quinta-feira, 9 de maio de 2019

Desconstrução


Quando se viu pela primeira vez
Na tela escura de seu celular
Saiu de cena pra poder entrar
E aliviar a sua timidez
Vestiu um ego que não satisfez
Dramatizou o vil da rotina
Como fosse dádiva divina
Queria só um pouco de atenção
Mas encontrou a própria solidão
Ela era só uma menina

As mídias podem ser tóxicas e altamente perigosas. Quantas vezes nos vestimos com uma máscara de interesse que não existe, quantas vezes não dramatizamos nossa vida para parecer mais interessante aos olhos dos outros? Quantas vezes não inventamos situações absolutamente fictícias apenas para atrair olhares, na esperança de que esses olhares amenizassem o horror que sentimos no escuro? 

No escuro se esconde um monstro, no escuro se esconde a solidão. No escuro ouvimos o grito desesperado do coração. É mais fácil então sair sob a luz sob a imagem que melhor aparece iluminada pelo sol. 

Do lado de cá da tela me sinto seguro para dizer coisas que não digo nem aos meus amigos mais chegados. Do lado de cá eu digo o que meu coração quer dizer ao se rasgar, e com as gotas de meu próprio sangue eu traço as palavras que brotam dessa violência. Do lado de cá não sinto os olhares e nem os toques das pessoas, mas o número de curtidas e visualizações me fazem ter a ilusão de ser visto e abraçado. 

Mas, e qual não foi a minha surpresa, descobri que aqui há apenas uma maneira diferente de ser solitário. Se no mundo real aqueles que me tocam não me deixam tocar seu coração, no mundo virtual eu tenho a aparência de tocar e ser tocado, quando na verdade só estamos trocando palavras, nem sempre vazias é verdade, mas sempre só palavras.

Abrir os olhos não lhe satisfez
Entrou no escuro de seu celular
Correu pro espelho pra se maquiar
Pintou de dor a sua palidez 
E confiou sua primeira vez
No rastro de um pai que não via
Nem a própria mãe compreendia
No passatempo de prazeres vãos
Viu toda a graça escapar das mãos
E voltou pra casa tão vazia

E logo vemos que não basta postar. Não basta ter visualização. O contato faz falta, a carne faz falta. O corpo grita em necessidade. Começamos então a nos mudar para o mundo, atrás da carne que complete o buraco que há em nosso peito. Mas por quê falo no plural? Represento por acaso alguma coletividade? Falo por mim e pelos meus próprios anseios. 

Começo então a mudar para o mundo, correndo atrás da carne que preencha o buraco de meu peito. A solidão do passado então vem ao presente com a força de um titã enfurecido, arrancando de meus braços o bom senso e me lançando nos braços de qualquer desconhecido, na esperança de que sendo penetrado por eles consiga esquecer o medo que sinto do escuro quando me deito sozinho. 

Quando retorno, no entanto, continuo sozinho, e o escuro continua sendo assustador. As notificações continuam chegando, e a dor continua gritando, cada vez mais alto, clamando por uma necessidade que não pode ser atendida em vida.

Amanheceu tão logo se desfez
Se abriu nos olhos de um celular
Aliviou a tela ao entrar
Tirou de cena toda a timidez      
Alimentou as redes de nudez
Fantasiou o brio da rotina
Fez de sua pele sua sina
Se estilhaçou em cacos virtuais
Nas aparências todos tão iguais
Singularidades em ruína

A destruição já estava estabelecida. Não há mais timidez, nem pudor sobrou em meu corpo. A bestial criatura repleta de desejos busca nos desejos do outro a sua completude... Até que essa vida de ser fera também perdeu o sentido. Fotos e palavras nojentas, as demonstrações do despertar dos desejos mais primitivos da carne, desejos que fariam os animais se assustarem com tal demonstração.

Não sobrou mais vontade de encenar, de encarnar, de ser outra coisa. Só sobrou a opção de ser eu mesmo, e isso já era ruim e difícil o bastante. Ser eu. Ser essa criatura pequena, frágil, animalesca. 

O que os outros passaram a ver é apenas o retrato da destruição. Não há mais como disfarçar. Lágrimas, cortes, sangrias, o mundo vê a exteriorização de um interior que já foi devastado pela solidão.

Olho ao redor e vejo então que é uma epidemia: milhares sofrem com a mesma doença! Todos conseguem postar suas alegrias, suas conquistas, suas festas, mas na verdade sofrem, e como sofrem... Sofrem e andam como zumbis nas ruas, escondendo em meio aos flashes e stories as suas crises de choro, seus medos e os seus desejos bestiais. 

Entrou no escuro de sua palidez
Estilhaçou seu corpo celular
Saiu de cena pra se aliviar
Vestiu o drama uma última vez
Se liquidou em sua liquidez
Viralizou no cio da ruína 
Ela era só uma menina
Ninguém notou a sua depressão
Seguiu o bando a deslizar a mão
Para assegurar uma curtida

O desespero dessa situação acaba por me dominar. Não há mais como evitar mostrar ao mundo a garatuja que me tornei. Não há mais como evitar espalhar por aí os milhares de cacos em que me parti. 

É então chegada a hora de me retirar. De me esconder desse mundo, de compreender o que te fato deseja e precisa meu coração. De aceitar que não é a quantidade alexandrínica de informações das redes sociais que vai me preencher. Que não são as declarações de desejos podres e nem demonstrações de pura excitação carnal que irão me fazer compreender o que quero. 

Aceito então a dor que me oprime. Agarro-me a ela pois é a única coisa capaz de dizer que estou vivo. Quando meus sentidos adormecem e então paro de senti-la, eu busco a dor dos cortes finos, que fazem escorrer o sangue brilhante e gritam declarando minha existência. 

Mesmo que ninguém seja capaz de ver o que acontece de verdade comigo, mesmo que só vejam a máscara que diariamente mostro ao mundo, ainda que caindo aos pedaços, ela está aqui, como uma sombra constante, da qual tento fugir com a ilusão de que aqueles ao meu redor, que também enfrentam seus fantasmas e demônios, se preocupam comigo. Mas a verdade é que não há outros, apenas eu, e minha solidão, e que no máximo posso escolher mostrar aos outros essa dor e sofrer com outro tipo de solidão. 

~

Observação: Texto livremente, e evidentemente, inspirado na música Desconstrução, do cantor Tiago Iorc.

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