalas de flores dão a cena um ar romântico único. Ele observa então atentamente o rosto do seu amado. Sua face rosada, seus longos cabelos cor de fogo e seus lábios de um atraente carmim. Alí naquele jardim secreto onde apenas os dois tinham acesso, fizeram mais do que amor, fizeram juras de passarem toda a eternidade ao lado do outro. E as flores eram suas testemunhas. As pobrezinhas foram as primeiras a morrer quando da morte do corajoso homem que buscava uma forma de salvar seu pequeno amado.
Eis que o exército surge finalmente no horizonte. Bem como o ressoar de dezenas de sirenes e outros sinais que avisam a presença do inimigo. Os generais e capitães dão ordens de comandos a seus subordinados, mas a tristeza já tomou conta de todos pois a notícia do exército invencível logo se espalhou. Embora mulheres e crianças também tenham pegado em armas, todos estão conscientes da impossibilidade da vitória. A cena é pior do que todos poderiam imaginar pois uma multidão incalculável de pessoas rodearam a pequena cidade, a última do grande reino que um dia prosperara como o maior de toda a terra. Os ataques aéreos, bombardeios e todas as artimanhas tecnológicas se mostram ainda menos efetiva do que a guerra corporal. Segundo uma lenda a Morte prefere esse tipo de guerra por valorizar ainda mais as iniciativas de homens corajosos a quem ela concede altos postos em seu próprio exército.
Nosso jovem guerreiro com medo, embarca em direção ao campo de batalha junto a infantaria. Os primeiros a ter contato com o exército inimigo e, não raramente, os primeiros a serem massacrados por um inimigo obviamente superior. Mesmo com a doce imagem de seu amado em meio as rosas no jardim em sua mente, ele parte com a espada erguida em direção ao seu destino. Ao longe pode ouvir os acordes tristes e delicados do violino que costumava ouvir de seu amor, essa será a melodia da morte que o acompanhará. Essa marcha em direção ao inimigo é pontuada pelos sentimentos mais poderosos que ele já experimentara: o ódio ao ver a cabeça de seu amado estampada nas linhas de frente sendo usada como adorno para a procissão macabra da Morte fez seu sangue ferver e seus olhos brilharem como fogo, a desejar queimar pessoalmente a cada um dos seus inimigos nas chamas do inferno.
Já com os pés no chão, ele sente-se vacilar mais uma vez, no entanto até seu medo é suprimido pelo poder de seu amor transformado em ódio e desejo de vingança. Agarrando firmente sua espada como também se agarra as lembranças mais felizes que tivera ao lado do homem que ele amava, nosso valente guerreiro parte em direção a sua última batalha. O último inimigo a ser vencido é a própria morte. Morte esta a quem ele olha com olhar mortal e cujos olhos vermelhos não lhe causam mais temor algum. Ele sente querer arrancar para si aqueles olhos brilhantes e ver a vida deles se esvair assim como a vida dos olhos de seu amado se foi, onde agora restaram apenas dois buracos ensanguentados.
Avançado imperiosamente ele se degladia violentamente com os solados já mortos. Como sempre voltam a levantar-se e a tentar devorar a carne de quem os enfrenta, a única opção razoável é cortar-lhe o maxilar com um potente e certeiro golpe de espada a fim de impedir que o mordam. Ele pode ouvir os gritos desesperados dos seus companheiros que, não tendo a mesma sede de sangue que ele tem por sua vingança, não conseguem vencer as hordas de mortos que partem em sua direção. Aos olhos românticos de quem acredita realmente poder vencer esta seria uma batalha fácil. No entanto todos nós já sabíamos que tratava-se de uma batalha sem chance de vitória. A imensidão de cadáveres parece nem sequer ter sofrido uma baixa, tamanha sua superioridade numérica. A cidade é logo devastada. Os prédios icendiados. As mulheres e crianças mortas por todos os lados, bem como a maioria dos soldados.
Aqueles poucos que ainda não morreram, já não tem mais forças para lutar bravamente e logo se entregam aos dentes dos seus antepassados que os devoram para logo ressurgirem como membros desse mesmo exército. Toda a batalha dura apenas um único dia. Ao raiar do novo dia, após o massacre que se sucedera durante a noite, apenas um guerreiro permance de pé. Coberto de sangue a pingar de seus cabelos junto com o suor, um brilho diferente emana de seus olhos. Não parece cansado nem tampouco fatigado pelas últimas vinte e quatro horas ininterruptas de intensa batalha. Age como se estivesse começado a lutar a poucos minutos e cada vez derruba mais inimigos. Mas seu objetivo não é derrotar o exército todo. Mesmo em sua insana vingança ele sabe não ser capaz disso. Deseja apenas desafiar a Morte que, lhe concede esse desejo, como o último de sua nobre porém curta vida.
Como não poderia ser diferente, a morte não precisa de muito para fazer cair aos seus pés a cabeça do pequeno guerreiro. Mas mal sabe ela que esse fora seu objetivo desde o início. Desde o começo da guerra ele não se importara com sua própria vida, nem tampouco com a de seu povo. Pensara apenas em juntar-se a seu amado no outro mundo, onde quer que ele estivesse. Dessa forma, agora, com sua cabeça aos pés da morte, sua alma finalmente pôde voltar a contemplar o doce olhar daquele que ele amou por toda sua vida. Agora, mais uma vez unidos, de mãos dadas, eles não mais se separarão. Caminhando lado a lado por toda a eternidade. Marchando junto ao exército da Morte para defender a soberania do Destino.
Mais uma vez juntos, na morte, por toda a eternidade.
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